Quando a voz se cala, também a guitarra portuguesa canta

Ligada umbilicalmente ao fado, a guitarra portuguesa pouco tem ousado para afirmar a sua autonomia. No entanto, surgem sinais de que há vida para além do acompanhamento. A família Parreira, José Manuel Neto, Marta Pereira da Costa, Miguel Amaral e Luís Varatojo são disso exemplo.

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Miguel Manso

Continua a tocar em casas de fados e a acompanhar em concerto algumas das vozes maiores do fado, mas hoje António Parreira dedica-se sobretudo a passar o seu conhecimento e o legado maior da guitarra portuguesa aos 22 alunos – a quem ensina a domar o instrumento que Carlos Paredes milagrosamente fundiu com a ideia musical do ser português. Talvez porque António Parreira, um dos grandes mestres da guitarra, não teve a vida facilitada por uma escola oficial como a do Museu do Fado, onde lecciona. Nascido no Monte das Taipas, Santa Margarida da Serra (concelho de Grândola), em 1944, começou a admirar a guitarra portuguesa que o tio mantinha guardada numa arca, tirada do sossego apenas para “tocar o Fado Corrido no quinto ponto”. Era uma admiração que o tio pretendia que se fizesse à distância. António, com sete, oito anos, estava proibido de tocar. Nada mais tentador: sempre que o tio saía de casa e ia cuidar da sua vida, o miúdo esgueirava-se até lá, roubava a guitarra à arca e reproduzia as posições dos dedos que decorara ao pormenor.

Acabaria depois por encomendar da Casa Santos Beirão, em Lisboa, um método que começou a estudar e a aplicar, pela calada, na guitarra do tio. Aprendendo pelos seus meios, sem instrumento próprio, procurava conhecimento onde ele aparecia. Uma das suas fontes seria um programa semanal de fados e guitarradas na Emissora Nacional, transmitido à hora de almoço de quinta-feira e repetido nas noites de sábado. “No campo não havia telefonia”, recorda ao PÚBLICO, “mas decorei os horários do programa, andava quatro quilómetros do Monte das Taipas até à aldeia mais próxima, Cruz de João Mendes, e pedia às pessoas para porem àquela hora na Emissora para eu ouvir os fados.” A boa memória, aliada à vontade sôfrega de aprender, levava-o a memorizar os quatro fados de cada programa para depois os estudar em casa.

À época, era comum na tabernas alentejanas haver guitarras portuguesas para acompanhar as cantorias. António Parreira tornar-se-ia um frequentador habitual destes espaços, encontrando-se com outros apaixonadas pelos fados e pelas guitarradas. O seu jeito especial não demorou a ser notado na região, sendo levado aos 15 anos para a Tasca do Faúlha, em Santiago do Cacém, passando para a guitarra clássica durante três anos, a fim de acompanhar António Chainho. De regresso da chamada para combater no Ultramar, António Parreira voltaria às tabernas da terra, onde foi descoberto por um lisboeta conhecedor do circuito das casas de fados, ao cruzar-se com o músico numa tasca onde entrara para mandar cozinhar uma peça de caça. Enquanto esperava pelo coelho, pela lebre ou pela perdiz – a memória de António já não vai tão longe –, encantou-se com a desenvoltura daquele guitarrista perdido “num ermo” alentejano.

Foi esse homem, Augusto Damásio, que pegou no carro e regressou ao Alentejo quando soube que na Guitarra da Madragoa precisavam de um guitarrista. E foi ele quem tratou de pedir uma guitarra emprestada para que, a 9 de Maio de 1969, o músico pudesse estrear-se – “eu não tinha guitarra nem roupa”, confessa António Parreira, “tinha apenas um fato”. Embora soubesse de cor todos os fados mercê da sua aprendizagem auditiva, o guitarrista tremia a cada noite, uma vez que não lhes conhecia os nomes. Os fadistas chegavam, pediam-lhe o fado Vitória ou qualquer outro, e Parreira virava-se para o violista José Inácio, esperando que este lhe descodificasse o tema. A partir daí tudo estava bem.

