Gays continuam proibidos de dar sangue até pelo menos 2017
Governo anterior quis acabar com a exclusão permanente de dadores homo e bissexuais, mas estes continuam a ser rejeitados. Trâmites para novas regras tornam mudança impossível em 2016
Quando Fernando Leal da Costa mandou a Direcção-Geral da Saúde (DGS) criar uma norma clínica que autorizasse a dádiva de sangue por homo e bissexuais, não estaria à espera do que veio a suceder. O despacho do então secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde datava de 14 de Agosto de 2015 e seria enviado à DGS no dia 18 — há precisamente um ano. Continha uma ordem e um prazo: até Outubro de 2015 “terá de haver divulgação” de uma norma clínica com novos “critérios nacionais de inclusão e exclusão de dadores”.
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Quando Fernando Leal da Costa mandou a Direcção-Geral da Saúde (DGS) criar uma norma clínica que autorizasse a dádiva de sangue por homo e bissexuais, não estaria à espera do que veio a suceder. O despacho do então secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde datava de 14 de Agosto de 2015 e seria enviado à DGS no dia 18 — há precisamente um ano. Continha uma ordem e um prazo: até Outubro de 2015 “terá de haver divulgação” de uma norma clínica com novos “critérios nacionais de inclusão e exclusão de dadores”.
A norma clínica nunca viu a luz do dia e o respectivo período de discussão pública não chegou a ter início, mesmo que há cerca de quatro meses a DGS tenha informado que iria avançar. A exclusão total de dadores gay e bissexuais continua a ser praticada por serviços de colheita de sangue em Portugal. E deverá manter-se até pelo menos 2017, uma vez que os prazos de entrada em vigor das normas clínicas da DGS impedem qualquer novidade até ao fim do corrente ano.
“O meu único comentário é de estranheza”, reage Leal da Costa, que voltou a exercer medicina desde que deixou o Governo em Novembro de 2015 (tendo chegado a tomar posse como ministro da Saúde após as legislativas de Outubro).
“Tenho acompanhado o tema, até por ser hematologista, e o problema é que há pouca evidência científica sobre o caminho a seguir”, sustenta o ex-governante. “É uma norma clínica difícil de elaborar e a DGS tem um trabalho imenso para fazer, nesta e noutras áreas, com pessoal muito competente e reduzido”, justifica.
A questão já se arrasta ao longo de quase duas décadas, já tendo passado por vários responsáveis políticos. O Bloco de Esquerda (BE), que fez deste um tema-bandeira, mantém-se há meses em silêncio, mas adianta agora ao PÚBLICO que vai questionar o governo.
Assunto “não deixou de estar” nas mãos da DGS
A intenção do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, é desconhecida. Em Fevereiro último, uma assessora do ministério, Isabel Pereira Santos, informou que a norma clínica estaria pronta “nas próximas semanas”, o que não se verificou. Já esta semana, a mesma fonte garantiu que o assunto “não deixou de estar” nas mãos da DGS.
O Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) é a autoridade nacional de colheita e processamento de sangue, mas a DGS é que controla a qualidade e a segurança. Daí que a ordem dada há um ano por Leal da Costa fosse primeiramente dirigida a Francisco George, director-geral da Saúde, e a dois responsáveis dentro da DGS em quem este delegou a elaboração da norma clínica: José Alexandre Diniz, director do departamento da Qualidade na Saúde, e António Diniz, que até Maio dirigiu o Programa Nacional para a Infecção VIH/Sida.
Hélder Trindade, presidente do conselho directivo do IPST, aguarda uma decisão da DGS. António Diniz não esteve disponível para comentar. Francisco George também não, mas informou que José Alexandre Diniz é a pessoa indicada para o fazer. Porém, o director do departamento da Qualidade na Saúde encontra-se de férias e a substituta, Anabela Coelho, não respondeu a um conjunto de perguntas, enviadas por escrito, sobre as razões do atraso na publicação da norma.
Não tiveram êxito várias tentativas para chegar à fala com o sucessor de António Diniz na área do VIH/sida, Kamal Mansinho, considerado um dos maiores especialistas portugueses em doenças infecciosas. Nomeado por Francisco George há menos de três meses, Kamal Mansinho disse ao PÚBLICO no início de Julho que não avançaria para uma norma clínica “sem voltar a consultar várias entidades”, acrescentado que “seguramente antes do fim do Verão” não teria tempo, devido a “prioridades de gestão imediatas”.
As normas clínicas são uma prerrogativa da DGS e compreendem quatro passos, lê-se no site oficial: elaboração de proposta, discussão pública durante três meses, consolidação do texto e validação científica. Não existindo para já qualquer proposta fechada, a fase de validação científica nunca seria alcançada antes do fim deste ano.
