A Lucy caiu de uma árvore e morreu

Análise dos ossos de famoso australopiteco, usando a tomografia computacional, permitiu encontrar uma explicação sobre a sua morte há 3,18 milhões de anos em África.

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O esqueleto de Lucy mostra que ela tinha uma zona pélvica semelhante à dos humanos e pernas que lhe permitiam caminhar de pé Cortesia de John Kappelman/Universidade do Texas em Austin

O ponto final da vida de Lucy pode ser um ponto de partida para a história evolutiva dos humanos. Uma nova análise do fóssil descoberto em 1974, em Afar, no Norte da Etiópia, permitiu dar uma explicação inédita para os momentos finais deste Australopithecus afarensis, que viveu há 3,18 milhões de anos. Lucy terá caído de uma árvore, fracturou vários ossos, sofreu feridas internas e morreu, segundo um artigo publicado nesta segunda-feira na edição online da revista Nature.

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O ponto final da vida de Lucy pode ser um ponto de partida para a história evolutiva dos humanos. Uma nova análise do fóssil descoberto em 1974, em Afar, no Norte da Etiópia, permitiu dar uma explicação inédita para os momentos finais deste Australopithecus afarensis, que viveu há 3,18 milhões de anos. Lucy terá caído de uma árvore, fracturou vários ossos, sofreu feridas internas e morreu, segundo um artigo publicado nesta segunda-feira na edição online da revista Nature.

A queda pode estar relacionada com as capacidades híbridas de locomoção de Lucy, cujo esqueleto tinha algumas características associadas ao bipedismo, tornando-o um dos fósseis mais interessantes do estudo da evolução humana.

“É irónico que o fóssil, que está no centro do debate sobre a importância do ambiente arborícola na evolução humana, tenha provavelmente morrido de ferimentos sofridos durante a queda de uma árvore”, diz John Kappelman, paleoantropólogo da Universidade do Texas em Austin (EUA), líder do estudo, citado num comunicado daquela instituição.

O fóssil de Lucy foi descoberto a 24 de Novembro de 1974 pelo famoso paleoantropólogo norte-americano Donald Johnson, no local arqueológico de Hadar. O esqueleto era de uma fêmea adulta com pouco mais de um metro de altura e continha alguns fragmentos do crânio, o maxilar inferior (mandíbula), parte das vértebras e das costelas, a maioria dos ossos dos dois braços, parte da bacia e alguns fragmentos dos ossos das pernas.

Cerca de 40% do esqueleto sobreviveu até hoje. Na altura, foi um dos fósseis mais completos de um hominídeo pré-humano. Ou seja, antes do género Homo, que terá surgido há menos de 2,8 milhões de anos. Por isso, não é de estranhar a felicidade da equipa.

“Na noite de 24 de Novembro, havia muito entusiasmo e celebrou-se a descoberta daquilo que parecia ser um esqueleto de um hominídeo bastante completo”, descreve-se num artigo de perguntas e respostas sobre este fóssil no site do Instituto das Origens Humanas da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos. Entre muita informação, o artigo explica o nome dado ao australopiteco. “Havia bebidas, dança e cantoria. A canção dos Beatles Lucy in the Sky with Diamonds estava a passar repetidamente. Algures naquela noite, ninguém se lembra quando ou por quem, o esqueleto foi apelidado de Lucy. O nome ficou.”

Na encruzilhada da evolução humana

A explicação de como a evolução humana aconteceu, nos últimos seis milhões de anos, está dependente dos fósseis e dos vestígios como os de Lucy. África é um ponto central nesta investigação. Foi neste continente que despontou primeiro o género Homo e, mais tarde, a nossa espécie, o Homo sapiens.

Entre os hominídeos pré-humanos, como os Ardipithecus e os Australopithecus, e o Homo sapiens, ocorreram uma série de mudanças anatómicas e culturais que são alvo de estudo. A capacidade de caminhar de forma erecta, o uso de utensílios, o desenvolvimento da fala são algumas características-chave que os cientistas pensam ter marcado a nossa evolução. A paleoantropologia tenta compreender como e quando se deram estas transições. A Lucy está numa destas encruzilhadas.

Os fósseis de outros Australopithecus afarensis tinham características antigas como um volume cerebral pequeno, uma crista óssea no crânio e ossos da face projectados para a frente, que os afastavam do género Homo. No entanto, a Lucy apresentava características que ajudaram a compreender a transição entre o estilo de vida arborícola e um estilo de vida bípede. A região pélvica da Lucy é mais parecida com o género Homo e o joelho indica que ela caminhava direita, como nós. Naquela região da África austral, a expansão das savanas nos últimos milhões de anos poderá ter sido um factor importante para o aparecimento deste tipo de locomoção.