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Sendo a aprendizagem da guitarra algo que tradicionalmente se fazia através da transmissão directa de conhecimento, António Parreira começou então a frequentar as casas de fados, com o cuidado de se posicionar sempre numa cadeira em frente ao guitarrista, para observar de perto como cada um punha em prática a sua técnica. Mas, assim que começou a ser reconhecido como guitarrista da praça, rapidamente percebeu que o alerta era dado e os músicos viravam as costas para lhe esconderem a sua arte.

Álbum de família

Hoje estas histórias não abundam, mas os filhos de António Parreira, Paulo e Ricardo, igualmente guitarristas, seguiram essa regra de ouro que consiste em ir atrás dos músicos de referência e colher os ensinamentos directamente da fonte, perguntando como se faz isto e aquilo, como se toca este ou aquele tema. Ricardo, que começou a brincar com a guitarra portuguesa em frente às gravações em cassete VHS das passagens frequentes do pai pela televisão, aprendeu os rudimentos com António e Paulo (o irmão mais velho) e, aos 16 anos, foi autorizado a fazer uma digressão de Verão com Mafalda Arnauth. Pouco depois, seria um dos guitarristas a integrar o elenco da Mesa de Frades, em Alfama. E aproveitava para ir ver na vizinhança José Luís Nobre Costa ou Fontes Rocha – uma das maiores referências da guitarra portuguesa, de enorme talento e condizente disponibilidade para ensinar os mais novos. Era também a Fontes Rocha e Carlos Gonçalves que Paulo tinha recorrido anos antes, depois de ter decidido ir “para o terreno” aprender o reportório tradicional. “Não era como hoje, que um guitarrista ouve uns discos e está lá tudo. Na década de [19]80 não havia nada. Eu ia para uma colectividade em Odivelas, a Ajax”, recorda, “e tocava até às cinco da manhã. Eles pediam-me os fados e eu tinha de os tocar”.

“Hoje não vejo isto a acontecer”, lamenta Ricardo Parreira, 29 anos, guitarrista que habitualmente vemos a acompanhar Hélder Moutinho ou Gisela João, queixando-se do pouco interesse que as novas fornadas de guitarristas parecem ter por ir escutar e sorver conhecimento dos mais tarimbados na execução do instrumento que, em meados do século XIX desceu dos salões da corte portuguesa para as ruas de Lisboa, reclamado pelo povo. “Hoje vejo uma data de pavões, a pavonearem-se com uma guitarra e depois vamos ouvir e as coisas não têm sumo”, critica Ricardo. Daí confessar-se receoso que num futuro não muito distante a guitarra de Lisboa possa ter-se adulterado. “Daqui a 30 anos, a referência continuará a ser o Armandinho?”, pergunta-se.

Armando Freire (Armandinho, 1891-1946) é o pai da guitarra de Lisboa. A ele se deve um número muito apreciável de grandes fados tradicionais, assim como a fixação de um estilo de acompanhamento dos fadistas em que à guitarra cabe estabelecer um diálogo com a voz (não se remetendo a um lugar de sombra) ou o estabelecimento definitivo da morfologia da guitarra tal como hoje a conhecemos. A sua técnica é ainda hoje motivo de espanto entre os guitarristas, não sendo absolutamente claro como alcançava alguns sons – parte do segredo dever-se-ia a usar as unhas naturais, o que implicava que “gastando” as unhas tinha de esperar que crescessem para poder voltar a tocar.

