O rapaz da ambulância e a problemática do mal

Nós, os "bonzinhos", preferíamos que a criança chorasse, que ela viesse reclamar a nossa noção de (i)moralidade, já agora aliviando as consciências, mas ela não nos faz esse favor, e isso incomoda

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E, de repente, fica o mundo chocado com o vídeo da criança entorpecida, embotada, pelos escombros que, na verdade, há muito toldaram, neste menino, o juízo do "bem" e do "mal". Será esta a prometida "banalidade do mal"? Ah, pois é, mas é que um mal banalizado passa a ser novel equilíbrio em consciência, e é por isso que surge a indiferença, o "tanto faz" que nos choca e oblitera. Nós, os "bonzinhos", preferíamos que a criança chorasse, que ela viesse reclamar a nossa noção de (i)moralidade, já agora aliviando as consciências, mas ela não nos faz esse favor, e isso incomoda, incomoda tanto que, quiçá, talvez venha a mudar também a nossa própria noção de equilíbrio, às tantas passamos nós a embotados, e o novo "bem", o antigo "mal", far-se-á "normalidade", o mundo esfíngico onde brotarão nossas crianças, também elas com suas consciências, e as dores de parto das novas referências.

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E, de repente, fica o mundo chocado com o vídeo da criança entorpecida, embotada, pelos escombros que, na verdade, há muito toldaram, neste menino, o juízo do "bem" e do "mal". Será esta a prometida "banalidade do mal"? Ah, pois é, mas é que um mal banalizado passa a ser novel equilíbrio em consciência, e é por isso que surge a indiferença, o "tanto faz" que nos choca e oblitera. Nós, os "bonzinhos", preferíamos que a criança chorasse, que ela viesse reclamar a nossa noção de (i)moralidade, já agora aliviando as consciências, mas ela não nos faz esse favor, e isso incomoda, incomoda tanto que, quiçá, talvez venha a mudar também a nossa própria noção de equilíbrio, às tantas passamos nós a embotados, e o novo "bem", o antigo "mal", far-se-á "normalidade", o mundo esfíngico onde brotarão nossas crianças, também elas com suas consciências, e as dores de parto das novas referências.

Novel eixo de equilíbrio implica adaptação, firmada, fica o sofrimento circunscrito e o recalcado "despressurizado". Assim, o sofrimento é tão-só temporal, não tardará e o limiar mudará, passaremos a ser máquinas sôfregas, super-homens marciais, autómatos algoritmizados. Dói sabê-lo, não dói? Magoa o sentimento. Não te preocupes, é por pouco tempo, em breve passaremos ao mesmo estado de entorpecimento com que discutimos e logo ignoramos. E o choro, o choque, esse não tarda a consumar mera reacção estética, não vá o sensível assustar-se e acusar-nos de sermos gélidos, sádicos. Ah, sádicos somos todos, pois o que nos parece "ligeiro" é sempre grave para outrem, é tudo uma questão de perspectiva, coloquem-se no lugar daquela criança, é possível que ela magicasse "para quê tanto alarido?".

E, no entanto, existe também o elo mais fraco, a minoria com mor padecimento, acaso seu sofrimento tenha mais valia que o próprio mundo, talvez devêssemos cambiar a realidade para colorir as faces destes "pequenos", mas a mudança custa sempre tanto, é mais prático pintar por cima, delir a diferença, a reticência dos desadaptados. Mas, cuidado, que, por vezes, quem não se adapta acaba por pôr o mundo a seus pés, e, assim, ficaria a "maioria" deficitária em rebuliço, passando talvez a minoria, e vindo, porventura, a tragar nova dinâmica.

Parece tudo tão maquinal, esta visão tão insensível, mas isso é porque jazo em entorpecimento também eu, no cinismo onde nos apanham todos na modernidade. Quiçá estivesse a criança em questão sofrendo, mastigando o recalcamento, aí talvez a sua voz venha a ser a "maioria" do futuro, puxando de novo o mundo para a sensitividade ora "normativa", e com tantos puxões e repuxões, pode ser também que, um dia, possamos transcender estas viagens, a própria ética que nos salva e oprime.