Regras constam de manual de 2014
As actuais regras nacionais sobre triagem de dadores de sangue (“critérios de elegibilidade”) constam de um manual de 2014 do IPST. As pessoas seropositivas para o VIH, por exemplo, estão proibidas de dar sangue (“suspensão ou exclusão definitiva”) e as que tenham relações sexuais com indivíduos com VIH só podem ser dadoras depois de seis meses seguidos sem qualquer interacção sexual (“suspensão ou exclusão temporária”).
Apesar do que diz o manual do IPST, vários serviços de colheita fazem inquéritos verbais de triagem, de forma considerada discricionária, perguntando aos candidatos a dadores do sexo masculino se alguma vez tiveram sexo com outros homens, sendo de imediato excluídos os que respondem afirmativamente.
Tem prevalecido o entendimento não consensual de que homo e bissexuais (ou “Homens que têm Sexo com Homens”, HSH, na designação médica) constituem uma população com comportamentos de risco, desde logo o sexo anal, que os tornam mais vulneráveis do que a restante população a infecções sexualmente transmissíveis. Daí a proibição de darem sangue. Defensores deste ponto de vista argumentam não estar contra direitos de minorias, mas a favor da “qualidade e segurança” do sangue que chega aos doentes transfundidos.
A ILGA Portugal, associação de defesa de direitos de minorias sexuais e de género, foi das primeiras vozes a rejeitar os critérios de elegibilidade, logo em 1998, dois anos depois de ter sido fundada, considerando “homofóbica” e “discriminatória” a política do IPST. O PÚBLICO tentou, sem êxito, obter um comentário da associação. Em 1999, teve lugar uma manifestação a favor da dádiva de sangue por gays, organizada pelo Grupo de Trabalho Homossexual do Partido Socialista Revolucionário (GHT-PSR).
O Bloco foi o único partido que inscreveu o tema no programa que apresentou às legislativas de Outubro último. Desde então, remeteu-se ao silêncio. Por ser um partidos que apoiam o Governo socialista “colocou-se na posição de não apontar falhas ao Ministério da Saúde”, critica Leal da Costa.
Foram os deputados do BE que em 2010 fizeram aprovar uma resolução na Assembleia da República, sem votos contra, onde se recomendava ao Governo a “elaboração e divulgação de um documento normativo” que “proíba expressamente a discriminação dos dadores de sangue com base na sua orientação sexual”.
Segundo o deputado bloquista Moisés Ferreira, membro da comissão de Saúde e um dos seus vice-presidentes, o grupo parlamentar do BE “vai enviar ainda esta semana” uma pergunta ao Governo para saber “porque é que a DGS ainda não emitiu a norma de orientação clínica”.
Grupo de trabalho criado em 2010
Foi na sequência da resolução de 2010 que o IPST criou um grupo de trabalho, composto por sete especialistas, para repensar os “critérios de elegibilidade”. O grupo tomou posse em Dezembro de 2012 e só em fins de Julho de 2015 apresentou um relatório. A demora chegou a ser classificada pelo deputado bloquista José Soeiro como uma “manobra dilatória” e levou à audição em comissão parlamentar do presidente do IPST.
O relatório do grupo de trabalho concluía que a actual “suspensão definitiva” de dadores que se identificam como gays ou bissexuais deveria passar a “temporária”, apresentando três possíveis regras: suspensão 12 meses após um contacto sexual de risco, seis meses após risco, ou seis meses depois de sexo fora de relação monogâmica. Foi a primeira vez que um conjunto de peritos em Portugal recomendou a responsáveis políticos o levantamento da proibição total.
O Ministério da Saúde acolheu as conclusões, ainda assim criticadas pela ILGA Portugal, por substituírem a exclusão total por uma exclusão parcial. O referido despacho de Leal da Costa acabou por esvaziar a polémica até agora.
“A única saída para este processo é a publicação de uma norma de orientação clínica por parte da DGS, mas essa norma não deve basear-se nas conclusões do grupo de trabalho do IPST e sim na resolução da Assembleia da República em 2010”, defende agora o deputado Moisés Ferreira. “As conclusões do grupo de trabalho persistem num estigma homofóbico, segundo o qual há grupos de risco e não comportamentos de risco.”
A nível internacional, não há consenso sobre esta matéria. Em 2011, o Reino Unido autorizou homo e bissexuais a darem sangue desde que declarem ter estado pelo menos 12 meses sem praticar sexo anal, com ou sem preservativo.
Nos EUA, a autoridade de saúde Food and Drug Administration (FDA) começou a aplicar restrições à dádiva de sangue em 1983 por causa da epidemia da sida, e em 1992 optou pela proibição total para “Homens que têm Sexo com Homens”. Em Dezembro do ano passado, a FDA adoptou uma política idêntica à do Reino Unido, tendo iniciado há poucos dias um período de discussão pública para estudar alterações.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve o sexo entre homens como “comportamento de alto risco”, presumivelmente referindo-se ao coito anal e sugerindo que esta prática é maioritária entre gays. Um documento de 2012 da OMS, com normas de selecção de dadores, estabelece que a “suspensão definitiva” de homo e bissexuais “continua a ser acolhida como regra-base”.