“Sempre que vejo qualquer guitarrista, percebo que somos um pequeno ramo daquilo que o Armandinho foi”, diz Ricardo. “O Armandinho é uma raiz da guitarra portuguesa. Tudo o que fazemos, se o formos ouvir, já está lá. É impressionante.” Em Guitarra Portuguesa, álbum em que António Parreira cumpre o sonho de partilhar uma gravação com os dois filhos, Armandinho não podia faltar. Juntamente com Jaime Santos, Artur Paredes, Domingos Camarinha, Francisco Carvalhinho, Fontes Rocha e José Nunes, foi um dos guitarristas que António quis gravar, neste álbum “baseado na tradição que os nossos antepassados nos deixaram” (Carlos Paredes não foi incluído apenas por entenderem que seria mais difícil adaptar a sua linguagem “à maneira de tocar de Lisboa”). Guitarra Portuguesa confirma e documenta esta convicção da família Parreira de que cada guitarrista é uma peça fatalmente ligada ao passado e a uma tradição que o precede e deve ser mantida viva.

José Manuel, filho da tradição

Quando Ricardo Parreira fala num número reduzido de guitarristas a pugnar pela manutenção destas referências primordiais da guitarra portuguesa, estará certamente a incluir nesse grupo José Manuel Neto. Tons de Lisboa, o muito aguardado primeiro álbum do guitarrista que se tem distinguido por acompanhar Aldina Duarte ou Carlos do Carmo, mas cuja fidelidade a Camané é crucial para o estabelecimento da linguagem do fadista, visita os reportórios da maioria dos autores gravados pelos Parreira, propondo contar o seu percurso no fado a partir dos 11 temas escolhidos. Desde logo, ao fechar o disco com A carta do adeus, tema resgatado aos vinis da sua mãe, a fadista Deolinda Maria, deixando a guitarra nas mãos do intérprete original, Francisco Carvalhinho.

Foi precisamente na casa de fados de Deolinda Maria que José Manuel Neto se estreou. Tendo começado a tocar guitarra naturalmente aos 13 anos, havia de ter como um dos seus mestres o mesmo José Inácio que António Parreira encontrou na sua chegada a Lisboa. José Manuel, que conhecia apenas os temas do reportório da sua mãe, recorria ao violista como salvação para suprir as suas falhas nos fados tradicionais – “tinha muita vergonha de tocar porque não sabia os reportórios”, confessa. Mas durante os primeiros tempos, então com 14/15 anos, não levou especialmente a sério a prática do instrumento. Até que, tal como ouviu contar que acontecera com Domingos Camarinha ao ver tocar Armandinho, deslumbrou-se com aquilo que a guitarra portuguesa podia fazer, numa certa noite em que Pedro Caldeira Cabral apareceu na Toca para tocar com José Inácio e Paquito. “Quando ouvi os três a acompanhar o fado, aquilo bateu-me de uma certa maneira: mas pode fazer-se isto com uma guitarra? Fiquei deliciado com aquilo, fiquei doido.”

Se foi a acompanhar fados que José Manuel Neto se deslumbrou com Pedro Caldeira Cabral, o grande percurso deste na guitarra portuguesa tem sido dedicado sobretudo à exploração e à composição para a guitarra como instrumento solista, seguindo as pisadas de Carlos Paredes, mas construindo um outro raro reportório que se propõe autonomizar a guitarra do jugo do fado, do papel de acompanhador da voz fadista que é o seu habitat natural. “Depois desse momento de revelação, comecei a acordar às oito ou nove da manhã para tocar, foi uma explosão de vontade de conhecimento”, lembra José Manuel Neto. E seguiu então a sacrossanta via de escutar atentamente discos e cassetes para reproduzir as guitarras que ouvia, recorrendo aos músicos para tirar as dúvidas de tudo quanto era menos evidente.

