“É uma criança nervosa. Tem de ter paciência.” Diagnóstico perfeito. Médico sábio, pais de sobreaviso. Reavaliação em casa. Para lá do ridículo: sem camisola, a puxar (sabe-se lá como) pelas “veias salientes” que dão nome ao gangue. Líder. Temido. Implacável. Justo. Sem rival. As histórias que um miúdo consegue desembainhar da ficção e brandir ao espelho. Quarto vazio: sem televisão, sem música, sem livros, nada. Uns lápis, papel.

“É uma criança nervosa. Tem de ter paciência.” Diagnóstico perfeito. Médico sábio, pais de sobreaviso. Reavaliação em casa. Para lá do ridículo: sem camisola, a puxar (sabe-se lá como) pelas “veias salientes” que dão nome ao gangue. Líder. Temido. Implacável. Justo. Sem rival. As histórias que um miúdo consegue desembainhar da ficção e brandir ao espelho. Quarto vazio: sem televisão, sem música, sem livros, nada. Uns lápis, papel.

Munido de indulto clínico, um miúdo, este miúdo, fica com o mundo à frente. Não é chavão – era tangível. Que adulto teria a insensibilidade de agrilhoar o destino heróico, glorioso e, enfim, ilustre de um rebento “nervoso”, palavra grosseira mas de espírito cristalino, que sintetiza “aquele cuja vontade não deve ser contrariada”? Curiosamente, os meus pais, que tinham uma leitura distinta dos achaques e à primeira transgressão me puseram na linha.

Fiquei siderado, indignadíssimo! A ousadia de ir contra as indicações de um diplomado! Onde estavam a resignação e a indulgência? Seriam, por certo, brutos sem consideração pelo bem-estar do ser que, fé e razão ponderadas, era nada menos do que o princípio e o fim, o centro e a periferia; o ser que, chegando o tempo, disporia das ferramentas que lhe permitiriam unir o planeta e conduzi-lo, aí sim, até ao fim da História, à felicidade geral.

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O limbo dos anos 1980 conheceria enérgica salvação em meados da década seguinte, quando uma adolescente de cabelos e calções curtinhos deu à recém-nascida SIC o argumento que lhe faltava para convencer um miúdo, o mesmo miúdo, a trocar o Cartoon Network pela televisão portuguesa. Ana Malhoa, a redentora. Ediberto Lima, o soteriológico. O Buéréré começava a emitir uma série-bomba para as aspirações juvenis: Dragon Ball.

Akira Toriyama e Ana Malhoa: dois agitadores hormonais num único programa. Intenso. No entanto, se a apresentadora poderia gerar desconfiança com a sua sempiterna euforia, as personagens propostas pelo autor japonês geraram empatia imediata e inapelável. Uma criança sem supervisão, destemida e inconsequente, que vagueia sozinha pela floresta, caça as próprias refeições e é invencível em combate? “Eu sou este. Disse primeiro!”

Son Goku era tudo o que o desejaríamos ser – nós, os miúdos "nervosos", e suspeito que todos os outros. Livre. Indomável. Poderoso. Quando se enfurecia, transformava-se em “super guerreiro”. Mas com bom coração: genuíno e abnegado, lutava apenas pelo bem comum, sem interesse pelo reconhecimento público. Treinava para se superar e melhorar as suas hipóteses quando chegasse a hora de defender os amigos. Eis o que faltava ao espelho: altruísmo. Um desenho animado tem muito para ensinar.

O protagonista de Dragon Ball ajudou-nos ainda a perceber que o Bem e o Mal, assim com maiúsculas, estão longe de ser estanques. O número de vilões que se aliaram a Son Goku e companhia era elevado: Oolong, Yamcha, Tenshinhan, Chaos, Coraçãozinho de Satã, Androide #18, Vegeta, Dabura, Buu Buu – e até Krillin, rival primeiro e depois fiel sidekick.

Mais: os heróis não são perfeitos, podem ser preguiçosos, glutões (“Acho que vou comer qualquer coisinha”, dizia Son Goku) e socialmente inaptos. De que mais precisaria um telespectador juvenil para se identificar? O crescimento: ao contrário da maioria das séries de animação, as personagens de Dragon Ball crescem, casam-se, têm filhos, morrem e… bem, ressuscitam quando as “bolas de cristal” são reunidas e o dragão Shenlong (a narrativa é japonesa mas de inspiração chinesa) concede um desejo a quem o evoca.

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Dragon Ball foi, provavelmente, a primeira série vista com o irmão mais novo (e único). Com nove anos de diferença, tínhamos poucos denominadores comuns: a live-action estava fora da esfera de preferências dele; o Pokémon (que voltou a estar na moda) transbordava da minha. O tempo é relevante. Son Goku, Bulma, Son Gohan, Son Goten ou Trunks iam crescendo e nós com eles. O mundo não muda para ficar na mesma. Os desafios ficam maiores. E mais surpreendentes.

Entre Dragon Ball, Dragon Ball Z e Dragon Ball GT – que não faz parte do cânone: ausente dos mangas –, a série teve mais de 500 episódios. Havia a mítica história de que as escolas paravam para ver, de alunos a faltarem às aulas. Não vi. Os episódios repetiam-se, gravavam-se em VHS. Ou viam-se as “cassetes” de longa duração. De qualquer forma, gerava conversa, debate, expectativa. No processo, o kamehameha (ataque de nome inspirado no fundador do Reino do Havai) e a fusão de lutadores ficaram para a posteridade.

Dragon Ball Super, que a SIC estreará “brevemente”, também não foi escrito para manga, mas desta vez – e ao contrário da série GT – Akira Toriyama é o autor da história. A acção tem lugar pouco depois do fim da série Z. O estúdio que fará a dobragem em português quer o elenco original: Henrique Feist, João Loy, Cristina Cavalinhos, Ricardo Spínola. Falta confirmação oficial. A voz que não estará neste regresso é a do narrador de sempre, António Semedo. Mas basta escrever umas poucas palavras para vencer a morte e ouvi-lo de novo: “Não percam o próximo episódio, porque nós também não!”

Esta série é publicada à segunda e à terça-feira. Próxima: Os Jovens Heróis de Shaolin