Conselho de Estado francês anula proibição do uso do burkini
A decisão do tribunal administrativo refere-se apenas à medida adoptada pelo município de Villeneuve-Lobet, mas poderá ser alargada por jurisprudência às restantes localidades que impuseram a interdição.
A controvérsia do uso do burkini em França continua. O Conselho de Estado anulou a proibição do burkini nas praias de Villeneuve-Loubet, uma das cerca de 30 localidades onde aquele modelo de fato-de-banho foi interdito por “perturbar a ordem pública”. Essa razão foi contestada pelo Conselho, que funciona como tribunal administrativo e órgão de aconselhamento do Governo, numa decisão que poderá ser alargada por jurisprudência, mediante apresentação de recursos, aos restantes municípios que adoptaram a mesma medida.
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A controvérsia do uso do burkini em França continua. O Conselho de Estado anulou a proibição do burkini nas praias de Villeneuve-Loubet, uma das cerca de 30 localidades onde aquele modelo de fato-de-banho foi interdito por “perturbar a ordem pública”. Essa razão foi contestada pelo Conselho, que funciona como tribunal administrativo e órgão de aconselhamento do Governo, numa decisão que poderá ser alargada por jurisprudência, mediante apresentação de recursos, aos restantes municípios que adoptaram a mesma medida.
“Os burkinis não são uma ameaça à ordem pública em Villeneuve-Loubet”, entendeu o Conselho de Estado, que diz que a sua proibição é “claramente ilegal e viola as liberdades fundamentais”.
O presidente da câmara de Villeneuve-Loubet, Lionel Luca, do partido Os Republicanos, lamentou a decisão do tribunal que, na sua opinião, vai aumentar as tensões na cidade. “Precisamos de decidir se queremos uma versão amigável e sorridente da sharia [lei islâmica] nas nossas praias ou se queremos as regras da República Francesa implementadas”, contestou.
A pronúncia do Conselho de Estado – que tem efeito de jurisprudência – obrigará os restantes autarcas a apresentar fundamentos válidos que provem os alegados riscos do uso do burkini para a ordem pública. Como explicava a BFMTV, os presidentes de câmara poderão decidir levantar as ordens de interdição por eles mesmos, ou arriscar enfrentar tribunais administrativos locais e recursos sistemáticos interpostos por entidades que contestem a proibição do burkini.
Conforme notava o Le Monde, vários municípios, como por exemplo os de Sainte-Maxime e Cavalaire-sur-Mer, ambos da comuna de Var, decidiram adoptar a proibição como “medida de prevenção”, apesar de nunca se terem registado incidentes por causa da presença de banhistas vestidas com burkini. “Decidimos integrar este movimento [anti-burkini] e dispor de uma ferramenta, se fosse necessário”, explicava um dos autarcas.
Noutros locais, como por exemplo no município de Sisco, na Córsega, a proibição foi aprovada na sequência de confrontos. Em declarações ao jornal britânico The Telegraph, o presidente da câmara, Ange-Pierre Vivoni, considerou que o veredicto do Conselho de Estado não belisca a interdição municipal em vigor. “Não nos afecta porque tivemos um motim provocado pelo burkini”, afirmou, referindo-se a um incidente em 13 de Agosto, que envolveu jovens da cidade e famílias de origem magrebina que se encontravam na praia. Uma altercação tornou-se um confronto violento, que provocou quatro feridos e uma manifestação de protesto, com carros incendiados.
O Conselho de Estado reuniu-se a pedido da Liga de Direitos Humanos e do Colectivo Contra a Islamofobia em França, que entregou uma petição contestando o despacho do Tribunal Administrativo de Nice que validou a proibição do burkini quando analisou uma providência cautelar que exigia a suspensão dessa medida.
“O Conselho considerou que houve uma proibição do uso de símbolos religiosos e que essa proibição não se justificava. Estamos perante um Conselho de Estado que defende as liberdades fundamentais”, explicou Patrice Spinosi, advogado da Liga dos Direitos Humanos, que já tinha referido que o poder dos presidentes da câmara e respectivas autoridades policiais poderia vir a ser condicionado.
A decisão do Conselho de Estado desafia a posição da direita francesa – a esmagadora maioria dos municípios que interditaram o burkini são governados por partidos de direita ou extrema-direita, embora Vivoni pertença ao Partido Socialista. No seio do Governo, do PS, também há divisões, com o primeiro-ministro Manuel Valls a apoiar declaradamente as proibições e alguns ministros, como a titular da pasta da Educação, Najat Vallaud-Belkacem (que é de origem marroquina) a opor-se.
Esta discussão já deu um salto em direcção à campanha para as eleições presidenciais do próximo ano. Nicolas Sarkozy – que já anunciou a sua candidatura às primárias de Os Republicanos para escolher o representante do partido na corrida eleitoral marcada para a Primavera de 2017 –, reafirmou a sua posição relativamente à polémica dos burkinis, que considerou uma “provocação”, antes de conhecer a decisão do tribunal administrativo.
O ex-Presidente francês, no seu primeiro discurso da campanha para recuperar o cargo que perdeu em 2012 para François Hollande, afirmou a necessidade de proibir o burkini em toda a França. Prometeu que será “o Presidente que reestabelecerá a autoridade no Estado”, perante uma plateia de mais de duas mil pessoas em Châteaurenard, na Provença. Os imigrantes, as minorias e a esquerda, estão a “destruir a identidade francesa”, considerou Sarkozy, citado pelo The Telegraph.
Benoît Hamon, ex-ministro da Educação do PS, e candidato às primárias do Partido Socialista, exortou François Hollande a quebrar o silêncio que até agora manteve em relação à polémica e que “trave a deriva” do seu primeiro-ministro Manuel Valls.
Recorde-se que Valls demonstrou o seu apoio à decisão dos autarcas, mais do que uma vez, dizendo que o burkini é um símbolo de “escravização da mulher”. As suas palavras vieram acentuar a divisão do executivo. “O Governo está a explodir. Precisamos de concórdia neste país e não discórdia. E o papel do primeiro-ministro não é de accionar a discórdia”, constatou Hamon.
As reacções positivas à decisão do Conselho de Estado não tardaram. O porta-voz do Partido Socialista, Razzy Hammadi, declarou à BFM TV que esperava que a decisão do tribunal ponha um ponto final nesta “controvérsia desagradável”.
“Isto é uma bofetada ao primeiro-ministro e um pontapé nas costas de Sarkozy”, referiu à AFP Abdallah Zekri, secretário geral do Conselho Francês da Fé Muçulmana (CFCM).
A controvérsia despontou em Cannes, a primeira estância francesa a proibir o uso do burkini na praia e estendeu-se rapidamente a mais de 30 localidades concentradas na zona da Côte d'Azur e apenas duas no Norte de França – Oye e Le Touquet. A onda de contestação cresceu também por toda a parte, com as Nações Unidas e a Amnistia Internacional a defenderem a abolição da medida, pedindo respeito “pela dignidade dos indivíduos”. O debate subiu de tom depois da divulgação de fotografias de uma mulher que foi obrigada a despir-se numa praia – sem que estivesse a usar um burkini – sob o olhar de vários polícias armados.
A polémica do burkini veio relembrar as persistentes dificuldades que a França tem sentido na integração da população muçulmana ao longo dos anos. O secularismo da República francesa tem sido o argumento invocado para justificar as proibições. O país encontra-se sob estado de emergência até 2017, uma decisão tomada após os ataques terroristas de Julho em Nice e numa localidade nos arredores de Rouen, ambos reivindicados pelo Estado Islâmico.
Texto editado por Rita Siza