Tão rápida foi a evolução e afirmação de José Manuel Neto que rapidamente começou a rodar por várias casas de fados e a substituir Carlos Gonçalves, um dos últimos guitarristas de Amália Rodrigues, na antiga Adega Machado, assim como Manuel Mendes n’O Faia. Fixando-se depois na Viela e no Sr. Vinho, onde esteve nove anos, tornar-se-ia próximo de muitos dos cantores mais importantes da sua carreira, como Camané, Aldina Duarte, Mariza, Ana Moura ou Maria da Fé. Acabou por deixar o Sr. Vinho convidado por Mísia para a acompanhar na sua carregada agenda internacional. “Nessa altura, era a única pessoa que tinha muito trabalho lá fora”, diz. “Demos várias voltas ao mundo. E a linguagem musical da Mísia era fantástica – o Ricardo Dias, que fazia os arranjos, tratava muito bem o fado. Aquele disco de 1998, Garras dos Sentidos, foi incrível para mim e abriu-me a cabeça.”

Ao regressar, mais tarde, às casas de fados, a sua vida nunca mais teve sossego. As solicitações para concertos eram tantas que as passagens pelo Embuçado e pel’O Faia tornaram-se quase uma tormenta. A cada ausência, como é prática no quotidiano das casas de fados, passava sempre pelo problema de ter de arranjar um guitarrista substituto. Essa azáfama constante de um intérprete altamente requisitado havia de afastá-lo durante muitos anos de qualquer gravação em nome próprio. “Com um fluxo de trabalho bastante elevado, fui deixando isso um bocado para trás – é a tendência de deixar as nossas coisas por fazer e antes fazer as coisas dos outros”, explica. “Com muito gosto, porque uma das coisas que mais gosto de fazer é acompanhar.”

Nessa ocupação permanente de acompanhador, o momento das guitarradas a meio do concerto é um clássico, permitindo aos músicos mostrarem a sua mestria para lá de preencher as pausas e responder aos fadistas. Quando Luís Varatojo, que integrou a guitarra portuguesa na música de pendor pop d’A Naifa, convidou José Manuel Neto para apresentar um concerto em 2010, no ciclo Meia-Noite e Uma Guitarra, este hesitou na aceitação, dizendo não saber o que tocar, duvidando de que pudesse ter reportório para um recital. Mas somadas todas as guitarradas que vinha interpretando ao longo dos anos, instrumentais espalhados por vários concertos, era evidente que matéria-prima não faltaria a José Manuel Neto. Foi esse momento de organização de reportório que começou, à distância, a preparar Tons de Lisboa.

O guitarrista reconhece que durante muito tempo dizia “penso nisso mais tarde” e esse “mais tarde” foi-se esticando e esticando. “E às vezes nunca acontece”, comenta. “Conheço grandes guitarristas que nunca o fizeram ou fizeram-no muito pouco, caso do Fontes Rocha, que foi um excelente guitarrista, fez todos aqueles êxitos que conhecemos da Amália, tinha uma criatividade fantástica e, salvo erro, gravou um single e nunca registou um trabalho a solo. Precisamente porque estamos sempre a tocar.” António Parreira reforça essa ideia, lamentando que Fontes Rocha, “um homem daqueles, não tenha um CD de guitarradas”. “Mas depois tem uma data delas gravadas, aqui e ali, que dá para cinco ou seis CD.”

Juntamente com Carvalhinho, Manuel Mendes ou o precocemente desaparecido Alcino Frazão, Fontes Rocha é uma das referências fundamentais de José Manuel Neto. Conheceu-o mais aprofundadamente aos 23 anos, ao entrar para o Sr. Vinho. “Apaixonei-me como toda a gente se apaixona por ele”, recorda.

A obsessão de Marta

É em Fontes Rocha que Marta Pereira da Costa pensa sempre antes de subir a palco. “Agradeço sempre as vezes que fui a casa dele, todos os minutos em que ele, sem se aborrecer, nunca me disse que não lhe apetecia ou estava cansado, estava sempre com vontade de tocar e de partilhar.” O incentivo permanente do mestre, o repto para que nunca desistisse de seguir o seu percurso pela guitarra, e a técnica aliada ao bom gosto de Fontes Rocha são referências que Marta coloca a par dos seus outros dois grandes professores: Carlos Gonçalves e Mário Pacheco. Uma das raríssimas intérpretes de guitarra portuguesa no feminino no mundo do fado, Marta Pereira da Costa tinha o seu futuro virado noutra direcção quando o seu pai, um apaixonado pelo fado e pela guitarra portuguesa, lhe pediu que experimentasse o instrumento.

