A sida passa das margens para o centro
Momento que pode ser histórico, diz o curador da exposição Art AIDS America: atribuir à sida um papel de contribuição para o estabelecimento da cultura americana. "Se formos capazes de fazer isso, algo de poderoso acontece — a sida passa das margens para o centro".
Art AIDS America relembra-nos que a sida não terminou. Mais de 1.2 milhões de pessoas vivem com sida só nos Estados Unidos. Os curadores consideram que, ao mesmo tempo, esta é “uma forma de as pessoas sentirem que não há problema em chorar quem perderam” — as obras são uma confirmação para os que tiveram que sobreviver àquele mundo, à possibilidade de infecção, e que viram a doença levar amigos, familiares, amantes. É deste sentimento que Jonathan Katz nos fala. “A reacção da comunidade LGBT é que este é um momento emblemático. Eu sobrevivi aos piores dias da epidemia, enchi cadernos de endereços com nomes de pessoas que morreram e depois peguei em toda essa dor e raiva e pus dentro de uma caixa bem no fundo do meu armário, para nunca mais a abrir. De repente, essa caixa foi reaberta e acho que a exposição faz o mesmo para muitas outras pessoas.”
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Art AIDS America relembra-nos que a sida não terminou. Mais de 1.2 milhões de pessoas vivem com sida só nos Estados Unidos. Os curadores consideram que, ao mesmo tempo, esta é “uma forma de as pessoas sentirem que não há problema em chorar quem perderam” — as obras são uma confirmação para os que tiveram que sobreviver àquele mundo, à possibilidade de infecção, e que viram a doença levar amigos, familiares, amantes. É deste sentimento que Jonathan Katz nos fala. “A reacção da comunidade LGBT é que este é um momento emblemático. Eu sobrevivi aos piores dias da epidemia, enchi cadernos de endereços com nomes de pessoas que morreram e depois peguei em toda essa dor e raiva e pus dentro de uma caixa bem no fundo do meu armário, para nunca mais a abrir. De repente, essa caixa foi reaberta e acho que a exposição faz o mesmo para muitas outras pessoas.”
Katz assina simultaneamente uma outra exposição com Andrew Barron, no Leslie-Lohman Museum of Gay and Lesbian Art, no Soho. Deeper Dive pega em 9 dos artistas de Art AIDS America e, como o nome indica, mergulha mais fundo no seu trabalho. As fotografias de Ann Meredith mostram mulheres com sida, muitas das quais afro-americanas. A escolha foi intencional. “Ainda há a presunção de que a sida pertence à comunidade homossexual-branca”.
Jonathan escolheu outros artistas que considera que não tiveram ainda um lugar ao sol, ou porque acabaram por morrer antes de o alcançarem ou porque ainda não lhes foi dado o devido crédito, como John Dugdale, que contraiu a doença nos anos 80 e que aos 33 perdeu maior parte da sua visão. Dugdale fotografa as imagens que vê na sua cabeça, compondo cenários, com a ajuda de assistentes e amigos.
Pela galeria vamos encontrando algumas frases que demonstram a repressão daqueles anos da era Reagan: “Os homossexuais estão numa luta contra os valores americanos” — senador Republicano Jesse Helms, líder no movimento conservador. Katz diz-nos: “Ainda existe muita dificuldade em falar sobre isto e tenho esperança de que neste momento que pode ser considerado histórico possamos fazê-lo de uma nova forma: olhando para além do lado triste que afectou a cultura americana, e vendo-a antes como uma força que liderou o desenvolvimento da arte americana. Se formos capazes de fazer isso e dermos à sida esse papel, de contribuição para o estabelecimento da cultura americana, algo de muito poderoso acontece - a sida passa das margens para o centro”. A importante discussão está reaberta. E para o activista Avram Finkelstein é tão importante ter esta conversa agora como no momento em que o silêncio da morte nos primeiros anos da epidemia levou à repressão emocional e artística.
Ao mesmo tempo esta é uma discussão que pode acontecer em outros países também. Para o curador Sergio Bessa, “estamos a viver um momento muito interessante actualmente: há uma maior abertura na sociedade americana e noutros países, com a legalização do casamento homossexual por exemplo, mas ao mesmo tempo surgem reações muito fortes, no Brasil a homofobia é algo muito marcado.” Sergio estabeleceu-se em Nova Iorque nos anos 80, e por isso perdeu esse contacto do dia a dia com o Brasil, mas sente que o ódio que se vive agora é maior — "nos anos 80 não se sentia tanto, ou pelo menos as pessoas eram mais discretas, agora é mais visível.”
