Anna Karénina vai morrer no D. Maria (e os outros impossíveis da nova temporada do teatro nacional)
Depois da aventura com Emma Bovary, Tiago Rodrigues vai desmontar em palco mais um romance do cânone, agora na companhia dos belgas tgStan. Cruzar o repertório dramatúrgico instituído com a nova escrita para teatro continuará a ser a prioridade do director artístico no segundo ano do seu mandato.
Passou quase um ano desde que Tiago Rodrigues – o mais jovem director artístico de sempre num teatro nacional português – fez a sua entrada “meio suicidária” no D. Maria II, palavras dele ao Ípsilon, reescrevendo à luz de tudo o que sabemos sobre o que aconteceu depois três tragédias gregas absolutamente constitutivas da história do teatro ocidental (a Ifigénia em Áulis de Eurípides, o Agamémnon de Ésquilo e a Electra de Sófocles). Ambos, Rodrigues e o TNDMII, sobreviveram (o que não os matou, aliás, deve tê-los engordado, a julgar pelos indicadores relativos a 2015, que demonstram um público em crescimento), e chegam agora à temporada 2016/2017 com a mesma vontade de fazer o que “parece impossível”, como se lê no programa do quadrimestre que se inicia a 9 de Setembro, de novo – como há um ano – com o programa Entrada Livre.
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Passou quase um ano desde que Tiago Rodrigues – o mais jovem director artístico de sempre num teatro nacional português – fez a sua entrada “meio suicidária” no D. Maria II, palavras dele ao Ípsilon, reescrevendo à luz de tudo o que sabemos sobre o que aconteceu depois três tragédias gregas absolutamente constitutivas da história do teatro ocidental (a Ifigénia em Áulis de Eurípides, o Agamémnon de Ésquilo e a Electra de Sófocles). Ambos, Rodrigues e o TNDMII, sobreviveram (o que não os matou, aliás, deve tê-los engordado, a julgar pelos indicadores relativos a 2015, que demonstram um público em crescimento), e chegam agora à temporada 2016/2017 com a mesma vontade de fazer o que “parece impossível”, como se lê no programa do quadrimestre que se inicia a 9 de Setembro, de novo – como há um ano – com o programa Entrada Livre.
Impossíveis como voltar a matar Anna Karénina, por exemplo – depois de Tolstói a ter matado melhor do que alguma vez alguém matará. Mas Tiago Rodrigues, recordemos, é a pessoa que reescreveu a Madame Bovary de Flaubert depois de Flaubert a ter escrito melhor do que alguma vez alguém escreverá – e que pôs a crítica francesa a aplaudi-lo de pé na sequência disso (a remontagem de Bovary, estreada a 3 de Maio no Théâtre de la Bastille, em Paris, no âmbito da Ocupação Bastilha que ali levou o TNDMII, foi eleita a melhor peça do ano em língua francesa pela Associação Profissional da Crítica de Teatro, Música e Dança de França, onde continua em digressão). Será a 9 de Março que saberemos Como Ela Morre nas mãos do director do D. Maria II e da companhia belga que verdadeiramente foi a sua escola de teatro, os tgStan.
A grande co-produção internacional de 2016/2017 é um grande passo para o dramaturgo e encenador, que com Tolstói se aventura uma vez mais na digestão do cânone literário, e é um passo de gigante para uma instituição ansiosa por se internacionalizar rapidamente e em força usando o nome do director artístico, que na Europa continua a circular de forma imparável, como um cavalo de Tróia: depois da estreia em Lisboa (e da subida ao Porto via Teatro Nacional S. João, que em troca leva à Sala Garrett a trilogia Os Últimos Dias da Humanidade, encenação de Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso a partir de Karl Kraus), a peça estará no Théâtre Garonne, em Toulouse, e no Kaaitheater, em Bruxelas.
Para o TNDMII, é suficiente chegar lá fora como barriga de aluguer para as criações de Tiago Rodrigues (as da fase D. Maria e as da fase anterior, cujos direitos cedeu ao teatro nacional pelos três anos do mandato)? Não, mas é um começo, responde o director artístico ao PÚBLICO num longo telefonema a partir da Alemanha, onde By Heart (2013) teve novas apresentações esta semana (depois de Weimar, estará na Wiesbaden Biennale até ao próximo dia 4, seguindo-se datas em Roma, Trondheim, Amesterdão, Rennes, Marselha e Atenas): “Uma das nossas apostas de fundo é trabalhar para que os espectáculos do D. Maria possam ter uma vida internacional – e cada vez menos apenas os espectáculos criados por mim.”
