Marte foi aqui na Terra. Para seis voluntários isolados durante um ano
NASA quer aprender mais sobre os aspectos psicológicos (e não só) de missões longas isoladas do mundo. Experiência decorreu no Havai.
Os seis voluntários que viveram fechados durante um ano num edifício em forma de cúpula no Havai, numa experiência de preparação de uma missão tripulada a Marte pela agência espacial norte-americana NASA, saíram finalmente no último fim-de-semana, contentes por terem um pouco de liberdade e… frutos frescos.
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Os seis voluntários que viveram fechados durante um ano num edifício em forma de cúpula no Havai, numa experiência de preparação de uma missão tripulada a Marte pela agência espacial norte-americana NASA, saíram finalmente no último fim-de-semana, contentes por terem um pouco de liberdade e… frutos frescos.
Três homens e três mulheres estiveram confinados desde 28 de Agosto de 2015 num espaço de 11 metros de diâmetro por seis de altura, na árida encosta norte do vulcão Mauna Loa. A experiência desenrolou-se sem nenhum problema particular.
Trata-se da mais longa experiência norte-americana de isolamento, mas os russos já realizaram uma que durou 520 dias. A “tripulação” contava com um exobiólogo francês, uma física alemã e quatro norte-americanos (um piloto, um arquitecto, uma médica e jornalista e, por fim, uma investigadora especializada em solos). Um vídeo mostra-os a sair da cúpula antes de posarem para as selfies com os visitantes. E a organização deu-lhes frutos e legumes frescos.
Durante um ano, comeram bastante queijo em pó e atum em lata. O francês Cyprien Verseux disse estar “muito contente pela sensação de passear ao ar livre, de encontrar desconhecidos e comer produtos frescos”. O mais difícil para os voluntários em isolamento era “a monotonia”, acrescentou o biólogo francês, que deixou para os próximos voluntários o conselho de levarem consigo muitos livros. Cyprien Verseux mostrou-se satisfeito com os resultados da experiência.
“Uma missão a Marte é realista num futuro próximo”, acrescentou o biólogo, considerando que “os problemas técnicos e psicológicos podem ser ultrapassados”. Um dos principais desafios para as missões previstas para 2030 será a produção de alimentos no solo marciano, que é muito seco e onde a água é muito rara.
A este propósito, o alemão Christiane Heinicke contou que durante este ano de isolamento as principais tarefas centraram-se na possibilidade de extrair água do solo, cuja composição mineral é muito próxima da de Marte.
Outro dos participantes, o norte-americano Tristan Bassingthwaighte, contou que ocupavam os tempos de lazer a dançar salsa e a tocar ukulélé. “Se pudermos fazer qualquer coisa que contribua para a realização pessoal… não ficamos loucos.”
Os participantes na experiência não sentiram as mudanças de estação, uma vez que só podiam sair com um fato espacial.
Também Christiane Heinicke evocou as dificuldades de viver com as mesmas pessoas durante um longo período de tempo num espaço confinado, dizendo que apenas deverá manter contactos estreitos com três dos cinco participantes na experiência.
A cúpula – alimentada a energia solar e equipada com duches e sanitas secas de composto – está situada numa zona com pouca vegetação e sem animais. Cada elemento da equipa dispunha de um pequeno quarto, com espaço para uma cama e um escritório. Havia acesso limitado à Internet.
A NASA procura aprender o máximo sobre a coesão e a evolução psicológica dos elementos de uma equipa de astronautas isolados do mundo durante períodos longos. A agência espacial testa estes cenários de isolamento na Terra, no âmbito do programa Hawaii Space Exploration Analog and Simulation (HI-SEAS), antes de tentar enviar astronautas rumo ao planeta vermelho, o que se espera que aconteça na década de 2030. A análise psicológica desta última experiência à porta fechada será objecto de uma publicação da NASA nos próximos meses.
Levada a cabo pela Universidade do Havai para a NASA, esta última missão do programa HI-SEAS foi precedida por duas experiências de isolamento mais curtas – uma de quatro meses e outra de oito, em 2014.
Duas outras missões do programa HI-SEAS estão já previstas para Janeiro de 2017 e de 2018, cada uma com a duração de oito meses. Agora está-se à procura de voluntários.
Das radiações aos mantimentos
Para o astrofísico Francis Rocard, responsável pelo programa de exploração do sistema solar no Centro Nacional de Estudos Espaciais (CNES) francês, esta simulação é mais “uma pequena pedra na investigação suplementar” na aventura marciana.
“As estadias de longa duração fazem-se há muito tempo. Mais de 500 pessoas foram ao espaço. A seguir aos soviéticos e à [sua estação espacial] Mir, os norte-americanos acumularam experiências de longa duração: a norma na Estação Espacial Internacional é de 200 dias”, contextualiza Francis Rocard. “Marte é um verdadeiro desafio. Porque para ir lá serão necessários 200 dias e as estadias de 500 dias serão a norma, tendo em conta o investimento. No total, serão quase três anos, o que é considerável!”
No entanto, Francis Rocard não tem a certeza de que a simulação de Marte aqui na Terra permita aprender muito. “No plano psicológico, já tivemos as experiências de invernada na Antárctida ou nos submarinos. E aqui o problema é a representatividade, uma vez que os participantes não se encontravam numa situação – psicológica – de um eventual não regresso, ou de um regresso daí a dois ou três anos. Este risco está latente no consciente e no inconsciente do astronauta”, diz.
O investigador do CNES sublinha ainda outros desafios da viagem, para lá do isolamento. É o caso das radiações espaciais. “Podemos proteger-nos das radiações solares, mas não das galácticas, permanentes e mais energéticas, e iremos ultrapassar as doses regulamentares dos trabalhadores do sector nuclear. Segundo um relatório de 2014, os homens, nomeadamente os mais velhos, resistirão melhor a este risco. Será preciso fazer escolhas.”
Ter comida para 500 dias também não será fácil. “Levaremos sementes e será preciso desenvolver processos de cultura: sem solo, com lâmpadas de UV, etc.”, disse Francis Rocard. Ter água ainda será mais complicado. “Os norte-americanos entusiasmaram-se um pouco, ao dizerem que bastaria escavar. Ora Marte é frio, como escavar o gelo? E uma sondagem de baixa resolução até a um metro de profundidade concluiu que existem quantidades de água muito baixas.”
E porquê ir ao planeta vermelho? “Marte tem uma aura particular”, responde o investigador. “O objectivo dos cientistas é procurar provas de vida e, até ao momento, não as encontraram. No espírito pioneiro dos norte-americanos, esta é a nova fronteira. A sua missão é pôr um homem em Marte. Senão, um dia os chineses fá-lo-ão.”