“Quero ir para um país onde possa fazer o que sempre sonhei: contar as histórias dos outros em vez da minha”

Wasim Abdrado tinha 24 anos quando a Primavera Árabe despontou na Síria. Passou pelo Inferno: foi preso e torturado, mataram-lhe membros da família, perdeu tudo menos as paixões. Fugiu para a Grécia mas agora tem a vida em suspenso, com um bebé nos braços.

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A vida era bonita na Síria antes da guerra. Eu estudava Jornalismo na Universidade de Damasco, estava a cumprir um sonho de criança. Sempre gostei de contar histórias e talvez a minha mãe, professora do ensino primário, tenha ajudado a alimentar o gosto pela escrita. Imaginava-me a trabalhar num jornal, a defender a verdade. Nos tempos livres ajudava o meu pai a trabalhar como electricista. A vida era tão boa para nós que até faria inveja a quem viesse de fora. Havia paz, tínhamos tudo o que precisávamos. Até chegar a Primavera de 2011.

Sou de Daraa, a pequena cidade do Sul onde nasceu a revolução, em Março daquele ano. Começou por ser uma coisa de miúdos, que pintaram nos muros da escola palavras como ‘liberdade’ e frases pró-democracia imitando o que outros tinham escrito nas paredes da Tunísia meses antes. A polícia chegou pouco depois. Tirou-os à força de casa e da escola, prendeu-os, arrancou-lhes as unhas. Tratou-os tão mal que alguns morreram. E foi aí que o povo saiu à rua.

Seguiram-se seis meses de manifestações pacíficas, multidões nas ruas de bandeiras em punho a gritar frases de protesto. Mas a polícia, mais uma vez, respondeu com força. E com tiros. Depois desses seis meses, os que tinham pensamentos mais radicais começaram a unir-se e a formar grupos de combate. Andavam pelas ruas a pedir que se juntassem a eles em nome da religião. Gritavam ‘Allahu Akbar’ – diziam que estavam a lutar em nome de Alá, pelo islão, contra o regime de Bashar Al-Assad. Desde então o sangue começou a correr e nunca mais parou.

Havia tiroteios e bombardeamentos a toda a hora. Começaram a faltar bens essenciais, como comida ou medicamentos. Ficou tudo tão caro que só quem tinha poupado muito dinheiro antes da revolução conseguiu continuar a viver ali. Outros foram para o Líbano, para a Jordânia ou tentaram a sorte na Europa.

Muitos jovens juntaram-se ao exército do regime, mas eram tão maltratados que fugiram. Alguns conseguiram sair do país, outros apenas mudaram de cidade. Para os recapturar, os soldados arrombavam as portas das casas que ainda tinham gente e nunca saíam de mãos vazias. Se não encontrassem os desertores, levavam-lhes os pais, os irmãos, os primos. Montaram postos de controlo à beira das estradas e tinham uma lista com o nome dos que fugiram: se encontrassem alguém com o mesmo apelido, prendiam-no até que o desertor voltasse. Se voltasse, matavam-no ou obrigavam-no a lutar pelo regime novamente. Perdi nove pessoas da minha família assim: algumas foram mortas a tiro, outras queimadas vivas.

21 de Janeiro de 2013. Não me esqueço das datas, apontei tudo para mais tarde mostrar ao meu filho – quero que ele saiba a verdade por mim e não pelos jornais da Síria, que não são livres para a escrever. Naquela segunda-feira estava a caminho da universidade para fazer um exame – só me faltavam três cadeiras para acabar o curso. Ia num autocarro onde seguiam mais 30 a 40 pessoas quando o exército nos obrigou a parar num posto de controlo, identificando um a um. ‘Temos de confirmar a tua identidade, tens de vir connosco.’ Enfiaram-me um saco de plástico na cabeça e levaram-me para a esquadra, sem mais explicações. Só mais tarde me disseram que procuravam soldados alauítas, fiéis a Assad, desaparecidos em combate. Suspeitavam de que o exército livre sírio, que se formou com a revolução, os tivesse raptado e eu seria a moeda de troca. ‘Se os tivermos de volta, podes sair da prisão. Senão, vamos matar-te.’

Passei 99 dias preso numa cela com mais pessoas. Vivi o Inferno. Às vezes não me deixavam ir à casa de banho ou então obrigavam-me a ficar de pé contra a parede enquanto disparavam tiros sobre a minha cabeça. Batiam-me muito – este sinal que tenho na mão esquerda, que parece um quisto sob a pele, é a marca do tubo de ferro com que um polícia me espancou. Pensei várias vezes no suicídio e só não o fiz porque não tinha como.