Tinha 18 anos, estava prestes a concluir estudos avançados de piano e quase a ingressar no curso de Engenharia Civil. Foi um rastilho imediato e cujas consequências não tardaram em manifestar-se. Assim que tocou na guitarra, Marta descobriu uma paixão arrebatadora, desleixou-se no piano, ficou obcecada pela obra de Carlos Paredes – comprou todos os discos, começou por aprender Dança palaciana e quis tocar todas as peças – e começou a passar todas as noites nas casas de fados a inebriar-se com os guitarristas. “Ficava até ao fim, depois ia para o Técnico e o meu pai começou a dizer-me que não podia ser, não podia haver aqueles abusos, não podia andar nas noitadas.”

Assim que começou a mergulhar na obra de Carlos Paredes, a natureza obsessiva de Marta levou-a “a querer saber tudo”. Para isso, visitou, por exemplo, Ricardo Rocha, o mais notável dos guitarristas depois de Paredes e Caldeira Cabral a procurar criar um reportório solista para o instrumento, enveredando por uma exploração mais próxima da música escrita contemporânea do que do reportório popular das guitarradas ligadas umbilicalmente ao fado – para Paulo Parreira, trata-se de “um caso à parte na história da guitarra portuguesa, que vai marcar o instrumento como ninguém marcou”. “Ainda hoje”, revela Marta, “se quero pegar num disco para ouvir guitarra portuguesa, ponho-me a ouvir deliciada qualquer álbum do Paredes.”

O desejo de uma rápida progressão técnica levou a uma tal dedicação a raiar o excesso que chegou a trabalhar incessantemente em cima de lesões. “Tive várias tendinites”, recorda. “E no princípio a fossanguice era tanta que não me importava com as dores, achava que tinha de as aguentar. Claro que foi um erro estúpido porque estive um ano a tratar de uma tendinite muito chata e não queria parar de tocar. Mas tive de abrandar porque estava complicado.” Com António Chainho aprendeu a fazer um trabalho de preparação física para tocar o instrumento, que passa por coisas tão simples quanto massajar os dedos. No seu caso, no entanto, desenvolve algum treino específico. “A minha estrutura de mãos não é a mesma do que a de um homem, tenho os dedos fininhos, não tenho músculos nas mãos, e para tocar guitarra é preciso força e resistência para peças com algum virtuosismo”, explica. “Por isso faço alguns exercícios de fortalecimento e quando estou em casa o meu trabalho de preparação é muito técnico, mais do que prazer em tocar uma peça do princípio ao fim” – uma metodologia que denuncia também o seu treino clássico.

Marta chegou a exercer Engenharia durante oito anos, mas quando o então marido Rodrigo Costa Félix a desafiou a tocar na íntegra os acompanhamentos do seu álbum Fados de Amor (2012), pôs em pausa a sua vida profissional e durante um ano preparou-se para a gravação. Com uma condição: se o resultado não fosse satisfatório, Rodrigo ligaria a Mário Pacheco, José Manuel Neto ou Luís Guerreiro para assumir a guitarra do seu disco. “Perdi o medo, arregacei as mangas, fui ouvir não sei quantas versões de cada fado tradicional que ele ia cantar, toquei não sei quantas vezes cada um dos temas, pensei muito nas introduções e foi um trabalho muito obsessivo.” Quando terminou todo este processo e gravou o disco, tornando-se a primeira mulher a assumir o acompanhamento de um álbum de fado, percebeu que a felicidade que dali extraía se sobrepunha a qualquer outra ocupação.

