Ministério quer “tutor” para doentes que vão muitas vezes às urgências

Gestor de caso pode ser o médico de família, um enfermeiro ou psicólogo. Em 2015, mais de dois milhões de doentes que foram às urgências dos hospitais podiam ter sido atendidos nos centros de saúde.

Foto
A ACSS está a tentar identificar situações problemáticas, por exemplo em lares de idosos, que possam ter respostas nos cuidados continuados em vez dos hospitais Rui Gaudêncio

Ter um gestor de caso, uma espécie de tutor, para acompanhar os doentes que vão com muita frequência aos Serviços de Urgência (SU) é uma das hipóteses que a tutela está a estudar para combater um problema há muito tempo diagnosticado em Portugal, mas que continua por resolver e até se agravou no primeiro semestre deste ano — o excessivo recurso às urgências hospitalares em Portugal.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ter um gestor de caso, uma espécie de tutor, para acompanhar os doentes que vão com muita frequência aos Serviços de Urgência (SU) é uma das hipóteses que a tutela está a estudar para combater um problema há muito tempo diagnosticado em Portugal, mas que continua por resolver e até se agravou no primeiro semestre deste ano — o excessivo recurso às urgências hospitalares em Portugal.

“O gestor de caso poderá ser o médico de família, um enfermeiro ou um psicólogo”, adiantou ao PÚBLICO a presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), Marta Temido, que lembra que esta estratégia já foi ensaiada noutros países. Será, sublinha, “alguém que sinaliza e reforça o acompanhamento nos cuidados de saúde primários [centros de saúde] deste tipo de população de maior risco e que por isso necessita de ter um apoio diferenciado”. Alguém a quem o doente possa telefonar quando tem problemas de descompensação de doenças crónicas, exemplifica. Por utilizador frequente entende-se o doente que vai mais de quatro vezes por ano aos SU e ainda há o chamado “hiperfrequentador” — o que suplanta uma dezena de episódios de urgência anuais.

A proposta do gestor de caso que avançará em projecto-piloto deve ser anunciada em Setembro, mas a ACSS ainda está a estudar o perfil destes doentes que representam uma fatia importante do trabalho e da despesa nos SU. Em 2015, os gastos com urgências hospitalares ascenderam a 350 milhões de euros para um total de mais de 6,1 milhões de atendimentos, revela esta entidade que gere os recursos do Serviço Nacional de Saúde.

Em simultâneo, a ACSS está a preparar a introdução de incentivos em 2017, nos cuidados de saúde primários, para os centros de saúde que consigam um maior controlo dos seus doentes crónicos, a fim de evitar a descompensação e agudização dos seus problemas, porque se sabe que é este tipo de fenómeno que muitas vezes os leva a ter de recorrer aos SU. Isto significa introduzir nos centros de saúde, como já se fez nos hospitais este ano, estímulos financeiros para evitar o aparecimento dos tais utilizadores frequentes.

Ao mesmo tempo, a ACSS está a tentar identificar situações problemáticas, por exemplo, em lares de idosos, que possam ter respostas nos cuidados continuados, em vez de nos hospitais. “Portugal tem um problema de sobreconsumo das urgências, é preciso continuar a apostar em campanhas de informação, mas alguma coisa está a falhar nos cuidados de saúde programados”, considera Marta Temido. “É  verdade que temos de educar a população, mas é preciso em simultâneo dar-lhe alternativas”, enfatiza.

Outra medida já em curso passa pela contratação de novos médicos de família (e serão quase três centenas só entre este mês e Setembro), a maior parte dos quais vão para a região de Lisboa e Vale do Tejo, onde “mais de 600 mil pessoas” ainda não têm clínico assistente, diz.

Mais 135 mil atendimentos

Esta é a resposta da tutela aos últimos indicadores sobre os serviços de urgência em Portugal, que apontam para uma evolução que vai no sentido contrário ao que tinha sido anunciado pelo ministro da Saúde — Adalberto Campos Fernandes pretendia diminuir em 3,7% o número de urgências (menos 225 mil) e em 10% a despesa (menos 48 milhões de euros) até ao final de 2016. Nos primeiros seis meses deste ano fizeram-se quase 3,2 milhões de atendimentos em SU, mais cerca de 135 mil do que no mesmo período do ano passado.

O problema é que uma parte substancial destes pacientes podiam ter sido atendidos nos centros de saúde ou outros locais. Em 2015, mais de 2 milhões de urgências  (2.018.403), cerca de um terço do total, eram, em teoria, desnecessárias, porque os doentes foram triados com pulseiras brancas (falsa urgência), azuis (não urgente) ou verdes (pouco urgente), segundo a triagem de Manchester que é feita à entrada do SU. Só os doentes que são triados com pulseiras amarela e a laranja são considerados casos urgentes e muito urgentes. A cor vermelha fica reservada para as emergências (risco de vida).

Os brancos, verdes e azuis são assim doentes que poderiam ter sido vistos nos centros de saúde ou outros serviços sem a complexidade e o custo dos SU hospitalares. Marta Temido não concorda, porém, que se classifiquem estes atendimentos como  “falsas urgências”. “Estamos a tratar doentes como se fossem falsários”, critica.

Os dados revelam que o comportamento dos doentes varia muito de região para região e de hospital para hospital — por exemplo, metade das pessoas que no primeiro semestre deste ano recorreram ao serviço de urgência do Centro Hospitalar de Lisboa Norte (CHLN) foram triadas como casos não urgentes.  No Hospital Amadora-Sintra e no de Loures a percentagem é ainda superior (54% em cada). Lisboa e Vale do Tejo é a região com maior percentagem de urgências desnecessárias. Além do CHLN, os centros hospitalares de Lisboa Ocidental e Lisboa Central têm percentagem elevadas (44% cada).

Na região norte, esta percentagem é substancialmente inferior. No Centro Hospitalar do Porto é de apenas 17% e no de S. João, 29%. No entanto, também há centros hospitalares a norte com elevadas percentagens de urgências desnecessárias, como o da Póvoa Varzim

Vila do Conde (58%)e o de Barcelos (54%). No região centro, apenas um quarto dos doentes que procuram o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra têm pulseiras brancas, azuis e verdes. No Centro Hospitalar do Algarve são 39%. O peso das urgências está expresso noutro indicador: há hospitais que fazem menos consultas externas do que atendimentos em SU, caso de Cascais, do Centro Hospitalar do Oeste, da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e do Centro Hospitalar do Algarve.

Um documento de trabalho da OCDE divulgado no final de 2015 revelava a dimensão do nosso problema a nível internacional. No conjunto de 21 países estudados, Portugal era aquele que tinha mais atendimentos nos SU per capita. Eram, entre 2001 e 2011 (e, desde então, a situação não se alterou) quase 70 admissões na urgência por 100 habitantes, bem acima do segundo da lista (Espanha) e muito longe de países como a Suíça, a Holanda e a Alemanha. Mesmo com o aumento substancial das taxas moderadoras em 2011, o ritmo da procura não se alterou entretanto.