O que resta das políticas culturais
A gestão cultural não tem mal algum e deve ser equacionada. O problema está quando por falta de política cultural a gestão acaba por vampirizar esse lugar que é o único que dá sentido à imanência do cultural.
Um dos grandes equívocos das sociedades contemporâneas é o que confunde política cultural com gestão cultural. Este equívoco surge quando os governos – inclusivamente os de esquerda – se alheiam da política cultural como serviço público. Fazem-no por duas razões: redução dos recursos financeiros e culturalização do mundo (tudo passou a ser cultura fossem os cânones literários, fossem as receitas gourmet).
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Um dos grandes equívocos das sociedades contemporâneas é o que confunde política cultural com gestão cultural. Este equívoco surge quando os governos – inclusivamente os de esquerda – se alheiam da política cultural como serviço público. Fazem-no por duas razões: redução dos recursos financeiros e culturalização do mundo (tudo passou a ser cultura fossem os cânones literários, fossem as receitas gourmet).
Isso teve como consequência o retorno do princípio do laissez-faire, desde que este deixar fazer seja grandiloquente, espectacular, de intenção globalizante. Simultaneamente, exigiu-se à arte que fosse comunicante, uma tarefa que se sabe cheia de subtilezas. Estamos numa situação que é tanto de impasse como de letargia disfarçada por uma trip tecno-financeira, só suspensa pelo confronto mediático de catástrofes ou, para uma pequena minoria, pelo embate com produções elas também minoritárias, praticamente em regime de auto-gestão.
É assim que fenómenos que julgávamos em decrescimento - como o racismo, a xenofobia, golpes de Estado da autoria de partidos de direita e de extrema-direita, tentações de totalitarismo provindas de populismos sul-americanos, europeus e africanos - regressam em força e agora acompanhados de formas perversas de um multiculturalismo light, de um assistencialismo social e de um entretenimento de fusão. Não que a cultura pudesse salvar o mundo, mas a ausência de sentido para a política, onde se inclui um sentido ou sentidos para a política cultural, criou um vazio que todas as expressões do recalque combinadas com o medo vieram ocupar. E isto apesar da gestão cultural cada vez mais decalcada da gestão financeira de contornos neoliberais.
A gestão cultural tida apenas como a gestão de espaços, de calendários, de recursos financeiros e humanos, assim e em abstracto, não tem mal algum e deve ser equacionada. O problema acontece quando por falta de política cultural a gestão acaba por vampirizar esse lugar que é o único que dá sentido à imanência do cultural e à gestão e que é a política. E fá-lo invertendo todos os termos da política cultural, colocando a gestão ao serviço do populismo, como por exemplo transformando toda a actividade cultural em entretenimento ou implementando a gratuitidade nos espectáculos em vez de uma política social de preços e portanto banalizando a relação com a criação artística que exige estudo, hábitos culturais, suspensão do conhecimento e da fruição quotidiana.
Assim foi a gestão cultural ocupando o lugar do que era a política cultural, que ou deixa ela própria de ter sentido ou pode permanecer por mais algum tempo se – e isto é o grande paradoxo de hoje em dia – tiver recursos financeiros substantivos. Só os governos ricos podem ainda reivindicar ter políticas culturais, mas que estarão em conflito com a gestão cultural, não restando aos governos pobres outra coisa senão lembrarem-se com nostalgia da energia dos tempos da modernidade.
Ensaísta, programador