O entusiasmo e a certeza de que para melhorar teria de investir na guitarra a 100% levou-a a arriscar a profissionalização em seguida. Talvez devido à sua formação anterior como pianista e ao amor primordial pela obra de Carlos Paredes, embora trabalhe com regularidade em casas de fados enquanto acompanhadora, o seu claro objectivo foi sempre o de desenvolver um percurso solista. A sua primeira ideia discográfica, um pouco à semelhança do que fizeram os Parreira e José Manuel Neto, passava por “recuperar os temas antigos que ninguém tocava, dos grandes guitarristas”. “Depois deixei essa ideia porque há guitarristas hoje com uma técnica fantástica, muito superior à minha, que têm feito algumas gravações. Não ia acrescentar nada por aí.”

Em vez disso, ao procurar a sua própria voz no instrumento, tomou mestre Chainho por referência, como alguém que tem cruzado a guitarra com sonoridades brasileiras ou indianas, colocando a guitarra em contextos estranhos ao fado. Daí que, fazendo da guitarra o fio condutor do seu álbum homónimo, editado em Maio, e com arranjos de Filipe Raposo, Marta Pereira da Costa passe pelo fado (com a participação de Camané), por temas de Rui Veloso, Dulce Pontes, Pedro Jóia e Mário Laginha, colaborações com o baixista camaronês de jazz Richard Bona e a cantora iraniana Tara Tiba, e quatro criações da sua própria pena. “Tinha de ter as minhas músicas, a minha linguagem, a minha maneira de criar e de me exprimir”, diz, confirmando o quanto este disco tem de afirmação. “Quero sempre sentir a aprovação por parte dos guitarristas”, confessa. “Tenho vontade de mostrar que também sei tocar, que não sou só uma menina bonita com uma guitarra. Não quero ser esse macaquinho de circo.”

Simbolicamente, Marta Pereira da Costa incluiu ainda um tema de Carlos Paredes. A sua primeira razão para toda esta caminhada.

A guitarra sem fado

A obra ímpar de Carlos Paredes é também a fonte de onde brota o trajecto na guitarra de Miguel Amaral. Paredes sempre tinha feito parte das preferências de pai e tios, e Miguel cresceu com os clássicos do guitarrista de volta dos ouvidos, mas só aos 17 ou 18 anos, quando voltou a ouvir os discos, percebeu que aquela música lhe exigia pegar numa guitarra com um objectivo preciso: conseguir tocar as Variações em Ré Maior. Dirigiu-se a um lugar de peregrinação do fado amador, onde um violista lhe recomendou procurar Samuel Cabral, uma das grandes referências da guitarra no Porto, cidade natal de Miguel Amaral. Através de Samuel Cabral, Miguel acabaria por aproximar-se de Fontes Rocha.

A ligação entre os dois tornar-se-ia tão forte que começou a viajar quinzenalmente para Lisboa para se encontrar com Fontes Rocha – “visitava-o em casa, passávamos a tarde a conversar e a tocar”, recorda. E em pouco tempo, sempre que Mário Pacheco – dono do Clube de Fado onde Fontes tocou durante os últimos anos da sua vida – se ausentava, Miguel era chamado para se juntar ao elenco da casa e tocar com Fontes. Em casa do guitarrista, conheceu também o neto Ricardo Rocha, o instrumentista mais próximo da abordagem que foi elegendo para o seu percurso. O interesse e o estudo levou-o ainda até Pedro Caldeira Cabral.

Depois do amor inaugural pela música de Paredes, Miguel aprendeu sozinho a tocar os temas de Ricardo Rocha e foi afinando a sua natureza guitarrística ao frequentar o Curso Livre de Composição na ESMAE, dirigido pelo grego Dimitris Andrikopoulos, responsável por “uma outra perspectiva e uma outra vertente académica” da música que o influenciou.

