Desporto, género e Jogos Olímpicos: o direito de Dutee Chand

A sentença arbitral do TAS colocou em evidência que os direitos humanos respeitantes ao género têm que ser ponderados e discutidos no que diz respeito ao desporto.

As temáticas que envolvem o desporto e género têm, sem qualquer dúvida, uma relevância social inquestionável. Todavia, o interesse que suscitam não se esgota neste aspecto social, manifestando-se também numa dimensão jurídica. Esta revelou-se, na actualidade, numa polémica relacionada com os Jogos Olímpicos (JO), a qual não teve, até ao momento, a devida atenção.

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As temáticas que envolvem o desporto e género têm, sem qualquer dúvida, uma relevância social inquestionável. Todavia, o interesse que suscitam não se esgota neste aspecto social, manifestando-se também numa dimensão jurídica. Esta revelou-se, na actualidade, numa polémica relacionada com os Jogos Olímpicos (JO), a qual não teve, até ao momento, a devida atenção.

É sabido que as competições desportivas se encontram divididas por regras que se aplicam numa lógica binária e diferenciada assente na distinção entre homem/mulher. Existem, portanto, competições que são específicas para competidores do sexo masculino e outras para atletas do sexo feminino.

O associativismo desportivo argumenta recorrentemente que esta distinção é necessária para garantir uma equidade entre competidores que, pela sua natureza, são possuidores de características físicas que lhes garantem uma vantagem na prática desportiva em relação a outros. No entanto, esta distinção (sexo masculino/sexo feminino) não deixa de ser profundamente controversa, desde logo, quer pelo critério a aplicar na distinção, quer pela inexistência de categorias intermédias que permitam enquadrar-se nesta diferenciação estanque. Na verdade, colocam-se aqui sérias dúvidas jurídicas, por exemplo, quando estão envolvidos problemas de transgénero, intersexualidade ou de hiperandroginismo feminino.

Estas questões têm, no limite e desde o caso que envolveu a atleta Caster Semenya, sido polémicas na modalidade do atletismo, desde logo por envolverem testes que permitam confirmar a veracidade do sexo de uma atleta. Mais recentemente, o caso que envolveu a disputa jurídica entre a Federação Desportiva Internacional de Atletismo (IAAF)/Federação Indiana de Atletismo e a atleta Dutee Chand que manifestava um hiperandroginismo feminino – que se exterioriza numa produção anormal de testosterona – ganhou contornos interessantes.

Em termos sumários, havendo dúvidas sobre o género da atleta indiana e tendo sido registado que esta havia ultrapassado os valores máximos de testosterona exigidos pelos regulamentos de hiperandroginismo da IAAF, aquela foi considerada inelegível para todas as competições.

Neste contexto, Dutee Chand recorreu, em 2015, para o Tribunal Arbitral du Sport (TAS) invocando que os regulamentos da IAAF relativos ao hiperandroginismo eram inválidos por: (i) serem discriminatórios em razão de uma característica natural e em razão do sexo; (ii) o critério utilizado (baseado nos valores de testosterona) não tem fundamento científico; (ii) a existência de desproporcionalidade na referida distinção entre atletas femininas e atletas masculinos.

Numa decisão complexa e que ascende a um total 161 páginas – onde Richard McLaren (o autor do relatório relativo à dopagem de Estado dos atletas russos) era um dos árbitros –, os juízes árbitros do TAS entenderam que seria de proferir uma decisão arbitral interlocutória. De acordo com esta, à IAAF caberia, no prazo de dois anos, provar cientificamente que a distinção entre o sexo masculino e o sexo feminino com base na existência de um hiperandroginismo e no correspondente aumento de testosterona gerava uma efectiva desigualdade entre competidores. Decorrido este prazo, o TAS decidirá a título definitivo; até esta data a atleta pode, porém, competir num âmbito nacional e internacional.

Neste sentido, aguardava-se com alguma apreensão a questão de saber se o Comité Olímpico Internacional (COI) iria ou não optar por adoptar um regulamento relativo ao hiperandroginismo, como já o tinha feito em Jogos Olímpicos (JO) anteriores. A verdade é que o COI não o fez e a atleta já teve a possibilidade de competir nos JO do Rio de Janeiro [foi sétima na sua série nos 100m].

Numa lógica sumária, parece-nos adequado fazer duas observações. Em primeiro lugar, a sentença arbitral do TAS colocou em evidência que os direitos humanos respeitantes ao género têm que ser ponderados e discutidos no que diz respeito ao desporto. Em segundo lugar, perceber que ainda que o COI não tenha considerado Dutee Chand inelegível para os JO, na sequência da polémica que envolveu a decisão do TAS, aponta uma solução para este problema: na sua decisão de Novembro de 2015 admite que "para evitar discriminações", as atletas que não sejam elegíveis com base nos critérios da competição feminina podem competir nas competições masculinas. Mas será que esta solução resolve mesmo a questão? Com efeito, cumpre, num primeiro momento, esclarecer se a regra distintiva é um critério naturalístico ou, pelo contrário, um critério puramente funcional adequado à competição desportiva.

O COI sustentou na referida decisão que o fundamento destas regras obedece a um critério para a "protecção da mulher no desporto" e dos princípios que respeitem ao fair play da competição. Parece, contudo, assumir um critério pressuposto: os atletas de sexo feminino têm naturalisticamente menos capacidade competitiva do que os atletas de sexo masculino. Não logra, porém, demonstrar onde se situa a fronteira entre ambos os critérios ou mesmo inclusivamente se essa distinção deve ser considerada naturalisticamente verdadeira, nomeadamente, quando é assente em determinados valores da testosterona. É também esta a conclusão que se pode retirar da sentença do TAS no caso Dutee Chand relativamente às regras da IAAF.

Jurista