Assim foi feito o acordo que afastou a direita do poder
Quando a 7 de Outubro, Jerónimo de Sousa assumiu a disponibilidade para apoiar um Governo do PS, muitos não perceberam o que estava a acontecer. O PÚBLICO revela as razões e os passos que tornaram possível o entendimento que abriu a porta a um Governo do PS apoiado à esquerda.
No próximo fim-de-semana, o PCP realiza a 40ª Festa do Avante!, num momento político em que decorrem nos bastidores em velocidade de cruzeiro as negociações para o Orçamento do Estado para 2017 entre a direcção comunista e o Governo liderado pelo secretário-geral do PS, Antonio Costa, um facto que resulta da estreia de um Governo apoiado à esquerda pelo PCP, pelo BE e pelo PEV.
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No próximo fim-de-semana, o PCP realiza a 40ª Festa do Avante!, num momento político em que decorrem nos bastidores em velocidade de cruzeiro as negociações para o Orçamento do Estado para 2017 entre a direcção comunista e o Governo liderado pelo secretário-geral do PS, Antonio Costa, um facto que resulta da estreia de um Governo apoiado à esquerda pelo PCP, pelo BE e pelo PEV.
A inédita solução de Governo que Portugal vive foi determinada pela disponibilidade do PCP para apoiar um executivo do PS anunciada pelo secretário-geral, Jerónimo de Sousa, ao princípio da noite de quarta-feira, 7 de Outubro de 2015, no final de uma reunião que levou à sede da Soeiro Pereira Gomes, o líder do PS, António Costa.
Desde logo, Jerónimo de Sousa afirmava que cabia ao PS “escolher entre associar-se à viabilização e apoio a um governo PSD-CDS ou tomar a iniciativa de formar um governo” próprio, o qual tinha, nesse momento, “garantidas condições para a sua formação e entrada em funções.” É certo que para que a experiência de entendimento à esquerda avançasse foi necessário também o concurso do BE, que seria oficializado na semana seguinte. Mas o passo decisivo coube aos comunistas.
O líder parlamentar do PCP, João Oliveira, confirma ao PÚBLICO que, “na reunião na Soeiro[sede nacional do PCP]” em que participou, houve “uma clarificação da perspectiva” do PCP, em que “o que foi transmitido ao PS corresponde à declaração”. E o membro do Comité Central Rúben de Carvalho garante que “a serenidade com que tudo foi feito mostra que no dia da reunião com o PS já havia a decisão tomada pela direcção do PCP”, enquanto, na sua opinião, “pelo contrário, a direcção do PS é que ainda não tinha decidido” por esta solução que “era a alternativa possível”, garante Ruben.
Se é um facto que oficialmente a direcção socialista ainda não tinha aprovado os entendimentos à esquerda, a verdade é que António Costa há muito o tinha decidido e até tornado público. Primeiro, sob a forma de moção às eleições primárias de 28 de Setembro de 2014, para a escolha do candidato do PS a primeiro-ministro, em que desafiou a liderança de António José Seguro. Depois, repetindo a promessa de romper o arco da governação e tentar construir um acordo de governo à esquerda.
“Costa já tinha dado alguns passos com as declarações” por si feitas, constata o investigador sobre história do PCP, Pacheco Pereira, considerando, porém, que “a diferença é que Costa contava ganhar as eleições e não perdê-las e isso acelerou o processo”. Para este investigador, “o acordo seria diferente se o PS fosse vencedor”. A vitória eleitoral da coligação PSD-CDS “deixa o PCP à vontade e o BE também” para aceitarem negociar. Mas Pacheco Pereira está convicto de que “o acordo tem a ver com a geração mais velha” da direcção comunista.
O factor Costa
Costa não se tinha limitado às palavras escritas e ditas. O PÚBLICO sabe que o líder do PS, que presidiu à Câmara de Lisboa entre 2007 e 2015, estabeleceu contactos prévios às legislativas com a direcção máxima dos comunistas, usando como emissários Bernardino Soares, que conheceu como líder parlamentar e com quem privou enquanto presidente da Câmara de Loures, e Carlos Humberto Carvalho, presidente da Câmara do Barreiro, com que travou conhecimento sólido quando este presidiu à Junta Metropolitana de Lisboa (2006-2013). Diligências que foram facilitadas pelo facto de Costa ter cimentado uma relação com o PCP na Câmara de Lisboa, o que não aconteceu com o BE.