A 21 de Abril, o Presidente decidiu esvaziar as prisões, para acalmar os ânimos. Nessa altura já a minha família tinha pago muito dinheiro – sete milhões de libras sírias, quase 30 mil euros – a várias pessoas do governo da cidade e do Parlamento sírio para me tirarem de lá, mas só saí quando o Presidente deu ordem. O Inferno, porém, não acabou. Passei a ser procurado pelo regime porque recusei cumprir o serviço militar obrigatório e engrossar os pelotões do exército na guerra. Tinha 24 anos e não queria morrer a combater.

No regresso a casa encontrei uma cidade-fantasma: tinha 40 mil habitantes quando fui preso, restavam cerca de 3 mil a viver nos poucos edifícios que ainda estavam de pé. Mas não podia baixar os braços. Voltei à universidade para fazer as três disciplinas que me faltavam e acabei o curso de Jornalismo. Pelo menos parte do sonho cumpriu-se.

Naquela altura, Daraa estava dividida em duas zonas: eu vivia na zona controlada pelos rebeldes, a minha família morava na parte sob controlo das forças de Assad, e não havia comunicação possível – ainda que algumas vezes o meu irmão tenha arriscado visitar-me. O mais difícil foi saber que amigos e família estavam a morrer a poucos quilómetros sem que eu pudesse protegê-los ou sequer despedir-me deles. A 25 de Janeiro de 2015, os rebeldes tomaram conta de toda a cidade e o exército do regime recuou. Pudemos finalmente juntar-nos.

Quase não havia luz, por isso não tinha trabalho como electricista, e o jornalismo começou a parecer-me uma missão impossível. Então, decidi transformar um hobby antigo, a cozinha, numa tábua de salvação e montei um pequeno restaurante com o meu irmão. Um dia, quando estávamos ainda a preparar o espaço, precisei de ferramentas e fui comprá-las a um mercado. A casa dela ficava naquela rua. Quando a vi pela primeira vez, apaixonei-me. Conquistou-me logo, franzina, de pele clara e olhos azuis cristalinos. Afinal, a minha salvação foi ela: Noor, que em árabe quer dizer “luz”.

Casámos, construímos uma casa para morar, foi um recomeço total. Mas esta aparente normalidade durou pouco. Em Outubro, Assad tentou novamente tomar a cidade e não poupou esforços: enviou helicópteros e mandou largar bombas sobre as casas. A nossa ficou desfeita – por sorte naquele domingo tínhamos saído para visitar a família e escapámos ilesos. Nas ruas, os carros deram lugar aos tanques e as bombas caíam todos os dias, nem sabíamos bem de onde. A 23 de Dezembro, uma explodiu com o restaurante. Perdemos tudo.

A vida ficou ainda mais difícil naquela cidade em ruínas. As pessoas que ainda tinham algum dinheiro transformaram-se num alvo fácil, eram assaltadas ou sequestradas. Fomos ficando à procura de uma solução mas entretanto a Noor ficou grávida e tornou-se ainda mais urgente encontrar paz para o nosso filho. Fugir parecia ser o único caminho, a questão era por onde? A fronteira com a Jordânia, a menos de 20 quilómetros, estava fechada. O território junto ao Líbano estava sob controlo do regime – e eu continuava a ser procurado. A Turquia era a única porta para chegar à Europa e deixar a guerra para trás.

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Saímos de Daraa a 5 de Fevereiro de 2016 com algumas roupas, comida e 7 mil dólares, era tudo o que nos restava. Tentámos oito vezes chegar à Europa através da Turquia. Da primeira chegámos a estar sentados no barco, um pequeno insuflável apinhado de gente pronta para atravessar o mar em direcção à Grécia. Acabámos presos pela polícia turca e o traficante a quem tínhamos pago 1500 dólares desapareceu com o dinheiro.

Procurámos outro traficante. E outro – era a única solução. Tentámos três vezes antes de 20 de Março, quando entrou em vigor o acordo entre a Turquia e a União Europeia. Disseram-nos que com este acordo as pessoas que chegassem à Grécia seriam mandadas de volta para solo turco, mas não desistimos. Não tínhamos nada a perder.

Mudámos de estratégia, tentámos ir para a Bulgária a partir de Istambul. Juntámos-nos a um grupo de curdos – todos jovens, apenas uma família com duas crianças – e caminhámos pelo meio da floresta durante três dias. O traficante acompanhou-nos nos primeiros dois dias, depois disse que ia buscar água e comida e pediu-nos que não ligássemos os telemóveis, sobretudo o GPS, porque a polícia turca iria conseguir localizar-nos. Não sabíamos se era verdade mas confiámos. Claro que ele nunca mais voltou. Ao terceiro dia, a Noor chegou à exaustão, com o cansaço e o peso de uma gravidez que já ia nos sete meses. Carreguei-a ao colo ao longo do caminho de volta para Istambul.

A dada altura quisemos abandonar o grupo, era desesperante não ter ninguém com quem falar – nenhum deles percebia árabe – mas o que faria eu sozinho com uma grávida no meio do mato, caso acontecesse alguma coisa? Ficámos. Fazíamos turnos durante a noite para proteger os que dormiam, ateávamos fogueiras para afastar os animais. Foram dias muito difíceis até encontrarmos finalmente um pastor que nos indicou a estrada para a cidade.

