“Não sei se uma Mariana feliz seria capaz de gerar tanta empatia”
Mariana dos Santos é a ilustradora por detrás da famosa série de provérbios traduzidos grosseiramente para inglês que circula nas redes sociais. E é a artista por detrás de Mariana, a Miserável, alter-ego que lhe permite combater a sensação de ser uma romântica antiquada e desenquadrada
Nunca quis ser astronauta. Nunca quis ser bailarina. Nunca tive grandes ambições. Nunca me vi como uma heroína. A minha mãe costumava parar numa florista ao pé de minha casa e eu punha-me a olhar para ela e achava que a vida dela era bonita e simples, sempre rodeada de flores, sempre a receber pedidos de arranjos para serem oferecidos. É uma profissão bonita, florista. Ignorava a ligação com a morte porque nunca tive contacto directo com ela. Via apenas uma vida simples, resguardada, sem exposição pública e sonhava ser florista.
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Nunca quis ser astronauta. Nunca quis ser bailarina. Nunca tive grandes ambições. Nunca me vi como uma heroína. A minha mãe costumava parar numa florista ao pé de minha casa e eu punha-me a olhar para ela e achava que a vida dela era bonita e simples, sempre rodeada de flores, sempre a receber pedidos de arranjos para serem oferecidos. É uma profissão bonita, florista. Ignorava a ligação com a morte porque nunca tive contacto directo com ela. Via apenas uma vida simples, resguardada, sem exposição pública e sonhava ser florista.
Quando estava na 3ª classe não falava com os meus colegas, não falava com ninguém. Nunca tive jeito para as palavras. Repeti o ano. Puseram-me numa turma com deficientes porque acharam que eu só podia ter um atraso mental. A minha mãe levou-me a um psicólogo que lhe disse que eu era normal, mas tinha dificuldade em exteriorizar, em aprender. Estava sempre a pensar nas minhas coisas. Os desenhos ajudam-me a falar.
Pintava as árvores de azul e desenhava sem filtros como todas as crianças. Mas nem os meus pais achavam grande piada aos meus desenhos. A percepção que eu tinha, na verdade, era de ser péssima naquilo. Tive uma professora muito à moda antiga que valorizava o desenho à vista e a representação da realidade. Sempre quis desenhar a minha interpretação do mundo, mas nunca puxaram por mim. No momento em que tive de escolher o curso, sabia que teria de ser relacionado com artes, mas pareceu-me na altura que tinha apenas duas opções. Os dois únicos empregos respeitáveis para gente ligada a esse mundo eram a Arquitectura ou o Design. Eu nem fazia ideia de que desenhar se considerava uma profissão, escolhi Design.
Não amadureci ainda o suficiente para ligar os pontos todos, vou-me apercebendo das relações de causa-efeito com a distância. Mas olhando para trás consigo dizer que me apaixonei por ilustração quando o meu pai me levou, aos 14 anos, a uma exposição incrível feita integralmente por ilustradores portugueses. Saímos de Leiria sem que ele me dissesse o destino daquela viagem de carro e quando cheguei lembro-me de pensar: ‘Eu gosto tanto disto…’ E consigo perceber que durante o curso de Design resolvi todos os trabalhos utilizando o desenho e a ilustração. Na altura não vi nada disso. Terminei o meu curso, estagiei num atelier de Design em Barcelona. Não gostei nada. Não estava preparada para toda a responsabilidade, para os clientes sem bom gosto, para os clientes que não aceitam as nossas ideias, para os orçamentos baixos que não permitem que façamos o que queremos. Quando dei por mim a trabalhar num logotipo para um ferrador de cavalos que queria um cavalo a saltar por cima da ferradura… Aquilo não fez qualquer sentido para mim e foi então que percebi que a minha vida não ia passar por ali.
Mas não tinha ainda assumido que seria ilustradora. Voltei para casa do meu pai, faculdade terminada, estágio concluído, nada a perder e um mundo inteiro por onde escolher. Sofri um pouco nesse momento, mas esse sofrimento foi necessário para começar a construir algo. Segui um rapaz até ao Porto. Perguntam-me muitas vezes como acabei no Porto e gostava de ter uma resposta mais profissional, mas não. A única justificação é esta: conheci um rapaz.
A cidade tinha muitas galerias de ilustração, eu batia-lhes à porta e fazia exposições. Não tinha nada a perder. Cheguei a deixar o currículo numa loja de flores. Nunca fui chamada. As exposições com as minhas ilustrações começaram a correr bem, expunha em cafés, bares, lojas, mas não fazia grande dinheiro com aquilo. Tinha de justificar a presença no Porto e inscrevi-me no mestrado em Design Gráfico e Projectos Editoriais na Faculdade de Belas Artes. Tive a sorte de ter como professores algumas das pessoas que mais percebem de ilustração em Portugal. Um deles fez-me recuperar o gosto de desenhar por diversão. Nas aulas desenhávamos com a mão esquerda, sem olhar para o papel, recorrendo à nossa imaginação e não tanto ao real.