É conhecida a desconfiança criada em Costa pelo facto de o então líder do BE, Francisco Louçã, ter assumido o compromisso de o seu partido entrar em acordo com o PS nas autárquicas de 2009, em Lisboa, e, no último momento, o apoio ter falhado. Aliás, a diferença de atitude de Costa para com o PCP e o BE está presente na expressão que já usou para definir a relação do Governo com estes partidos: “Com o BE temos grupos de trabalho, com o PCP trabalho de grupo.”
Ruben de Carvalho, que enquanto vereador em Lisboa entre 2005 e 2013 privou com Costa, considera mesmo que “se o líder não fosse o Costa, o PCP não tinha a mesma confiança” e frisa que “isso é natural”, pois “ele esteve sete anos a trabalhar na câmara com o PCP”. E na qualidade de interlocutor no acordo que juntou, pela primeira vez em 1990, comunistas e socialistas a governarem a capital, Ruben confessa: “O Jorge Sampaio deu-me muito trabalho no partido. Mas com o Sampaio era diferente, tínhamos andado ao estalo antes [quando o ex-Presidente era do MES]. Com Costa foi mais simples.” E explica mesmo que, para o PCP, “o PS de Costa é diferente”. E ainda que considere “ um exagero dizer” que o entendimento é facilitado pelo facto de Costa ser filho de um militante comunista, o escritor Orlando da Costa, Ruben de Carvalho adverte que “é evidente que as pessoas não são separáveis dos comportamentos, nem os comportamentos separáveis das pessoas”.
Se bem que o factor Costa tenha sido determinante para o PCP, a verdade é que este partido tentou acordos com o PS noutros momentos, garante o histórico dirigente Domingos Abrantes, para quem “o que há de novo é o PS ter optado, pela primeira vez, por uma aliança à esquerda” e ter recusado “viabilizar com a abstenção uma colaboração com a direita”. Quanto ao PCP, garante o conselheiro de Estado, este partido colocou “como objectivo central afastar a direita do poder e, no dia 4 de Outubro, as eleições abriram essa possibilidade, a direita estava em minoria”, logo “só havia governo de direita se o PS se entendesse à direita”.
Arredar a direita
A decisão de o PCP apoiar um governo do PS não parece ter origem em nenhuma teoria conspirativa. Tão-só foi movida pela vontade de arredar a direita do poder. “O PCP percebeu na campanha eleitoral que o seu eleitorado queria tudo menos Passos Coelho a governar”, afirma Pacheco Pereira, lembrando que o próprio “Jerónimo explicou que o acordo surgiu porque o PCP não queria permitir a continuidade de Passos e se o PCP deixasse que o PS se aproximasse do PSD, isso seria dramático para a esquerda”.
João Oliveira assume esta “leitura pragmática dos resultados eleitorais”. Assim, “depois de ter sido feita uma discussão sobre os pontos onde era possível convergir, foi possível dar-lhes tradução na Assembleia da República, afastando o PSD e o CDS do Governo e a moção de rejeição ao PS”, afirma. A mesma razão é corroborada por Domingos Abrantes: “O Governo PSD e CDS era o governo mais à direita que se propôs liquidar o 25 de Abril, basta ver o projecto que Passos Coelho tinha de rever a Constituição. O regime ia ser posto em causa e a Constituição era um empecilho. Agora há um compromisso do PS de não embarcar na aventura da revisão constitucional.” E o dirigente histórico insiste: “O que se conquistou não é pouco, mesmo que fosse apenas a suspensão da política, já era um ganho. A direita propunha-se acabar o seu trabalho. Conteve-se um processo.”
O líder parlamentar explica que o quadro político que se vive hoje tem a sua “razão de ser nos quatro anos anteriores, com o pacto da troika que destruiu o que destruiu” e provocou o crescendo de “luta que foi travada”. E conclui: “Se tivéssemos de fazer uma síntese, o que fizemos foi dar expressão à luta de quatro anos e aos resultados eleitorais das legislativas de 4 de Outubro. A capacidade institucional de afastar o PSD e o CDS do governo foi a tradução da luta de massas e da nova correlação de forças.”
Juntos, mas diferentes
Com o mesmo à-vontade com que explica a disponibilidade para apoiar o PS, o PCP assume o desprendimento em relação ao poder. “Não prevejo nem acho que seja plausível que o entendimento dure oito anos, o Governo terá um termo, não é uma solução eterna”, afirma Ruben de Carvalho que reconhece já terem existido “fricções”, mas considera que “não há nada de muito grave que se coloque entre o PCP e o Governo”. E, frontal, explica: “Uma das coisas importantes que esta solução tem é que não nos cria problemas de empregos. Podemos sair sem problema. A prazo, a situação não pode continuar assim e o PCP está preparado para isso.”
