André Jorge, a Cotovia
Devo-lhe pessoas e muitos livros, mas também o exemplo de quem ao longo de 28 anos não cedeu a extorsões nem à sucata
1. Devo várias pessoas a André Jorge e, como qualquer leitor de português, muitos livros que nunca vão acabar. Mas também o exemplo de quem ao longo de 28 anos não cedeu a extorsões nem à sucata. Morreu a 19 de Agosto de 2016, após uma longa luta contra um linfoma.
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1. Devo várias pessoas a André Jorge e, como qualquer leitor de português, muitos livros que nunca vão acabar. Mas também o exemplo de quem ao longo de 28 anos não cedeu a extorsões nem à sucata. Morreu a 19 de Agosto de 2016, após uma longa luta contra um linfoma.
2. Conhecemo-nos pelo fim dos anos 1990. Uma década mais tarde entrevistei-o para este jornal. Era a segunda entrevista-e-meia que dava na vida, disse ele. Achei a versão word ao percorrer centenas de emails em que o seu nome aparece, uma cronologia cheia de buracos do que foi sendo o nosso diálogo. O título é “Sou feito do avesso”, e o sumário diz: “Publicou 700 livros. Com muitos perdeu dinheiro. Com uns pagou outros. Perde tempo com todos, de Homero a guias de vinho. Já mandou escritores para a Mongólia, já fez braços-de-ferro com a Bertrand. O homem por trás dos livros preferia não ser visto.” Porque o que ele queria era que a gata Maravilhas fosse a fotografada. A Cotovia crescera com gata, chá, pão-de-ló e um gosto por estar à mesa, em geral. Nesse Outono de 2008, a entrevista foi a pretexto dos 20 anos da editora, por isso começámos pela fundação, quando André e o seu irmão, o poeta João Miguel Fernandes Jorge, criaram os Livros Cotovia. André viera da Guiné, onde trabalhara como cooperante. O pai tinha uma farmácia, outros estabelecimentos e agricultura no Bombarral, tudo isso foi alicerce. Dois anos depois, os dois irmãos desentenderam-se e João Miguel saiu. Já tinham publicado vários números da revista As Escadas Não Têm Degraus, coordenada por João Miguel e Joaquim Manuel Magalhães, coadjuvados por António M. Feijó. E André já percebera que preferia perder dinheiro a fazer menos bem: quando um dos primeiros livros saiu da gráfica, sentou-se à mesa com um lápis e, contadas as gralhas, mandou guilhotinar os dois mil exemplares. Nunca mais aconteceu. Uma exigência que ia do grafismo, radical (João Botelho, depois Jorge Silva, com algumas capas do próprio editor pelo meio), à qualidade das traduções. Fora da língua portuguesa, André era um francófono, deixava os ingleses para Fernanda Mira Barros (que foi sua mulher e criou várias colecções de prosa dentro da casa). De resto, como jovem leitor, ele interessou-se sobretudo por poesia até levar Camilo para a tropa em Angola. Em 2008 ainda dizia que nos momentos de grande tensão só conseguia ler Camilo, ou o tão maltraduzido Simenon. Dentro da língua portuguesa, publicou vários africanos e, sem dúvida, o mais notável conjunto de brasileiros em Portugal, desde as excelentes edições dirigidas por Abel Barros Baptista (Curso breve de Literatura Brasileira), a autores em estreia, apostas directas de André. Com a Angelus Novus, a Cotovia foi ainda uma das parceiras da revista de poesia Inimigo Rumor, editada pela brasileira 7Letras e dirigida pelo poeta Carlito Azevedo, que em 2002 passou a ter uma direcção transatlântica, com Osvaldo Manuel Silvestre em Portugal (mais Barros Baptista, Gustavo Rubim, João Barrento ou Pedro Serra na equipa). Somando a isto os poetas e prosadores portugueses que publicou, a Cotovia tornou-se a eleita de muitos inéditos. André chegou a receber originais diariamente, sobretudo poesia. Demorava a dizer não, o que por vezes fazia as pessoas zangarem-se. E, por vezes, teve a certeza de se ter enganado, como quando deixou à espera o manuscrito de um dos melhores livros de José Eduardo Agualusa, Estação das Chuvas, perdeu-o para a Dom Quixote. Nessa entrevista também conta que teve três livros de Gonçalo M. Tavares: a pluralidade de registos pareceu-lhe presunçosa, depois arrependeu-se, perdeu-o para várias editoras. André era tão casmurro quanto franco, falava dos autores que admirava e tinha pena de não ter; e dos que não tivera por culpa sua. Todo um carácter em vias de extinção. Ou a diferença entre alguém que faz livros porque gosta, e alguém que faz render uma área de negócio. A Cotovia começara num tempo em que as livrarias ficavam com 30 por cento do preço de capa. Em 2008, as cadeias já ficavam com 40 por cento. Nesse Outono, André travava um braço-de-ferro com a Bertrand que lhe custou não vender livros em 50 e tal livrarias pelo país.
