Portugal ainda não tomou medidas formais contra filhos de embaixador

Diplomacia aguarda pedido das autoridades judiciárias para agir formalmente no caso da agressão em Ponte de Sor. Rapaz de 15 anos continuava esta sexta-feira em coma induzido e o seu estado de saúde não melhorou.

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A agressão aconteceu duas horas depois dos primeiros desacatos à porta do bar Koppus Pedro Elias

O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) quer garantir que haja justiça no caso dos filhos gémeos do embaixador iraquiano que terão agredido um adolescente em Ponte de Sor, mas, até esta sexta-feira, não desenvolveu nenhuma diligência formal para pedir o levantamento da imunidade dos  suspeitos. Por serem filhos de um diplomata, os jovens, de 17 anos, beneficiam de imunidade diplomática e por isso não podem ser detidos para interrogatório.

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O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) quer garantir que haja justiça no caso dos filhos gémeos do embaixador iraquiano que terão agredido um adolescente em Ponte de Sor, mas, até esta sexta-feira, não desenvolveu nenhuma diligência formal para pedir o levantamento da imunidade dos  suspeitos. Por serem filhos de um diplomata, os jovens, de 17 anos, beneficiam de imunidade diplomática e por isso não podem ser detidos para interrogatório.

O MNE, através do gabinete de imprensa, diz que não houve diligências por não ter havido ainda um pedido formal das autoridades judiciárias. “Se for solicitado pelas autoridades judiciárias, o MNE desenvolverá as diligências que se revelarem necessárias para favorecer a administração da justiça", lê-se numa resposta escrita, na qual o MNE evoca a "tamanha gravidade" e "as consequências tão extremas e condenáveis” deste caso.

Segundo José Manuel Pureza, professor de Direito Internacional na área das Relações Internacionais na Universidade de Coimbra, o MNE é livre de agir sem um pedido judicial. “Não é estritamente necessário” e “não existe uma obrigação formal” de as autoridades judiciárias se anteciparem ao MNE, diz Pureza, que considera, no entanto, ser "francamente recomendável” para o êxito da iniciativa que o chefe da diplomacia, Augusto Santos Silva, apresente “uma argumentação inequívoca”. Sem isso, pode prestar-se a uma posição de fragilidade na relação diplomática. “É muito mais forte a posição de um Governo que esteja munido de uma fundamentação consistente.”

O docente, que é deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia, identifica aqui um ciclo que parece “sem saída” – se por um lado essa fundamentação depende do Ministério Público, por outro, o inquérito judicial tem dificuldade em avançar porque não pode ouvir os suspeitos.

Dentro ou fora de Portugal?

Três dias depois de ter sido violentamente agredido em Ponte de Sor, o rapaz de 15 anos continuava na sexta-feira em coma induzido nos cuidados intensivos do Hospital Santa Maria. A mãe, em Lisboa, e o padrasto, em Ponte de Sor, aguardavam sinais e notícias. Os ossos do rosto estão desfeitos e no cérebro tem uma hemorragia interna, diz, por telefone, o padrasto Marco Silva. Na sexta-feira ainda não estava em condições de ser submetido a uma operação necessária para melhorar.

Os dois suspeitos, filhos do embaixador do Iraque em Portugal, saíram de Ponte de Sor na quarta-feira à noite. Podem ainda estar em Portugal, mas no âmbito da Convenção de Viena, de 1961, que dá imunidade aos diplomatas, da mesma forma que não serão interrogados nem detidos, não podem ser impedidos de sair do país.

"Este é o preço que a comunidade internacional tem a pagar para permitir que milhares de diplomatas possam actuar em países onde há escassos direitos e regimes não democráticos”, diz o embaixador reformado Francisco Seixas da Costa. “É por causa da Convenção de Viena que os diplomatas funcionam livremente”, acrescenta. “Mas é verdade que a coberto desta convenção há abusos e que ela cria um problema – as vítimas ficam a descoberto.”

Seixas da Costa salienta "este aspecto trágico e muito chocante para a sociedade e também para os próprios diplomatas, que vivem com este sentimento de abuso da liberdade diplomática”, mas considera que esta é uma "excelente convenção". E conclui: “As vantagens da Convenção de Viena são muito superiores aos problemas que ela cria. Há essa dimensão de grande injustiça, mas numa economia global e com países com práticas tão diversas, se a acção de um diplomata estivesse limitada pelas leis locais, muitas vezes discricionárias, simplesmente não haveria diplomacia.”

“Nos países democráticos, não confiamos nas ordens jurídicas de muitos países”, reforça. Basta pensar na Coreia do Norte. Além disso, "o direito internacional não tem uma polícia”.

No mesmo sentido, Pureza sublinha que a imunidade protege os diplomatas de eventuais pressões por parte do Estado de residência. “Faz sentido incluir nela os familiares mais próximos porque, através da pressão sobre familiares, faz-se pressão sobre os próprios representantes diplomáticos”, explica.

Além de prever que os membros da família do embaixador sejam protegidos, a Convenção de Viena, no artigo 37.º, prevê que essa imunidade seja também conferida, e desde que não sejam nacionais do Estado acreditador, “a membros do pessoal administrativo e técnico da missão, assim como a membros de suas famílias que com eles vivam (…), a membros do pessoal de serviço de missão” e “a criados particulares dos membros da missão”.

Diplomacia "de bom senso"

Pureza não tem dúvidas de que, em vez de se questionar a Convenção de Viena, cujo “sentido é justo e correcto”, o Estado português deve solicitar o levantamento da imunidade diplomática ao Iraque. “O nosso impulso é sempre de justiça”. Mas “a imunidade faz sentido”, diz. “Se for verdade que aqueles dois jovens praticaram agressões contra outro jovem, este caso nada tem a ver com a justificação da imunidade diplomática e o conteúdo da norma.”

O deputado-académico apela, pois, a que haja “uma solução diplomática que implique um mínimo de bom senso”, a qual “envolveria o levantamento por parte do Estado iraquiano da imunidade”. A imunidade só se aplica no país onde o diplomata está acreditado. "Chega a Espanha e já não tem", explica outro embaixador, que pediu anonimato. Se os filhos do embaixador saírem do país, pode envolver-se a Interpol.

Também para Seixas da Costa não é realista pensar na aprovação de uma adenda que crie excepções. “À luz da conflitualidade do mundo de hoje, seria muito difícil encontrar uma alternativa consensual à Convenção de Viena”, diz. Nem mesmo para introduzir a excepção para suspeitos de crimes graves ou diplomatas apanhados em flagrante delito, como existe na lei portuguesa dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, segundo a qual “nenhum deputado à Assembleia da República pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia, salvo por crime punível com pena maior e em flagrante delito”. "A Convenção foi aprovada em 1961 naquilo que foi um momento único."

O Presidente da República também já se manifestou sobre este caso. Esta tarde, através da sua Casa Civil, contactou o hospital onde está internado o rapaz agredido. Segundo uma nota publicada, no site da Presidência, Marcelo Rebelo de Sousa diz-se "preocupado e chocado com estes acontecimentos".