Funchal: porque arde uma cidade?

Responsável pela Ordem dos Arquitectos na Madeira responsabiliza o caos urbanístico das zonas altas e o abandono dos edifícios históricos. É preciso agir já, para que estas tragédias deixem de ser cíclicas

Foto
AFP PHOTO /JOANA SOUSA

Ali no centro do Funchal, um quarteirão abaixo do local onde o fogo andou na madrugada de terça-feira, existem duas ruas que guardam a memória de tragédias passadas. A Queimada de Baixo e a Queimada de Cima, paralelas uma à outra, estreitas como poucas, integram a zona histórica de São Pedro, duramente atingida pelos incêndios que começaram segunda-feira e só este sábado, ao início da manhã, foram declarados extintos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ali no centro do Funchal, um quarteirão abaixo do local onde o fogo andou na madrugada de terça-feira, existem duas ruas que guardam a memória de tragédias passadas. A Queimada de Baixo e a Queimada de Cima, paralelas uma à outra, estreitas como poucas, integram a zona histórica de São Pedro, duramente atingida pelos incêndios que começaram segunda-feira e só este sábado, ao início da manhã, foram declarados extintos.

Mas porque ardeu o Funchal? Rui Campos Matos, responsável pela delegação madeirense da  Ordem dos Arquitectos, não só tem as respostas como se mostra surpreendido por a dimensão dos estragos não ter sido maior. “Quando vi as imagens, temi um pesadelo igual ao do Chiado, mas em maior escala”, admite. A forma como bombeiros e populares conseguiram evitar danos maiores no coração da cidade, lutando contra as chamas no meio de edifícios dos séculos XVI e XVII, foi, para o arquitecto, a “grande surpresa”.

É verdade que durante a semana se viveram condições excepcionais. O tempo seco, praticamente sem humidade. As temperaturas elevadas, a rondar os 38 graus. O vento rápido como uma mota, que deu boleia às chamas até ao centro da cidade. No entanto, o problema, e a solução, residem bem mais acima, na periferia do Funchal, onde a cidade e floresta se confundem. Foi ali que tudo começou. Tal como no grande incêndio do Verão de 1593, que baptizou as ruas da Queimada de Cima e de Baixo, o combustível para a tragédia estava ali, onde sempre tem estado.

“Os responsáveis políticos nunca se interessaram pelas zonas altas. Não há uma política coerente há muitos anos”, aponta Campos Matos, notando que, apesar do caos urbanístico da zona limítrofe da cidade, existem “coisas boas” que podem ser aproveitadas. Mas é preciso intervir. Requalificar. Demolir. “Não é uma intervenção que vá dar votos, pelo contrário”, reconhece. Mas é tão impopular como necessária. Rui Campos Matos fala em rasgar aquela área. Construir espaços públicos. Pensar nos jovens, e criar zonas-tampão entre a floresta e a cidade. Parte do problema, a forma violenta como o fogo se propagou, explica-se também pelo desaparecimento da vegetação endémica, que foi substituída por acácias, eucaliptos e mato. Uma auto-estrada para os incêndios.

Cá em baixo, onde nas zonas mais antigas, edifícios abandonados convivem paredes meias com habitações degradadas, é também necessário intervir. Estes são, no seu entender, os “pontos frágeis” da cidade. Edifícios com logradouros pejados de infestantes abundam no centro histórico. E aqui não há inocentes. Tanto as autoridades como os proprietários privados, são responsáveis (“ou deviam ser”) pela manutenção e segurança dos edifícios e terrenos que possuem.

O presidente da câmara concorda. Reagindo à intenção do Governo de passar a gestão dos terrenos privados ao abandono para as autarquias gerirem e explorarem, uma notícia avançada este sábado pelo jornal Expresso, Paulo Cafôfo ressalva que um novo quadro legal desse género tem de prever meios financeiros. “Uma autarquia, nas circunstâncias em que a generalidade está, não tem capacidade financeira para cuidar, limpar, desmatar todas as propriedades privadas”, antecipa. O presidente do governo madeirense, Miguel Albuquerque, subscreve as preocupações do seu sucessor na Câmara do Funchal: “Fui autarca durante muitos anos e sempre que mandavam competências paras as autarquias ficava um pouco de pé atrás. Porque as competências vinham, mas o dinheiro e os fundos não.”

Rui Campos Matos diz que não é só dinheiro que falta. É, essencialmente, vontade política que escasseia, para intervir em áreas que mexem com os sentimentos das pessoas. Mas há também incúria, muita. Exemplo? A Quinta do Monte. Uma construção inglesa do século XIX que estava abandonada, e foi por isso pasto para as chamas. Foi a primeira vítima entre o património regional a cair esta semana. Não foi a única, mas é a mais significativa.

O arquitecto compara novamente com a realidade nacional. “Costumam dizer que a freguesia do Monte é a Sintra da Madeira, então a Quinta do Monte era qualquer coisa como o Palácio de Monserrate. Conseguem imaginar Monserrate a arder?” Não. Mas esta semana muito ardeu na Madeira.