Depois do silêncio, a explosão multimédia

Esteve calado (ou quase), deixando os fãs impacientes. Em poucos dias, fez um álbum, um álbum visual e uma revista. Frank Ocean está de volta e exige a nossa atenção – ele merece-a.

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Bráulio Amado, designer português fixado em Nova Iorque, confessa que teve sorte. Estava a trabalhar e foi parar ao site de Frank Ocean, impelido pelo vídeo da canção Nikes, divulgado no sábado. A imagem dizia: "20 de Agosto", Blonde, Boys Don't Cry e três moradas em Los Angeles, Chicago, Londres e… Nova Iorque.

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Bráulio Amado, designer português fixado em Nova Iorque, confessa que teve sorte. Estava a trabalhar e foi parar ao site de Frank Ocean, impelido pelo vídeo da canção Nikes, divulgado no sábado. A imagem dizia: "20 de Agosto", Blonde, Boys Don't Cry e três moradas em Los Angeles, Chicago, Londres e… Nova Iorque.

Lá ficou a saber que algo iria acontecer numa loja de revistas da Rua Mulberry. “Decidi tentar. Quando cheguei lá estava uma fila pequena – 50 pessoas?”, conta ao Ípsilon. “Passados dez minutos só vias pessoas a correrem em direcção à loja e a fila rapidamente preencheu uns quantos quarteirões.”

Na loja de revistas, transformada para o evento, com música nova do norte-americano a sair das colunas, Bráulio Amado e outros felizardos levaram para casa uma revista, dirigida pelo cantor. Chama-se Boys Don’t Cry e no eBay há já quem a venda por mil dólares (cerca de 880 euros). Entre as suas 360 páginas há entrevistas ao rapper Lil B e à mãe de Frank Ocean, um poema sobre produtos do McDonald’s (sim) de Kanye West, um poema de Frank (Boyfriend), uma lista de filmes, fotos de carros desportivas (uma obsessão do músico) e outros conteúdos. Ah, e um álbum, Blonde.

A edição de Blonde foi o clímax de vários dias em que a internet melómana parecia só ter olhos e ouvidos para Frank Ocean. Depois de anos de relativo silêncio e muita especulação sobre quando seria editado o sucessor do elogiadíssimo Channel Orange (2012), Frank Ocean estava – e assim continua – em todo o lado.

Na quinta-feira, dia 18, ouviu-se música nova dele pela primeira vez em muito tempo: Endless, classificado como um álbum visual, foi publicado online. A luz estava cheia de névoas. O que é Endless? Um vídeo de 45 minutos, a preto e branco, realizador por Frank Ocean, que o mostra a construir uma escada em espiral. Uma metáfora para a necessidade de saber esperar? Uma metáfora sobre a importância de construir as coisas com as próprias mãos, respeitando o tempo que elas exigem? A banda sonora: 18 peças musicais. O que significa isto? E é isto o álbum que sucede a Channel Orange?

Ainda se tentava digerir e dar sentido a Endless e já havia rumores de que poderia vir aí um segundo álbum. Na manhã de sábado, dia 20, um novo vídeo, mas, desta feita, para uma canção, Nikes, e numa linguagem mais próxima do videoclipe. Nesse dia, Bráulio Amado e outras centenas de fãs fizeram fila para conseguir uma cópia de Boys Don’t Cry.

Bráulio, feliz por “poder ouvir novamente, quatro anos depois, a voz única do Frank Ocean”, ainda não tem uma opinião definitiva sobre Endless e Blonde, mas elogia o arrojo criativo do cantor, transformado em artista multimédia. “O projecto – com os dois discos, a revista e vídeos – merece já cinco estrelas por ser exactamente meio confuso, extenso, por ter demasiada informação para se processar. Numa altura em que tudo o que chega às nossas mãos está pronto a ser consumido, é refrescante ter algo assim.”

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Lançamento da revista Boys Don’t Cry em Nova Iorque FOTO: Bráulio Amado

Nos limites da canção

Endless e Blonde dispensam o açúcar pop que fez de Channel Orange o disco que elevou ao mainstream Frank Ocean, a voz mais melodiosa a sair do colectivo hip-hop reguila Odd Future. Ambos têm várias peças curtas ou que são interrompidas por outras (numa composição fragmentária que Kanye West também adoptou no recente The Life of Pablo). Ambos recusam frequentemente a batida e até refrães.

