Fogos florestais e governança
Desde 1982 (!!!) que as insuficiências do combate a incêndios florestais em Portugal são sucessivamente e repetitivamente diagnosticadas.
Mitigar os impactes negativos dos incêndios exige um módico de boa governança, algo que tem estado largamente ausente da discussão pública. Em primeiro lugar, a experiência internacional atesta que a eficácia na gestão do fogo está associada a serviços florestais (SF) sólidos e com intervenção significativa no território. Os SF nacionais sofreram nas últimas 4 décadas frequentes alterações rumo ao minimalismo, indicando pouca compreensão do seu papel. Podemos referir a transferência do combate para os bombeiros em 1980/81 (perdendo-se o conhecimento de como combater o fogo na floresta), o desmantelamento e regionalização da estrutura vertical em 1996, e a “entrega” da guarda florestal e da rede de postos de vigia à GNR em 2006. A volatilidade da organização dos SF é uma constante desde 2003, com sucessivas reestruturações orgânicas e a fusão em 2012 com a conservação da natureza que resultou no atual (e futuro?) ICNF. Alterações institucionais tão frequentes manifestamente perturbam o funcionamento e comprometem a definição e o cumprimento de objectivos a longo prazo.
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Mitigar os impactes negativos dos incêndios exige um módico de boa governança, algo que tem estado largamente ausente da discussão pública. Em primeiro lugar, a experiência internacional atesta que a eficácia na gestão do fogo está associada a serviços florestais (SF) sólidos e com intervenção significativa no território. Os SF nacionais sofreram nas últimas 4 décadas frequentes alterações rumo ao minimalismo, indicando pouca compreensão do seu papel. Podemos referir a transferência do combate para os bombeiros em 1980/81 (perdendo-se o conhecimento de como combater o fogo na floresta), o desmantelamento e regionalização da estrutura vertical em 1996, e a “entrega” da guarda florestal e da rede de postos de vigia à GNR em 2006. A volatilidade da organização dos SF é uma constante desde 2003, com sucessivas reestruturações orgânicas e a fusão em 2012 com a conservação da natureza que resultou no atual (e futuro?) ICNF. Alterações institucionais tão frequentes manifestamente perturbam o funcionamento e comprometem a definição e o cumprimento de objectivos a longo prazo.
À instabilidade institucional soma-se a instabilidade nas políticas. Diversa legislação e regulamentação e instrumentos de planeamento foram sendo introduzidos, com responsabilidades e competências dispersas por vários ministérios e organismos. A produção de 6 documentos estratégicos florestais de âmbito nacional entre 2003 e 2006 exprime bem as intermináveis alterações ao quadro legislativo e institucional. Outros sintomas são a quantidade de conselhos consultivos (cinco entre 2003 e 2012); as recomendações quase anuais da Assembleia da República; os Planos Regionais de Ordenamento Florestal nunca implementados e agora em revisão; a instabilidade do Fundo Florestal Permanente — criado para custear a prevenção mas utilizado também para pagar despesas de (pré-)supressão de incêndios — cujo regulamento mudou 5 vezes numa década; a vida curta e pouca massa crítica de iniciativas para melhorar a prevenção (GeFoCo) e o combate (GAUF); e as iniciativas desgarradas que regularmente (des)aparecem, respeitantes por exemplo ao envolvimento do exército ou aos programas de sensibilização. Tanta impulsividade, inconstância e intermitência inviabiliza a continuidade e persistência das políticas, desperdiça recursos e desvia as entidades das suas funções centrais.
Desde 2006 que está em vigor o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PNDFCI), incluindo os pilares da prevenção estrutural, vigilância e detecção, e supressão, respectivamente a cargo do ICNF, GNR e ANPC. Ora este sistema carece de liderança, isto é, de um organismo de coordenação, bem como de um orçamento global. Esta falta de visão conjunta compromete o planeamento, prejudica a compreensão da interdependência entre os pilares e desequilibra os recursos que lhes são atribuídos, e impede uma cultura institucional de aceitação e assimilação de conhecimento. A falta de uma estrutura orgânica funcional assegurada por uma só entidade dispersa os esforços e recursos e mantém a massa crítica e o foco em níveis baixos, dificulta a evolução técnica dos agentes envolvidos, obsta à integração prevenção-combate, e impossibilita que existam recursos com capacidade operacional exclusiva e permanente e variando entre a prevenção e o combate.
