Através da América
Um livro surpreendente feito de rápidos retratos de gente comum, e apresentados como pequenas peças de manchas do puzzle que é a América.
Aos 58 anos, em 1960, John Steinbeck (1902-1968) decidiu fazer uma viagem para redescobrir o seu país. “Eu, um escritor americano, escrevendo acerca da América, estava a trabalhar de memória, e a memória é, quando muito, um reservatório defeituoso e adulterador. Não ouvira a fala da América, não cheirara a sua erva, as suas árvores e as suas imundícies, não vira as suas colinas nem as suas águas, (…) não tivera contacto físico com a minha terra durante vinte e cinco anos.” Steinbeck vivia há muito tempo em Long Island, Nova Iorque, era um escritor famoso (o prémio Nobel chegar-lhe-ia dois anos depois, em 1962), tinha já alguns problemas de saúde, e esta viagem seria uma espécie de despedida de um país que ele descreveu como poucos, sobretudo o seu lado social e laboral, o trabalho rural e os problemas económicos. Para esta viagem tinha também como objectivo responder à pergunta, “Como são os americanos hoje?”. Planeou ao pormenor o itinerário, do Maine à Califórnia, depois ao Texas e ao Louisiana, e o regresso a Nova Iorque: cerca de 16.000 quilómetros, trinta e quatro estados para atravessar, mais de três meses de viagem ao volante de uma carrinha que transformou em casa rolante (a que deu o nome do cavalo de D. Quixote, “Rocinante”), adaptando-a com a cabine de um barco. Como companhia, apenas Charley, o seu cão d’água francês.
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Aos 58 anos, em 1960, John Steinbeck (1902-1968) decidiu fazer uma viagem para redescobrir o seu país. “Eu, um escritor americano, escrevendo acerca da América, estava a trabalhar de memória, e a memória é, quando muito, um reservatório defeituoso e adulterador. Não ouvira a fala da América, não cheirara a sua erva, as suas árvores e as suas imundícies, não vira as suas colinas nem as suas águas, (…) não tivera contacto físico com a minha terra durante vinte e cinco anos.” Steinbeck vivia há muito tempo em Long Island, Nova Iorque, era um escritor famoso (o prémio Nobel chegar-lhe-ia dois anos depois, em 1962), tinha já alguns problemas de saúde, e esta viagem seria uma espécie de despedida de um país que ele descreveu como poucos, sobretudo o seu lado social e laboral, o trabalho rural e os problemas económicos. Para esta viagem tinha também como objectivo responder à pergunta, “Como são os americanos hoje?”. Planeou ao pormenor o itinerário, do Maine à Califórnia, depois ao Texas e ao Louisiana, e o regresso a Nova Iorque: cerca de 16.000 quilómetros, trinta e quatro estados para atravessar, mais de três meses de viagem ao volante de uma carrinha que transformou em casa rolante (a que deu o nome do cavalo de D. Quixote, “Rocinante”), adaptando-a com a cabine de um barco. Como companhia, apenas Charley, o seu cão d’água francês.
Há alguns anos, e aquando da comemoração do cinquentenário da publicação de Viagens com o Charley, um dos filhos de Steinbeck afirmou: “seria um erro ler este diário de viagem demasiado literalmente, dado que Steinbeck era um romancista”. Esta afirmação veio suportar os resultados de alguns recentes estudos académicos que põem em dúvida a classificação de non fiction (tão do agrado dos americanos), e que apontam para o facto de que a viagem não foi feita apenas com Charley, o cão, mas que pelo menos em metade do tempo a mulher de Steinbeck também esteve presente, e ainda que as estadas em modestos motéis de estrada, ou na carrinha, afinal, pelo menos em parte, foram feitas em hotéis mais ou menos luxuosos. Mas isto são apenas pormenores em redor de uma narrativa que é um quadro apaixonado, lúcido e crítico, da identificação de um país.
Este relato da viagem de John Steinbeck, que oscila entre o registo cómico e o melancólico, não deixando de fora umas quantas notas de cepticismo, é um brilhante exercício de escrita de quem não quis ficar apegado à estrutura de uma obra deliberadamente ficcional, em que as personagens a percorrem obedecendo à coerência (ou à falta dela) daquilo para que foram esboçadas. Em Viagens com o Charley, o grande escritor americano de “romances sociais” entrega-se a retratos rápidos de gente comum, pessoas com quem se cruza, “segredos” de uma aldeia, tudo apresentado como pequenas peças de manchas de um puzzle (que ficará sempre incompleto) que aos poucos parecem querer ganhar forma. São pessoas comuns, algumas mais “exóticas” do que outras, que vão dando voz a uma ideia de país, gente que Steinbeck foi ouvindo em restaurantes de estrada, bares ou mesmo igrejas. “Depressa descobri que se um estranho de passagem pretende ouvir os segredos de uma população local, os lugares bons para se introduzir e ficar em paz são os bares e as igrejas.” E ainda, diz Steinbeck, que “o melhor da aprendizagem veio pelos programas de rádio da manhã, de que aprendi a gostar. Cada cidade de alguns milhares de habitantes tem a sua estação, que toma o lugar do antigo jornal local.”
Neste relato de contrastes, que por vezes assume o registo de reflexão crítica, uma das vertentes que sobressai é a autobiográfica, o retrato de um homem que pareceu sempre mostrar um certo pudor em assumir o lado (sempre muito velado) autobiográfico de alguns dos seus romances. Também por isso, Viagens com o Charley não deixa de ser uma obra surpreendente.