É, reconhece, “um processo lento”, mas o TNDMII está já a desenvolver activamente um “trabalho de diplomacia cultural” que permita abreviar a espera, aproximando “artistas, autores, espectáculos e textos portugueses” de programadores e encenadores estrangeiros, e é de esperar que a adesão à rede de programação Advancing Performing Arts Project – Performing Europe 2020, outra novidade para 2016/2017, comece a produzir resultados, sendo já provável que haja mais produções da nova temporada a ganharem escala internacional – e não estamos a falar da outra lança do D. Maria II na Europa em 2017, Marlene Monteiro Freitas, que a 20 de Março estreia em Lisboa uma co-produção com o Kunsten Festival des Arts.
De novo para agitar o cânone antes de o usar, o agente-provocador Tiago Rodrigues instigou a coreógrafa com mais rotação da nova geração da dança portuguesa a criar uma peça a partir de As Bacantes, de Eurípides, reconhecendo quanto do seu universo físico, mas também mental, se cruza instintivamente com o teatro grego: “Não se tratou propriamente de uma encomenda, mas de um início de conversa em que lhe perguntámos até que ponto faria sentido pensarmos o trabalho dela no contexto da tragédia, da mitologia, das fúrias femininas – o que nos levou às bacantes, mas também à Medeia.”
Haverá mais vida internacional no teatro do Rossio esta temporada – primeiro com a actriz italiana Nicoletta Braschi, convidada especial do próximo Lisbon & Estoril Film Festival, que dará corpo aos Dias Felizes de Samuel Beckett (10 e 11 de Novembro), depois com Acabar em Beleza, a peça que o actor e dramaturgo francês de origem marroquina Mohamed El Khatib começou a fazer com a mãe e teve de terminar, apesar da morte dela (18 a 25 de Fevereiro). São, porém, experiências como a co-produção com os tgStan que Tiago Rodrigues quer tornar um padrão: “O D. Maria não quer ser, para os artistas internacionais, apenas um lugar de apresentação, também quer ser um lugar de trabalho a que eles regressem para se inscreverem e reinscreverem na cena portuguesa.”
No caso da colaboração com os tgStan, de resto mais do que inscritos e reinscritos na cena portuguesa (e ainda bem), o trabalho permite-lhe retomar, por um lado, a colaboração artística que mais o fez “crescer enquanto artista”, com a responsabilidade de agora ser ele a escrever uma peça para a companhia, e, por outro, um processo dramatúrgico que acredita poder restituir ao teatro o seu potencial de assembleia onde a democracia se exerce de forma às vezes mais representativa, outras vezes mais directa: “Há um ano, com as tragédias, pude fazer uma espécie de restart do meu processo habitual de reescrita a partir do repertório – foi uma maneira de me encontrar com os artistas do D. Maria e de lhes dizer que por muito diferentes que fossem os lugares de onde vínhamos ali estava um terreno, o teatro grego, que nos era comum. Agora, trata-se de mergulhar nessa outra heroína da literatura que é imediatamente posterior à Bovary, Anna Karénina, para inquirir acerca do modo como o teatro e outras formas de escrita podem contar a morte e da nossa necessidade de voltarmos às mesmas histórias – o que também é uma reflexão sobre esta temporada em que voltamos a Shakespeare, a Ibsen, a Genet.” (Já lá iremos.) É uma pergunta para manter em aberto, ainda que Tiago Rodrigues já tenha uma ideia da resposta: “Sabemos que a Anna Karénina morre, mas não como é que ela morre hoje, como é que ela morre nas nossas mãos. E, quando voltamos a juntar-nos à volta de um texto como a Anna Karénina do Tolstói – ou como O Pato Selvagem do Ibsen, ou como As Criadas do Genet –, percebemos quem somos.”
Teatro para todos
Até Julho cruzam-se no D. Maria II de Tiago Rodrigues encenadores fiéis à letra e ao espírito do património dramatúrgico como Tiago Guedes, que abre a temporada justamente com O Pato Selvagem, ou Marco Martins, que a partir de 10 de Novembro aborda As Criadas em nova tradução de Matilde Campilho, e artistas totais como Mónica Calle, que ali virá em Março fazer a síntese de mais de um ano de pesquisa radicalmente site-specific distribuída por sete regiões do país, ou Joana Craveiro, que há uma década vem fazendo do Teatro do Vestido um laboratório vivo para a escrita teatral em português e agora transpõe para Lisboa a experiência de apropriação de um território, já praticada em Viseu e no Porto, de Esta É a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela (9 a 24 de Setembro).