Aos 27 anos decidi que o meu pai não iria mais enviar-me dinheiro para pagar as contas e assumi para mim mesma que se queria viver da ilustração tinha de levá-la a sério e vê-la como o meu emprego. Diminuí o número de exposições, comecei a aceitar mais encomendas, a levar a sério as redes sociais, a promover-me, a aprender a gerir uma marca e um negócio. Aqueles que nesta geração não querem passar a vida a desenhar ferraduras de cavalo são confrontados a determinado momento com a necessidade de arriscar. Ganhei notoriedade antes de conseguir viver disto. A certa altura saiu um artigo sobre mim numa revista em que diziam que eu estava em alta. Nesse preciso momento, a minha conta bancária tinha dois euros.
Se eu tivesse sido florista ia continuar o bicho-do-mato de sempre. Não ia ser a rainha das flores, ia contentar-me com pouco. A ilustração está sempre a obrigar-me a expor-me, exige de mim tudo o que é oposto à minha personalidade. Odeio falar em público e já tive de dar aulas e palestras. O facto de eu ter uma personagem, a Miserável, ajuda-me a lidar com o mundo, a falar. Eu sou um pouco miserável porque tive sempre muito azar e porque sou extremamente romântica. O amor normalmente dá para o torto. O amor e a miséria estão muito perto um do outro - arriscas tudo e quando falha, falha tudo. Nós somos todos um pouco miseráveis e as pessoas revêem-se naquilo que a Mariana, a Miserável desenha. Dizem-me: ‘É mesmo assim’. Há algo do trabalho de uma florista nas minhas ilustrações que são encomendas. Quando as faço, sinto que estou a criar algo que vai falar sobre a relação entre as pessoas.
Não sei se o amor é aquilo que mais importa na minha vida, também desenho sobre outros temas, mas costumo ir parar ao amor. Eu achava que o amor era importante para toda a gente. Acredito no amor e na possibilidade de encontrar alguém que evolua connosco, mas tenho-me apercebido de que há pouca disposição para o amor. O amor exige trabalho e compromisso e exige que mostremos uma certa vulnerabilidade que não é compatível com o que o mundo pede de nós agora. O mundo pede-nos que sejamos os maiores, os melhores. A vida não está a colaborar com o amor. Ninguém fala sobre isto. Só os poetas falam sobre isto, mas os poetas são loucos. Toda a gente sabe que os poetas são loucos. Mas eu identifico-me com eles porque quero falar sobre a vida. Tenho sorte porque faz parte do meu trabalho mostrar a vulnerabilidade. Posso dizer que estou muito triste porque estou solteira e isso dói-me. Tenho uma capa que é a Mariana, a Miserável: até posso chorar na rua. A maior parte das pessoas não pode andar por aí a gritar que é infeliz porque está sozinha.
A última exposição que fiz chamava-se Lonely Hearts e era uma divagação sobre o facto de estar solteira. Senti-me muito triste nesse período e quis perceber por que razão há tantas pessoas sozinhas. Aquela exposição foi a consequência de um trabalho de investigação muito aprofundado sobre o amor. Experimentei o Tinder, o speed dating - andei a informar-me sobre o que as pessoas sentem. Fiz perguntas que nunca faria a um desconhecido. ‘Como acabou a tua última relação?’, ‘Acreditas no amor?’, ‘Sentes-te sozinho?’ Cheguei a conclusões muito dolorosas e conheci histórias muito tristes de solidão.
Não costumava desenhar flores porque as flores não têm nada de miserável. Numa das ilustrações para essa exposição desenhei uma rapariga sentada à janela enquanto espera alguém. Na mão, segura uma flor murcha cujas pétalas estão espalhadas pelo chão. A flor assinala a passagem do tempo e a desilusão porque aquela rapariga estava preparada para algo que não aconteceu. Consigo transformar uma coisa alegre em algo muito triste…
Conheci um rapaz no decorrer dessa exposição e apaixonei-me. Foi muito importante ele ter aparecido na minha vida naquele momento. Mas não sei se vou deixar de ser miserável. Não sei se uma Mariana feliz seria capaz de gerar tanta empatia nos outros…
A última vez que fui a uma florista tive uma desilusão. Pedi um arranjo de peónias em bouquet porque não gosto da disposição mais moderna das flores em escada. Ela estranhou, perguntou-me se eu era uma noiva, disse que era uma escolha antiquada. Lá fez um arranjo com margaridas e rosas pequenas. Sem peónias. No final acrescentou purpurina. Ao dar pela minha confusão comentou, entre risos, a estranheza do meu pedido: ‘Ai, a menina é tão romântica’.
Oito portugueses conhecidos nas áreas da música, literatura, publicidade, política, empresas, solidariedade e ciência contam, nesta série, a sua história na primeira pessoa