Do exposto se conclui que o sistema nacional de DFCI não produzirá efeitos enquanto questões básicas de governança e financiamento não forem resolvidas. Perante os obstáculos de fundo são bastante simplistas os discursos passa-culpas que contrapõem a prevenção ao combate, como se não se tratassem de atividades cujo desempenho é interdependente. Atacar a raiz do problema reduzindo o risco inerente ao comportamento humano e construindo paisagens resilientes ao fogo para lá da microescala requer tempo e persistência, além de boa governança. O que fazer então no curto a médio prazo para mitigar os impactes dos incêndios?
O combate a incêndios absorve o grosso dos custos da gestão do fogo, triplicando a despesa na última década. O investimento parece dar frutos em anos meteorologicamente favoráveis, como 2015 (com seca pronunciada mas praticamente sem situações pirometeorológicas severas), uma ilusão que se esfuma nos restantes (2010, 2013, 2016). Na verdade, não há tendências de longo prazo na área ardida e ocorrência de grandes incêndios em Portugal. Há a referir a diminuição recente na % de ocorrências com mais de 1 hectare, mostrando melhor ataque aos fogos nascentes, mas as consequências são bastante marginais, pois os incêndios com mais de 100 hectares respondem por cerca de 80% da área ardida total. Em flagrante contraste, Espanha, França e Itália reduziram substancialmente a área ardida na década de 90 e assim a têm mantido. Estes países partilham as circunstâncias com Portugal, nomeadamente o êxodo rural e uma prevenção estrutural que é pouco mais que cosmética. Conclui-se então que o investimento no combate a incêndios não surtiu efeito em Portugal, o que é imputável à falta de progressos na extinção dos fogos que escapam ao ataque inicial. Note-se, por exemplo, que a mediana do tamanho dos grandes incêndios é em Portugal de 260 ha face a 194 ha em Espanha (2001-2011), diferença que se alarga para incêndios progressivamente maiores até atingir (percentil 99) respectivamente 8459 ha e 4385 ha. Um estudo recente da UTAD com o INESC TEC mostrou que em Portugal a quantidade de meios alocados aos maiores incêndios não afecta a sua duração e pouco influencia a sua dimensão.
Desde 1982 (!!!) que as insuficiências do combate a incêndios florestais em Portugal são sucessivamente e repetitivamente diagnosticadas, realçando as deficiências no controlo perímetral e o não aproveitamento das oportunidades dadas pela variação nas condições e padrões de propagação do fogo. Estranhamente, dá-se por adquirido que o sistema de combate melhorou muito e pouco mais pode evoluir, colocando o ónus nas costas largas do “ordenamento florestal”. No entanto, onde a prevenção está no terreno as oportunidades de contenção resultantes são invariavelmente ignoradas, seja por ausência ou por inoperância dos meios de combate, como agora sucedeu nas faixas de gestão de combustível da serra da Freita.
Não há milagres e dificilmente se poderá esperar melhor de um modelo de combate assente no voluntariado, moldado e vocacionado para a proteção civil e que pratica a defesa contra incêndios florestais ao invés da defesa da floresta contra incêndios. Se a proteção florestal é um desígnio nacional, urge que se deixe de confundir experiência com conhecimento e disponibilidade de meios pesados com capacidade de extinção. Há que evoluir no sentido da formação de brigadas de bombeiros florestais, com funções mistas de prevenção e combate e dirigidas por técnicos com conhecimento especializado e avançado, incluindo as competências de análise de incêndios que são decisivas em ocorrências graves e complexas.
Professor associado da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e engenheiro florestal