Por tudo isto, o esqueleto tornou-se importante. “A Lucy é preciosa. Há apenas uma Lucy, e o objectivo é estudá-la o máximo possível”, diz Richard Ketcham, um geólogo da mesma universidade de John Kappelman, citado no comunicado. A oportunidade para um novo olhar sobre o fóssil surgiu em 2008 quando a Lucy fez uma tour pelos Estados Unidos e entrou no Laboratório de Tomografia Computacional de Alta Resolução por Raios-X da Universidade do Texas.

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“Quando me apercebi da extensão dos vários ferimentos, a imagem de Lucy surgiu na minha mente e senti uma empatia súbita que atravessou o espaço e o tempo”, diz o paleoantropólogo John Kappelman Marsha Miller/Universidade do Texas em Austin

Este equipamento é usado para analisar material geológico como rochas. Desta vez, em vez de rochas, analisou fósseis. “A tomografia computacional é uma técnica não destrutiva. Por isso, podem ver-se os detalhes e os arranjos internos dos ossos”, explica Richard Ketcham. Durante dez dias, todos os ossos de Lucy foram analisados.

As 35.000 novas imagens obrigaram a uma reinterpretação de fracturas dos ossos que até agora tinham sido associadas a processos ocorridos após a morte deste australopiteco. A ponta do úmero direito (osso do antebraço) tem uma fractura que não é costume encontrar-se nos fósseis, preservando uma série de fragmentos de osso afiados que se mantiveram no lugar. “Esta fractura compressiva surge quando a mão bate no chão durante uma queda, provocando um choque entre os ossos do ombro”, explica John Kappelman, que pediu ajuda ao cirurgião ortopédico Stephen Pearce, para interpretar a nova informação.

Além do úmero, a equipa identificou fracturas no ombro esquerdo, no tornozelo, no joelho esquerdo, na pélvis e na primeira costela. Segundo os cientistas, a melhor forma de explicar o conjunto de lesões é ter havido uma grande queda. De acordo com o contexto da paisagem local, tudo indica que a queda terá sido de uma árvore.

"Pobre Lucy!"

Segundo John Kappelman, é muito provável que o pequeno australopiteco procurasse alimento e pernoitasse nas árvores, onde estaria em segurança. Há estudos sobre chimpanzés que caem de árvores em que estes primatas batem no chão a uma velocidade de 60 quilómetros por hora. Lucy tinha menos de 30 quilos de peso, pelo que os cientistas calculam que terá caído de uma altura de 12 metros e que atingiu o chão a 56 quilómetros por hora: os pés bateram no chão primeiro, depois as mãos. O fóssil não mostra qualquer vestígio de que as fracturas tenham cicatrizado. Por isso, a morte terá sido quase instantânea.

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É uma “novidade triste, pobre Lucy!”, atira Yves Coppens com uma ponta de humor. Este famoso paleoantropólogo francês foi um dos responsáveis pela expedição em Hadar, onde se descobriram os vestígios do australopiteco. “Em geral, os primatas arborícolas são habilidosos, ágeis e têm equilíbrio. Depois de 20 anos a observá-los (chimpanzés, gorilas) no seu meio natural, nunca vi tal coisa [uma queda] acontecer”, diz à agência AFP. “Mas a priori não sou hostil a esta tese que, apesar de tudo, é tão válida como outra qualquer, principalmente se o investigador tiver argumentado bem.”

A equipa defende que a queda pode estar relacionada com as adaptações desta espécie ao bipedismo. “As adaptações que facilitaram a locomoção bípede comprometeram as capacidades dos indivíduos de treparem às árvores em segurança; esta combinação de características pode ter predisposto esta espécie a quedas”, lê-se no artigo da Nature. Para a equipa, encontrar traumas semelhantes noutros fósseis poderá ajudar a descortinar o estilo de vida de outros hominídeos.

Nunca vamos saber o que originou a queda de Lucy. Seria preciso estar naquele local, no meio de África, há 3,18 milhões de anos. Mas para John Kappelman, a compreensão de como ela morreu confere uma dimensão dramática a este ícone da paleoantropologia: “Quando me apercebi da extensão dos vários ferimentos, a imagem de Lucy surgiu na minha mente e senti uma empatia súbita que atravessou o espaço e o tempo. A Lucy deixou de ser um simples conjunto de ossos numa caixa e, na sua morte, tornou-se um indivíduo real: um pequeno corpo todo partido, abandonado à beira de uma árvore.”