Tal como se cruzam recém-nascidos (só para eles, todo um ciclo, de 10 de Setembro a 9 de Outubro) e históricos do teatro português (a haver uma visita épica, será a d’O Bando de João Brites, em Maio, para uma montagem certamente aparatosa da Divina Comédia de Dante, mas Jorge Silva Melo e os seus Artistas Unidos também descem ao Rossio para um projecto continuado em torno do Dido e Eneias de Henry Purcell que incluirá uma residência de escrita e duas novas criações); coreógrafos que vêm ao teatro (Marlene Monteiro Freitas) e actores/encenadores que vão à poesia (quatro embates: Pablo Fidalgo Lareo com Daniel Faria, António Fonseca e José Neves com Luís de Camões, Susana Vidal com Miguel-Manso, Miguel Moreira com Bernardo Santareno) e, grandioso fogo-de-artifício a encerrar a temporada de 22 de Junho a 3 de Julho, à ópera (numa co-produção inédita com a Gulbenkian, a mala voadora de Jorge Andrade encena Beaumarchais, a partir da trilogia O Barbeiro de Sevilha / As Bodas de Fígaro / A Mãe Culpada, com música original de Pedro Amaral).
Estas escolhas, sublinha Tiago Rodrigues, sinalizam as linhas de força de uma programação dividida entre a vontade de consolidar o papel do D. Maria como “uma biblioteca viva da dramaturgia universal onde se continuam a revisitar textos canónicos com linguagens cénicas contemporâneas” e o desejo de participar na aventura da construção de um novo repertório em língua portuguesa, às vezes com espectáculos “que fazem transbordar a programação do teatro para as ruas envolventes, contaminando e deixando-se contaminar por todos os que aí circulam”. De resto, esta será a temporada em que o TNDMII leva o seu compromisso de ser “verdadeiramente para todos” a um patamar inédito, comemorando, de 20 a 23 de Outubro, os 30 anos do grupo de teatro da cooperativa Crinabel (e “legitimando um percurso artístico pioneiro, exemplar”) com uma peça em que os seus actores se juntam em palco aos intérpretes da companhia, portadores de deficiência intelectual e física: Uma Menina Está Perdida no Seu Século à procura do Pai, de Gonçalo M. Tavares.
Um espectador por dia
Paralelamente, o D. Maria reforça a programação para a infância e a juventude, que o director artístico quer tornar “mais regular e mais dinâmica, menos dependente dos currículos escolares, mas ligando-se a eles de formas mais inusitadas” – a essa operação se dedicam Carla Maciel, Crista Alfaiate, Marco Paiva e Paula Diogo a partir de 23 de Novembro, tomando como matéria-prima A Origem das Espécies, de Darwin. Esta, a par da Ifigénia, que abriu a temporada anterior, e da nova versão de As Criadas, será uma das peças escolhidas para inaugurar a relação do TNDMII com os três primeiros teatros da Rede Eunice – a estratégia montada por Tiago Rodrigues para “aumentar a presença do D. Maria no território nacional”, reconhecendo que “também é sua missão levar espectáculos a lugares onde a programação não é tão regular nem tão consistente” e cujos habitantes “também garantem com os seus impostos a existência do Nacional”. Até ao final de Julho, o Teatro Municipal de Vila Real, o Centro Cultural Gil Vicente, do Sardoal, e o Teatro Municipal Baltazar Dias, do Funchal, receberão três visitas do D. Maria, que espera poder com esta ligação de longo prazo (“Não queríamos o risco de uma relação do tipo atropelamento e fuga”), extensível até três anos, contribuir para tornar mais robusta a capacidade de criação, de produção e de formação de públicos dos seus parceiros.
O espectador-ideal que assistir não apenas a estes três espectáculos, mas a toda a temporada 2016/2017 terá, espera agora mais irrealmente Tiago Rodrigues, feito uma viagem pelas várias regiões do teatro português – um país que, para felicidade do programador em que se transformou, tem paisagens cada vez mais variadas e mais surpreendentes, e que considera dever do D. Maria, enquanto serviço público, fazer descobrir. “Não é desejável que os teatros tenham uma programação à imagem do programador, de pensamento único, mas também é óbvio que uma temporada não deixa de ser um exercício pessoal de interpretação das pertinências e das urgências de cada momento”, argumenta. E para ele, como director do TNDMII, o que é urgente agora? “O discurso que os artistas de teatro têm hoje de produzir para pedir apoio ou para justificar o seu trabalho passa muito pelo quanto custa, pelo quantos espectadores. É uma dimensão inevitável, mas há o risco de esquecermos o papel do inquantificável, do que não sabemos até que ponto será útil. A missão do teatro nacional é também reivindicar a necessidade de trazer para a criação artística palavras mais incontroláveis – palavras como risco, por exemplo. Não quero que o D. Maria seja o lugar onde se faz teatro como deve ser; quero que seja o lugar onde se questiona permanentemente o que o teatro deve ser.”
No caso de este parecer um objectivo demasiado vago, Tiago Rodrigues tem outro, que se conta (pelos dedos de uma mão): fazer entrar no TNDMII um espectador novo por dia.