Comecemos por Endless. At Your Best (You Are Love), um original de 1976 dos Isley Brothers, já tinha sido alvo de versão por Frank Ocean, mas é agora agraciada pelos sintetizadores de James Blake e a pompa tristíssima da London Contemporary Orchestra, guiada por Jonny Greenwood (Radiohead). Alabama é outro momento alto do álbum visual (um piano engolido pela reverberação, Sampha num lamento em falsete: “What can I do to know you better? What can I do to show my love?”).

Só à quarta faixa ouvimos uma batida (Mine, rap desmaiado produzido pelo produtor de electrónica experimental Arca). Endless, como Blonde, dispensa quase sempre o ritmo, deixando a voz de Ocean descarnada, à frente. Rushes esconde a voz numa névoa de guitarra eléctrica. Muitas canções parecem esboços, inacabados (há peças com menos de um minuto, o que não lhes tira beleza – ouça-se Florida, ciência coral com ecos de Beach Boys) ou pouco produzidos, a milhas do aprumo de Channel Orange.

Endless é um álbum sem singles, para se ouvir inteiro – com uma calma que contrasta com a impaciência com que se esperava pela nova música de Frank Ocean. A noção de que muitos olham estavam postos nele talvez tenha influenciado a apropriação de Device Control, canção inédita do alemão Wolfgang Tillmans, fotógrafo vencedor do prémio Turner (expôs recentemente em Serralves, no Porto) e também músico. Uma voz robótica canta isto enquanto a música nos remete para os Kraftwerk: “With this Samsung telephone, we don't call it telephone/ I think I saw billboards describing life interactivity/ Life sharing, live posting, streaming off your videos/ The new Samsung Galaxy allows you to livestream your life/ Livestream your life, livestream your life.”

Blonde é também menos acessível do que Channel Orange, mas abre-se muito mais à pop. Ouça-se Pink + White, com instrumentação soul suave, o piano a seguir a melodia da voz e irresistível baixo, óbvia candidata a segundo single, ou Nikes, dona de beat hip-hop com graves no ponto.

Em Pink + White, Beyoncé junta-se a Ocean, mas “apenas” como corista. Não é a única estrela a ter um papel discreto em Blonde, cuja lista de créditos vai de James Blake a Kendrick Lamar – a estrela com presença mais óbvia é André 3000 (Outkast), que assina o rap veloz de Solo (Reprise).

A mestria de Frank Ocean em Blonde é conseguir criar um arco narrativo, com grandes doses de autobiografia, que se divide por capítulos mais pop e outros mais abstractos, em que nos perguntamos se estamos a ouvir uma canção.

Solo é uma delícia soul, sem ritmo, só introversão em suspensão – Ocean segue o caminho difícil já que com uma simples batida poderia estar aqui um enorme sucesso. Skyline To, que chama Kendrick Lamar para reforçar apenas algumas palavras de Frank Ocean, flutua no espaço, muito graças ao sintetizador space age – Joe Meek a fazer R&B? Em Seigfried, que vai buscar o refrão de Fond Farewell de Elliott Smith (“This is not my life/ It's just a fond farewell to a friend/ It's just a fond farewell to a friend”), há solos de sintetizador a irromper e outras coisas maravilhosas a acontecer, mas há sobretudo uma rara noção de espaço e drama.

Godspeed, com Kim Burrell, uma das vozes mais relevantes do gospel na actualidade, prossegue a tendência de 2016 de exploração da música religiosa no hip-hop, na linha de Kanye West e Chance The Rapper. “É basicamente uma parte reimaginada da minha infância. Os rapazes choram, sim, mas acho que não soltei uma lágrima em muitos dos meus anos de adolescente. É, surpreendentemente, a parte favorita da minha vida até agora. Surpreendente, para mim, porque a fase actual é o que tenho pedido ao cosmos desde miúdo”, escreveu Frank Ocean no seu blogue (http://frankocean.tumblr.com), ainda hoje o seu principal meio de contacto com os fãs.

No post a seguir escreve, em maiúsculas: “Vivi momentos incríveis a fazer tudo isto. Obrigado a todos. Especialmente aos que nunca me deixaram esquecer que tinha que acabar. Que é basicamente cada um de vocês. Ahah. Adoro-vos”.

Ele conseguiu o que provavelmente queria: depois do estrondo multimédia, Endless e Blonde pedem-nos recolhimento, audições repetidas, sossego e imersão.