Até que o entendimento se desfaça, “o PCP está com a mesma atitude perante os problemas do país que sempre teve”, garante o membro do Comité Central, acrescentando que o PCP “apenas aprofundou o trabalho interno e a preparação de certos dossiers”, uma vez que agora tem acesso “a mais informação disponibilizada pelo Governo.” Uma coisa é ter um grupo parlamentar a trabalhar na oposição e outra é poder perceber a situação e a procurar e encontrar soluções”, conclui.
A noção de que a colaboração com o PS “é um entendimento limitado” está presente nas afirmações de Domingos Abrantes, que clarifica: “O PCP deu uma contribuição fundamental. Mas este acordo e esta política não correspondem ao que consideramos necessário para o povo português. Nós defendemos uma ruptura.” Também João Oliveira destaca as divergências entre comunistas e socialistas. “Os objectivos, a natureza e o compromisso com o povo do PCP são muito diferentes e distantes dos do PS”, sublinha, acrescentando: “Não prescindimos dos nossos objectivos, nem pensamos assumir os de outros ou impor os nossos aos outros.”
Daí que, diz o líder parlamentar, “o mais complexo e exigente tenha sido encontrar uma solução política”, até porque se tornou “claro desde o início que procurar fazer acordo sobre coisas que os partidos não podiam assumir era deitar por terra as condições para dar resposta imediata aos problemas do povo”. Deste modo, têm trabalhado “com a noção de que há muitas limitações e insuficiências” e a certeza de que “o PCP não chancela posições com que não concorda”, afirma João Oliveira, dando o exemplo da oposição ao “Orçamento Rectificativo, que serviu para entregar Banif ao Santander”, ou o das divergências sobre União Europeia: “O PS diz que é possível compatibilizar as regras e os compromissos europeus com o interesse do país, nós sentimos que regras e imposições da União Europeia são contraditórias com o interesse e com os problemas do país.” E deseja que este processo se resolva “com a superação da contradição feita no sentido da defesa do interesse nacional”.
Ligação às massas
Por outro lado, o PCP rejeita qualquer atitude populista. João Oliveira afirma que “pode parecer demarcação contracultura, porque a cultura dominante é de mediatização da política”, mas o PCP, recusando a mediatização, não tem “deixado de procurar soluções para problemas, nem deixado de apresentar propostas”. E conclui: “Sem precisarmos de transformar a nossa acção num espectáculo mediático e, sobretudo, rejeitando lógicas que depois se esvaem.” No mesmo sentido, Ruben de Carvalho sublinha que “o populismo é incompatível com a natureza de classe do PCP”. E exemplifica com as negociações com o PS sobre o regresso das 35 horas de trabalho semanal. “O PCP conhece a realidade, o BE não tem relação com a realidade, tem ideias exteriores à realidade”, garante, prosseguindo: “Quando dizemos que uma coisa é importante, é porque sabemos o que as pessoas estão a pensar. A ligação às massas não é um chavão do PREC. Não somos nós os dois, aqui sentados, que sabemos o que pensam os operários da Autoeuropa. Nós, no PCP, sabemos, porque estamos lá.”
A aposta do PCP é, segundo João Oliveira, conseguir “construir uma nova correlação de forças para responder aos problemas do povo”. Um objectivo que “não depende só da acção parlamentar”, garante o líder parlamentar, para quem, “este é um aspecto limitado e até secundário”, já que “o elemento transformador é a luta de massas”. E para que não haja dúvidas, lembra o Governo de Passos Coelho, para questionar: “O que teria acontecido se nos últimos quatro anos as pessoas tivessem abdicado? O elemento da luta é desvalorizado, mas é o eixo de tudo isto.”
E João Oliveira sublinha que, na última legislatura, “foram mais as lutas que se travaram sem resultados visíveis, mas se não fosse isso, o PSD e o CDS não teriam tido a erosão que tiveram”. E advoga mesmo que os dois partidos de direita teriam “levado mais longe a sua política e não tinham perdido eleitoralmente”, para conclui: “Será que o Governo de hoje se sentia pressionado a dar respostas e teria as perspectivas que tem, se não fosse o desenvolvimento da luta? A luta de massas é a origem das condições políticas que existem.”