Quando veio para Manhattan tinha 30 e poucos anos e vivia petrificado com o vírus. “A minha geração e mesmo a geração a seguir à minha estiveram expostas a este momento assustador dos anos 80, o que fez com que vivêssemos mais alerta, mas a geração que cresceu nos anos 90, por exemplo, não foi bombardeada com imagens de corpos com marcas do vírus, como nós tínhamos sido na década anterior. É importante fazer uma homenagem à Nova Iorque desses anos, às pessoas que passaram por esses momentos”. O trabalho de Paul Thek, também exposto no Bronx, traz memórias daquilo que seria a cidade na altura. Bessa conta-nos que a sua morte foi dramática: Paul acabou os seus dias a colocar mercearias em sacos, num supermercado. “Este tipo de histórias lembra-me sempre de como Nova Iorque era na altura. Em 1988 estava a começar a mudar, mas ainda era tudo muito cru, especialmente o Lower East Side, era tudo muito grunge.” O trabalho de artistas como Peter Hujar e do seu namorado David Wojnarowicz, que enquanto adolescente vivia e prostituía-se nas ruas, também nos mostram essa cidade. “As pessoas viviam nestas condições, ocupavam prédios no Lower East Side — ou nas docas. Hoje esses locais são lindos, toda a gente corre, anda de bicicleta e é saudável, mas na altura estavam a cair aos pedaços e as pessoas punham um colchão no chão e viviam ali.” Todas estas imagens são importantes para a geração que sobreviveu. “Todos nós carregamos esta bagagem”. Katz concorda e compara com a geração mais jovem. “A experiência destas fotografias vai ser diferente. Eles cresceram numa altura em que o medo não está tão presente, numa altura em que já há medicamentos, mas não significa que haja uma cura, nem que as pessoas já não possam ser contagiadas. Mas para nós aqueles anos foram incrivelmente difíceis. Não era só o facto das pessoas estarem a morrer, era também o facto de o governo federal estar a aplaudir cada obituário que escrevíamos. As nossas vidas não valiam nada.”
A frase “as nossas vidas não valiam nada” ecoa na América de hoje e a ligação é inevitável. Pensamos no bater do coração que ouvimos uns dias antes, assim que entrámos nas galerias do museu no Bronx: “brother to brother” repete a voz, como um mantra. É quase um rap, poderoso e intenso, que se vai misturando com as imagens que podiam ser de agora. “Punk, homo, freak” ouve-se bem alto. Cenas de confrontos entre policia e afro-americanos, sensação de revolta. Conta-se a história de alguém que foi proibido de entrar numa loja porque “ser negro é o mesmo que ser ladrão”. De repente faz sentido reflectir sobre o movimento #BlackLivesMatter, fala-se do silêncio de uma nação face à diferenciação racial e sexual. Tanto ali nos anos 80, como agora. O que vemos é Tongues Untied (1989), filme de Marlon Riggs que combina documentário, autobiografia, poesia e política. Riggs representa a comunidade gay afro-americana, explora o racismo americano e a homofobia. É de facto um filme poderoso — “black men loving black men is the revolutionary act” avança.
O paralelismo entre aquela era e os dias de hoje é também mencionado pelos curadores com quem falamos. Para Bessa “naquela altura a sida era um problema das minorias, até o governo agir e perceber a dimensão do problema, já tinha passado bastante tempo e só aconteceu depois de se ter demonizado a comunidade gay.” Pensamos na campanha de Donald Trump, candidato republicano às eleições presidenciais que acontecerão em Novembro, sobre a sua posição relativamente às minorias. Há uma relação directa entre todo o trabalho político sobre o qual acabámos de discutir e as políticas que Trump propõe — “Make America great again”. Aliás, Roger Ailes, fundador da estação FOX News, que recentemente pediu a sua demissão depois de ser acusado de assédio sexual, é amigo de longa data de Donald Trump e foi consultor de comunicação nas campanhas de três presidentes republicanos, Nixon, Reagan e George W. Bush. Quando falamos com Avram, para ter um ponto de vista de um activista sobre o momento que a América vive hoje, diz-nos: “Donald Trump é um símbolo directo do que significa branding. O logo “Silent = Death” foi também um exercício de branding. De alguma forma os dois vieram da mesma escola de pensamento (risos), é através da cultura popular que as ideias viajam no capitalismo americano. É um erro não olhar para Donald Trump como um prolongamento disto, e levá-lo a sério enquanto candidato, quando de facto ele é uma pessoa que já se tinha estabelecido enquanto 'marca', antes de sequer pensar entrar na esfera política… ele conseguiu candidatar-se exactamente por causa dessa marca, em vez de ser ao contrário”. A preocupação é partilhada por Katz, que considera que o que mudou desde os anos 80 até agora foi a forma como se passou a ver a sida como uma doença crónica — “isso é um problema só por si, porque ainda há pessoas a morrer pelo mundo todo, mas o sentimento partilhado é de que é uma doença controlável. E mesmo sendo uma doença que continua a matar, é algo sobre o qual não falamos muito. É preocupante que não seja por exemplo um tema na campanha à corrida presidencial, esse silêncio…”. Que se mantém.