Dizer a discórdia
Poeta político, Miguel Cardoso tem uma noção forte das possibilidades e do poder da poesia.
O melhor que se pode dizer de Víveres é que é um livro cujos poemas suscitam menos o desejo de interpretar ou de comentar do que a vontade de os aprender de cor. Mas isso é mesmo o melhor que se pode dizer de um livro de poesia.
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O melhor que se pode dizer de Víveres é que é um livro cujos poemas suscitam menos o desejo de interpretar ou de comentar do que a vontade de os aprender de cor. Mas isso é mesmo o melhor que se pode dizer de um livro de poesia.
Assim, se uma recensão crítica não pode ser apenas composta da montagem de citações do livro recenseado, esta, de boa vontade, quebraria essa regra. E sem deixar de ser recensão, sem deixar de emitir desse modo um juízo crítico. Miguel Cardoso obriga-nos, primeiro, a escutá-lo, a conhecer e reconhecer a diferença da escrita que assina – só depois a fala da crítica é admitida a conversações. Isso já era sensível em livros anteriores como, por exemplo Fruta Feia (de 2014, editado na Douda Correria) ou À Barbárie Seguem-se os Estendais (de 2015, na &etc.). Mas os poemas de Víveres – e o próprio conjunto que formam enquanto livro – têm outra força, o género de força que permite adivinhar, logo à primeira aproximação, uma mudança na paisagem poética.
Dir-se-ia que Miguel Cardoso decidiu abandonar o canto em que ia escrevendo para montar casa numa zona mais central da cidade literária. A colecção dirigida por Pedro Mexia, descontado um ou outro equívoco, presta-se bem a decisões deste género e não é a primeira vez que as acolhe bem.
Estas metáforas habitacionais justificam-se. No fim dum belo “anexo documental” (a poesia vive, já há algum tempo, na era do ensaio), o poeta escreve meia dúzia de linhas memoriais que vale a pena reter: “Embora escrito, em grande parte, entre Fevereiro e Maio de 2016, este é um livro de, e entre, várias vidas. E várias ruas: Rua da Verónica, Rua Maria, Rua dos Douradores, Rua Damasceno Monteiro, Rua do Mirante. Às pessoas destas minhas ruas, destas minhas vidas, moradores e passantes, obrigado.” Uma linha solta final acrescenta a dedicatória: “Ao Xavier, onde moro.”
Morada, habitação, casa, quarto, telhado, terraço, cave, sótão, rua, esquina, zona: não são só motivos (e muito menos cenários), são motores ou volantes que aceleram ou infletem decisivamente a imaginação de Miguel Cardoso. Seria necessário citar muito para mostrar até que ponto essas palavras são tão instáveis quanto o sujeito que as usa, passando sem se fixar nos sítios que elas sempre provisoriamente designam. Se Víveres – e o seu título já é um sinal – redescobre uma forma alternativa de realismo poético, então talvez o seu propósito mais geral esteja na procura da linguagem transitória capaz de figurar com precisão uma forma de existência desprovida de propriedade e território. Uma existência de inquilino, em suma, onde aquilo que é casa e aquilo que é corpo pessoal mal se distingue na mesma economia precária: “Alugo partes de mim / Posso dormir hoje aí?”
Devemos tomar, porém, com pinças essa ideia de realismo. O sentido de verdade que norteia Miguel Cardoso, sem o desprender da experiência biográfica, nunca sujeita o poema à função de espelho – ou de muro dos queixumes. Estes “víveres” não se deixam reduzir à matéria da subsistência diária: são os próprios poemas enquanto alimento vital e são sobretudo isso. Nada de ilusões melancólicas. Aqui respira-se uma fundamental confiança na poesia, seja qual for o mundo com que a poesia tem de lidar: “agora imagine-se / tudo isto / sem cesura”, diz uma linha única celebrando as suas próprias cesuras bem vincadas pela barra oblíqua e, portanto, como que citando-se a si mesma.
Poeta político, Miguel Cardoso tem uma noção forte das possibilidades e do poder da poesia. Basta atentar nas epígrafes: não estão lá só Adrienne Rich ou John Wieners; estão também, como inspiradores, Hölderlin e Hesíodo. A insistência com que são revisitadas algumas passagens de Os Trabalhos e os Dias mostra até que ponto, para este poeta tal como para Adrienne Rich, a poesia é da ordem da re-nomeação, da revisão, da reescrita. Um poder diferido, portanto, que continuamente separa qualquer presente histórico de si mesmo e o atravessa de textos que só cronologicamente (não historicamente) são do passado. É outro e essencial sentido da cesura: o corte que atravessa o presente, a “discórdia” em nome da qual fala o poema, essa discórdia instalada no próprio coração das coisas: “Mas não esqueçamos a discórdia / em tempos, isto é, agora mesmo, / semeada nas coisas, osso de tudo // nas coisas assim dispostas sob a luz”.
Se o poema tem a mesma urgência que os víveres é exatamente por força desta arte de lidar com a evidência da discórdia. E essa arte é a que permite ao poema instruir a vida em função da discórdia, por outras palavras, ser didático, buscar e atrair sabedoria. É a marca mais sensível logo à superfície dos primeiros poemas de Víveres: a insistência no infinitivo, forma verbal dupla que ao mesmo tempo descreve uma espécie de ação impessoal necessária ou a consumar (“Arrumar sobre a mesa / as peças sobresselentes / dos paraísos perdidos”) e formula uma injunção ou instaura um programa. O programa mais forte de Víveres resulta desta frase repetida e difícil de parafrasear: “Tomar conta uns dos outros”. Ela, justamente, nunca surge sozinha, nunca esgota o sentido do programa. Não é, portanto, um programa assistencial nem traduz o regresso de um princípio caritativo nem é uma versão lírica do comunismo.
É uma frase para o tempo em que passamos a vida a querer ou a prometer mudar de vida. Talvez não haja nada de especial a mudar, talvez seja só uma questão de “tomar conta” e de pensar novamente no que isto significa. As duas frases que precedem essa no último poema do livro não são, aliás, menos importantes, talvez digam quais são as condições para podermos “tomar conta uns dos outros” (em vez de deixar que apenas sejamos todos contabilizados). Primeiro: “Desfazer mundos, trabalhos.” Depois, num gesto posicional que poucas empresas hoje gostariam de ver generalizado: “Sentar-se num terraço lá atrás.” Mas sentado é uma óptima posição para continuar a ler Víveres e ir tomando boa conta das ruas e das vidas de Miguel Cardoso.