África e as coisas que transportamos connosco
Quando todos olhavam para as questões políticas, a antropóloga Marta Vilar Rosales quis olhar para as famílias portuguesas e goesas vindas de Moçambique para Portugal depois da independência de outra forma: perguntando-lhes pelas casas e pelos objectos, os que deixaram e os que trouxeram.
O que é que um objecto que nos pertence diz sobre nós? E o que é que o nosso discurso sobre esse objecto revela? As coisas da casa estão longe de ser mudas. É preciso saber lê-las.
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O que é que um objecto que nos pertence diz sobre nós? E o que é que o nosso discurso sobre esse objecto revela? As coisas da casa estão longe de ser mudas. É preciso saber lê-las.
“Percebemos a cultura de um povo, de uma época, de uma cidade ou família pela forma como ela está inscrita nas coisas dessa cidade, desse povo, dessa família”, diz a antropóloga Marta Vilar Rosales, investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autora de As Coisas da Casa – Cultura Material, Migrações e Memórias Familiares (edição ICS).
Foi isso que se propôs fazer neste trabalho, ouvindo (e observando, nos seus espaços domésticos) famílias de origem portuguesa e goesa que viveram em Moçambique e regressaram a Portugal após a independência daquela antiga colónia. Que objectos trouxeram de Moçambique? Que memória guardam das casas que lá tinham? Como são as casas que têm em Portugal?
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“No início, as pessoas acharam estranhíssimo que eu lhes fizesse perguntas sobre os objectos e as casas”, conta. “Tinham medo que lhes fosse perguntar sobre os seus posicionamentos políticos ou as relações com o antigo regime”. Aliás, quando começou esta investigação, em 2002, “o tema era ainda tratado com pinças, as pessoas queriam saber das dimensões políticas, dos envolvimentos ou não com os movimentos separatistas, ninguém queria saber dos tarecos lá de casa, dos caixotes que tinham trazido ou não”, recorda, sorrindo.
Quando, nas conversas iniciais, lhes pedia uma descrição da casa de Moçambique, sentia que havia alguma dificuldade. “As pessoas estão numa fase da vida muito dada a avaliações e reestruturações das suas representações. E por vezes há uma idealização das casas e vivências do passado que é difícil encaixar com os objectos hoje. Há objectos que se tornaram um fardo e percebemos que isso está relacionado com essa dificuldade de traduzir o passado para o presente.”
Outro aspecto que nota nas famílias de origem portuguesa é, em certos casos, uma relação ainda não totalmente pacificada com a casa de Portugal. Se, depois da chegada, o facto mais referido é o da “falta de espaço” e a sensação de que “as mobílias não cabiam”, ainda hoje algumas famílias continuam a sentir esta casa como “provisória”. O que não acontece, no entanto, com os goeses.
“Os goeses têm um treino maior na deslocação”, afirma Marta. “São famílias brâmanes, que perderam as suas casas de referência, normalmente muito bonitas, em Goa e que já em Moçambique passam por essa experiência de estar longe do que têm como referência. Além disso, adaptaram-se melhor a Portugal porque perderam menos. Em Moçambique faziam parte da elite colonial mas não eram essa elite porque não eram brancos e isso pesou. Lá, apesar de ocuparem altos cargos e serem médicos ou professores, foram sujeitos a uma certa subalternização – no BI eram identificados como ‘cor parda’ – e quando chegaram cá e perceberam que isso não ia acontecer, foi muito libertador.”
Voltando à dificuldade de se conversar sobre casas e objectos, Marta explica que, mesmo entre os antropólogos em Portugal, esta área da cultura material não tem sido muito aprofundada. Se, no passado, antes da Revolução Industrial, as pessoas tinham uma relação mais forte com os objectos, muitas vezes feitos pelos próprios, com a massificação do consumo, isso perdeu-se. Mas a investigadora acredita que as escolhas que fazemos enquanto consumidores são também muito reveladoras.
“Como é que percebemos hoje as diferenças dos consumos de classe? Não é tanto pelo preço, até porque há até uma dimensão negativa associada ao preço muito alto.” A distinção faz-se pelo nível de conhecimento. “Costumo dizer aos meus alunos que quando eles começam a ler o que eu leio, tenho que mudar de registo, se não, não tenho nada de novo para lhes contar. É esse conhecimento que eu tenho que me dá um poder simbólico grande, e isso acontece em todos os consumos. Nos alimentares, por exemplo: quando já toda a gente come risotto deixa de ser interessante servir risotto como forma de se marcar distintivamente como grupo.”