3. Estou a milhares de quilómetros dos meus livros Cotovia, das capas de papel vegetal, das bicolores, das monocolores, entretanto encarquilhadas, comidas pelo sol, incluindo as apenas levemente coloridas, como na série d’As Escadas Não têm Degraus. Não me lembro qual terá sido o primeiro. Nem bem das datas em que, através de André, conheci Ruy Duarte de Carvalho (por alturas do Vou Lá Visitar Pastores), Frederico Lourenço (no começo da sua trilogia de romances), ou Bernardo Carvalho (quando partiu para a Mongólia, ou antes?). Tudo isso foi pré-gmail, só a partir de 2005 consigo refazer algo da história. Em 2007 fui entrevistar Tatiana Salem Levy, uma jovem brasileira que André encorajara a escrever, e estava a estrear; veio a ser a minha primeira amiga no Brasil. Um ano depois, ele escreveu a dizer que duas poetas cariocas, Valeska de Aguirre e Marília Garcia, vinham a Lisboa apresentar a antologia A poesia andando: Treze poetas no Brasil. A primeira imagem que tenho delas é no labirinto da livraria Poesia Incompleta, acabada de inaugurar em Lisboa. Na vez seguinte que nos vimos, já estávamos todos no Rio de Janeiro, incluindo a livraria. Mas antes ainda, a Cotovia lançou Suite Dama da Noite, estreia de Manoela Sawitzki, outra futura amiga carioca. E, um ano depois, esse bangue que foi Ó, de Nuno Ramos, poeta que depois vi como artista e ouvi como músico mas que antes de mais li e conheci graças ao empenho do André (e da Fernanda) em fazer viajar os autores a Portugal, mesmo sendo a Cotovia uma pequena editora, mesmo perdendo (ainda mais) dinheiro com isso, a ver se quebravam o enguiço de os brasileiros não serem lidos em Portugal. Foi por essa ponte também (talvez via Inimigo Rumor) que cheguei às feras Angélica Freitas e Ricardo Domeneck, poetas entretanto publicados em Portugal, respectivamente pela Douda Correria e pela Mariposa Azual, que também publicou Marília Garcia. E um dos últimos livros que Vitor Silva Tavares fez sair na & etc foi o belo Vagão Voador de Valeska de Aguirre. A Cotovia abriu asas por aí.
4. Lembro-me de ir ver o André ao hospital levando um exemplar de Na Síria, de Agatha Christie, que acabava de sair. Foi em 2010, portanto, antes da guerra da Síria, há tantas eras, e o André já estava doente. Ao longo dos anos em que morei no Brasil, trocámos mails entre o Cosme Velho e a Provença, Minas Gerais e a rua Nova da Trindade, e a cada ano o linfoma tinha altos e baixos, enquanto o tal do mercado literário era uma inclinação constante para baixo. Desencontrámo-nos algumas vezes, e lamento não o ter visto neste último ano, para mim quase de retiro. Comecei a encomendar até livros portugueses online, por isso sei exactamente quando comprei os últimos da Cotovia. O último mesmo foi o Orientalismo de Edward Said, na excelente tradução de Pedro Serra, para oferecer (o meu exemplar continua ao sol de Lisboa). Mas o último que li, porque saiu em bolso justamente quando eu andava à procura dele, foi o Memorial de Aires, romance-despedida de Machado de Assis. Há uma frase do André que não me sai da cabeça: “Perdemos muito tempo com os livros antes deles saírem, estamos sempre atrasados.” É isso mesmo, e obrigada.