Andrikopoulos seria depois um dos autores a quem Miguel Amaral encomendou algumas das peças que compõem o seu álbum de estreia, Chuva Oblíqua (2013). “Foi o documento de uma experiência de dois ou três anos, um período em que andava muito embrenhado nesse tipo de linguagem.” Nos vários recitais que antecederam o álbum, com a interpretação de temas de Pedro Caldeira Cabral, Ricardo Rocha, Carlos Paredes, Armandinho e José Fontes Rocha, Miguel vinha anunciando o legado da guitarra que pretendia invocar, mas com a gravação de Chuva Oblíqua tornava-se claro que imperava a ideia de criar o seu próprio reportório e não se limitar ao lugar de executante.

Com cinco temas da sua autoria, o álbum era completado por criações inéditas de Andrikopoulos, Igor C. Silva, Daniel Moreira e Mário Laginha. A relação construída com Laginha, iniciada na peça de Ricardo Pais Sombras, havia depois de conduzir ao nascimento do Novo Trio do pianista, pensado para explorar a musicalidade da guitarra portuguesa. À semelhança do que Bernardo Couto vem fazendo com o Lisbon String Trio, Miguel Amaral avança nesse trio com a guitarra para terrenos do jazz. Tal como os outros guitarristas, a profissionalização de Miguel depende de tocar fados diariamente, património com que gosta de trabalhar devido à atracção que assume pelo esteio dos grandes acompanhadores que criaram a escola da tradição do instrumento. Mas recusa fazê-lo ao lado dos nomes maiores do actual circuito fadista. Para não embarcar em digressões intermináveis que lhe deixariam pouco tempo para insistir no seu percurso solista ou erudito, mas também porque entende que “a maior parte do que agora se faz segue um caminho” a que torce o nariz. “Viver isso uma vez ou outra, está bem. Mas viver intensamente algo com que não me identifico pode ser muito penoso.”

Cantores, promotores, todo o mercado, acredita, está pouco interessado em ouvir apenas fados. E por isso fala de uma música baseada no fado, mas mais abrangente, que se distancia do acompanhamento do fado que lhe interessa, “um tipo de linguagem que nada tem que ver com um passado que acho riquíssimo”. Mas a música que quer fazer, a solo ou com formações como o Novo Trio, “é uma música tão mais exigente” que implica repensar o instrumento. “É preciso libertarmo-nos de tudo, para depois irmos buscar tudo o que é preciso para conseguir superar as dificuldades.” Ou seja: primeiro, esquecer a tradição a que a guitarra se encontra vinculada; depois, trazer toda a sorte de músicas para abordar o instrumento. No fundo, diz Miguel, “é preciso criarmos a nossa própria escola”.

Ao mesmo tempo que lamenta a escassez de guitarristas a empreender um caminho semelhante, que pense a guitarra como um violino ou um piano, Miguel Amaral acredita que, mesmo que possa parecer inglório – como o diz Ricardo Rocha –, tem de ser feito. E lamenta: Carlos Paredes continua a ser desconhecido nos Conservatórios portugueses, o poder de atracção da guitarra continua a dar-se por via do fado, o entusiasmo dos estudantes de composição por um instrumento “novo” esbarra no seu total desconhecimento das características da guitarra. Continua quase tudo por fazer. Mas mais um passo importante pode estar a ser dado por Miguel. Depois da estreia em Helsínquia do concerto Fado Barroco, em que compôs uma peça para guitarra portuguesa e ensemble barroco para os Músicos do Tejo, tenciona agora juntar mais dois ou três andamentos e terminar um concerto para a mesma formação.

Guitarra com electrónica

Nem só na música erudita a guitarra portuguesa começa a existir fora do fado. Na música popular portuguesa há já alguns anos que vem surgindo nos palcos por onde passam Óquestrada ou Frankie Chavez, tem sido objecto de experiências mais atípicas por Nuno Rebelo ou M-Pex, e mais recentemente é fácil descobri-la nas canções de Marafona, Criatura ou Retimbrar. Mas terá sido com A Naifa que a guitarra teve o mais expressivo movimento de autonomia neste sentido. Luís Varatojo nunca tinha tocado o instrumento quando, juntamente com João Aguardela, começou a trabalhar no segundo disco do projecto Linha da Frente. Percebendo que tinham em marcha um disco igual ao primeiro, acordaram que seria preferível “pôr uma tónica mais portuguesa em cima daquela música”. “E quando falámos disso lembro-me de ter avançado que uma forma de sair daquele sítio era tocar guitarra portuguesa em vez de guitarra eléctrica. Foi uma irresponsabilidade.”