Estas estratégias de diferenciação existiam também, obviamente, em Moçambique. E a alimentação foi um dos campos que acabou por se revelar mais fácil tratar. Confrontadas com perguntas sobre as casas de Moçambique, “as famílias goesas começaram pela cozinha, convidaram-me para eu ver como se fazia, mostravam os livros de receitas”.
Nas conversas, Marta foi-se dando conta da importância, na identidade destas famílias, de duas tradições gastronómicas: o chá das cinco, de clara influência britânica, e o caril dos domingos. “Descrito, normalmente, como ‘totalmente diferente dos chás daqui (Portugal)”, desempenhava um papel importante no contexto das práticas de sociabilidade feminina dos grupos sociais melhor posicionados”, escreve no livro. Associado muitas vezes aos jogos de canasta, o hábito do chá mantém-se depois da vinda para Portugal como forma de não se perder os laços com as outras famílias vindas de Moçambique.
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“É um momento elitista”, sublinha Marta. “Há aqui uma distinção de classe importante, embora feita de maneira velada, entre os colonos mais antigos e os novos. Estas senhoras aprenderam a forma de fazer o chá com as mães e as avós e ensinaram às filhas, enquanto as casas dos que chegaram a Moçambique já nos anos 60 não tinham o chá com o preceito inglês que elas descrevem – e que os goeses também incorporaram, talvez até de forma mais sofisticada via influência inglesa em Goa.”
Quanto ao caril, apesar de os goeses afirmarem que a origem é indiana, as famílias portuguesas referem-se a ele como “prato nacional” ou “comida típica moçambicana” e, escreve a autora, “assume o estatuto de uma prática alimentar partilhada pela generalidade da população de origem europeia e, inclusive, pelos próprios africanos”.
Curiosamente, nenhum prato africano é adoptado pelos colonos ou tem alguma influência na cozinha destes. “A comida pode ser uma excelente ponte entre as pessoas mas pode também ser o tabu mais difícil de ultrapassar. No caso das políticas coloniais, a ideia era ensinar os africanos a alimentarem-se como os europeus. Isso é dominar um povo e outra cultura sem usar a força e de forma muito eficaz. As coisas das casas permitem-nos ver esses mecanismos a funcionar no quotidiano, na rotina.”
O mesmo acontece – e esse é um dos aspectos a que Marta dá particular atenção no seu estudo – com os objectos africanos, que praticamente não eram usados na decoração das casas de Moçambique, mas que, muitos anos mais tarde, surgem em algumas das casas destas famílias em Portugal, estabelecendo uma ligação com África diferente da do passado.
O que as famílias entrevistadas contam é que nas casas de Moçambique tinham mobílias europeias e, frequentemente, objectos vindos da China, sobretudo porcelanas, mas poucas ou nenhumas peças de artesanato e de decoração produzidas no país.
“Mas as pessoas foram amadurecendo e foram apaziguando a sua relação com África”, conclui a investigadora. “As que eram intelectualmente mais despertas para os consumos menos mainstream começaram a olhar para a arte africana de forma diferente já no período colonial. E depois houve o reconhecimento nacional e internacional que vários artistas africanos, em diferentes áreas, começaram a ter. Não era possível continuar a considerá-los uma coisa menor que se vendia no passeio ao pé de casa quando estão representados em todos o lado e são valorizados internacionalmente.”
Assim, com o tempo, “estes objectos ganharam outra dimensão e hoje são vistos como uma ligação com África”. Mas apenas uma, a par de outras. É que, com o passar das décadas, África tornou-se para estas famílias várias coisas e passou a estar “objectificada de formas muito diferentes”. Para as pessoas que viveram esta experiência, “os serviços Companhia das Índias ou Vista Alegre são também África. África não tem que ser só as coisas feitas por pessoas africanas porque elas sentem-se também moçambicanas.”
África são os objectos que vieram, os que ficaram, os que se compraram depois. Todos eles falam – mais do que imaginamos – das casas passadas e de uma vida que mudou. África é a estatueta, a gravura ou o livro de um autor moçambicano, tal como é o chá das cinco à inglesa ou o caril de domingo. E, conclui Marta, “uma África é tão legítima como a outra”. Está tudo gravado nas coisas da casa.