De Istambul seguimos para Izmir. Tentámos quatro vezes ir de barco até à ilha grega de Lesbos. Numa dessas vezes entrámos num barco com iraquianos, sírios, pessoas de vários países. Eram muitas, demasiadas. O mar estava revolto, lembro-me de que havia muitas ondas. Estávamos assustados porque a guarda costeira podia aparecer a qualquer momento e no meio da confusão um homem bateu na barriga da Noor, por acidente. Ela começou a sangrar. O que temíamos aconteceu: a policia apanhou-nos e levou-nos para um pavilhão de basquetebol, onde passámos algumas horas. Enquanto esperávamos que nos deixassem ir – acabavam sempre por libertar-nos –, as crianças adormeceram em carrinhos de compras com o colete salva-vidas, que vestiam no barco, a fazer de colchão.

Tentei explicar à polícia que a Noor estava a sangrar, mas ignoraram-me. Ninguém fez nada. Quando conseguimos sair, fomos ao hospital, mas quando me pediram os papéis de registo no país e começaram a falar de forma agressiva percebi que não nos iriam ajudar. Ainda liguei para um amigo que vive em Istambul há quatro anos e fala turco, pedi-lhe que lhes dissesse que só não tinha os papéis ali comigo e que aquilo era uma emergência, mas não acreditaram. Só faziam perguntas: como tínhamos chegado ali, de onde vínhamos, o que queríamos fazer. Deixei o hospital com a Noor nos braços, a sangrar, sem saber para onde ir. Foi a minha irmã, a estudar Medicina na Síria, que pelo telefone nos disse o que fazer e que medicamentos comprar para parar a hemorragia.

Voltámos a tentar fazer a viagem para a Grécia num pequeno insuflável com 55 adultos e uma dezena de crianças a bordo. Saímos da costa de Izmir de noite sem saber o destino – os traficantes nunca dizem exactamente para onde vamos. Passámos cinco horas no mar e chegámos a ilha de Agathonisi ainda o sol não tinha nascido. Os Médicos sem Fronteiras (MSF) que estavam na ilha deram-nos bilhetes para o ferry até Samos, onde chegámos a 3 de Maio.

Assim que a polícia nos deixou no campo de refugiados, pedi-lhes que levassem a Noor ao hospital. A ambulância chegou, mas não me deixaram ir com ela. Havia outra mulher grávida, foram juntas. Passaram várias horas e quando percebi que a ambulância não as traria de volta ao campo pedi ajuda à policia, mas mais uma vez ninguém me ouviu. Caminhei até ao hospital, desesperado. Voltámos juntos, a pé.

Passámos quase um mês no campo, sempre em sobressalto. Poucas semanas depois de chegarmos houve uma grande luta entre argelinos e paquistaneses. Eram oito da manhã e ouvimos gritos: havia pessoas a atirar pedras, outras a bater com paus de ferro nos contentores. Fui ver o que se passava e a Noor ficou na tenda onde dormíamos. No meio da confusão foi atingida com pauladas duas vezes, na perna e nas costas. Um dos contentores, que por acaso estava vazio, foi incendiado. Os polícias que guardam o campo nada fizeram, simplesmente deixaram a luta continuar.

Quando soube que os MSF estavam a retirar famílias com mulheres grávidas do campo, pedi-lhes ajuda. Deram-nos abrigo aqui, no Hotel Paraíso. Uma semana depois, a 10 de Junho, nasceu o Fahrid, saudável e de olhos negros espertos. 

Quase toda a nossa família continua na Síria, outros estão na Jordânia e no Líbano. Continuamos a falar pela Internet e pelo telefone e sabemos que apesar de todas as dificuldades estão bem, estão vivos. Já nós não sabemos para onde vamos nem quando conseguiremos sair daqui, só nos dizem para esperarmos. Temos a vida em suspenso. Podemos ir para qualquer lugar – menos ficar na Grécia. Não nos sentimos apoiados nem protegidos aqui. Quero ir para um país onde possa fazer o que sempre sonhei: contar as histórias dos outros em vez da minha, fazer perguntas em vez de responder. A Noor tem 18 anos e quer acabar o liceu. Queremos que o Fahrid nunca tenha medo de fazer o caminho para a escola.

Não viemos para a Europa pedir que nos sustentem, mas sim para trabalhar e viver em paz. Para já, temos apenas uma certeza: nunca mais voltaremos à Síria. Voltar seria reviver memórias de morte e destruição. Além disso, não acredito que a guerra vá acabar. Mesmo que o regime caia, os apoiantes de Assad continuarão lá.

Texto escrito com base numa conversa com Wasim Abdrado, mediada por um tradutor