Irresponsabilidade porque, na altura, Varatojo não tinha sequer mexido numa guitarra portuguesa. Pouco depois, sabendo da conversa, a família resolveu presenteá-lo no aniversário com uma guitarra. E aquilo que poderia não ter passado de uma ideia que se esfumaria com o tempo tomou, afinal, uma forma concreta. “Naqueles primeiros tempos”, recorda, “viciei-me mesmo no som da guitarra, não quis fazer outra coisa.” E só então, embrenhado no instrumento, partiu à descoberta extasiada da discografia de um homem que tinha visto em concerto numa longínqua Festa do Avante! da sua adolescência. De Carlos Paredes tinha retido a “presença em palco, a cabeça em cima da guitarra, aquela junção do homem com o instrumento, muito físico, um bocado rock – nada que ver com os guitarristas de fado que tocam de perna traçada”.

Pensando A Naifa como uma formação rock – bateria, baixo e voz – em que a guitarra simplesmente passava a ser a portuguesa, “uma banda de fado”, como lhe chamaram, Varatojo recusou, no entanto, a tentação simplista de abordar o cordofone como a guitarra eléctrica já sua velha conhecida. Em vez disso, desde que o grupo arrancou em 2003, o seu caminho foi o de estudar a história do instrumento, respeitar a afinação própria, ir à procura da técnica, estudar através dos manuais a que conseguiu deitar a mão – primeiro, da famosa série do professor Eurico Cebolo, depois, com manuais antigos cedidos pelo Museu do Fado – e adoptar a unha postiça que é obrigatória na execução dos guitarristas.

“Sobretudo no indicador”, explica, “não se usa uma unha comprada. Cada um tem a sua”. E exemplifica com Carlos Gonçalves, o guitarrista a quem recorreu já no terceiro álbum d’A Naifa para tirar a limpo alguns pormenores técnicos, músico que sempre tocou com uma unha feita de carapaça de tartaruga; Varatojo, actualmente, recorre a um cartão multibanco recortado.

Optando por uma guitarra de Coimbra afinada por Lisboa, passou os dois primeiros anos a tentar perceber como preparar a guitarra portuguesa, acústica, para palcos em que tinha de se bater com uma bateria e um baixo eléctrico. E isto porque Varatojo nunca lhe quis roubar o timbre nem a característica do instrumento, e portanto ao procurar tornar o som mais robusto não queria sacrificar o timbre ou a sonoridade naturais. Em 2006, ano de edição de 3 Minutos Antes de a Maré Encher, segundo álbum do grupo, tinha já estabilizado no dispositivo que ainda hoje utiliza no duo Fandango, nome que parte da música popular portuguesa e parte ao encontro da electrónica, do easy listening ou da música ambiental.

Apesar de ter aprendido com Carlos Gonçalves cerca de 50 fados tradicionais, Luís Varatojo nunca se dedicou a acompanhar fados. O seu interesse está em fazer da guitarra, tal como José Manuel Neto, “um instrumento que canta”. E esse é ainda o grande desafio que se apresenta à guitarra portuguesa: assumir ela o canto, dispensando também a voz que acompanha. A classificação do Fado como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO teve, por isso, no entender de Miguel Amaral, “um efeito muito perverso para o instrumento: prendeu-o ainda mais àqueles tentáculos [do fado]”. Mantém-se a grande questão: terá a guitarra portuguesa capacidade para sobreviver fora do fado ou será sempre como um peixe que ousa vir fora de água mas nunca poderá verdadeiramente atrever-se a mudar de meio ambiente?