Electrochoques: “Oito em cada dez pessoas melhoram. O que é fantástico”
Está a electroconvulsivoterapia na “moda” para tratar depressões graves? Diogo Telles Correia acredita que sim. Em entrevista a propósito do seu mais recente livro diz que há que evitar exageros, mas que em casos extremos esta é a melhor solução. “Ficamos maravilhados com os resultados.”
“Numa maca, conduzi-a para a sala dos electrochoques. Quis dar-lhe a mão, esperando apaziguá-la naquele momento difícil. Uma imensa parafernália esperava-nos na sala do procedimento. Rapidamente, o anestesista guiou a Joana para um sono profundo (...) Não demorou mais de uns minutos. Ao contrário do que dizem os tabloides e os documentários do YouTube, a Joana não esperneou, não gritou, não espumou.” Diogo Telles Correia, psiquiatra no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, foi chamado um dia para ir visitar uma doente em casa. Joana, uma mulher com 50 e poucos anos, mãe de um jovem de 25, estava em “quase paralisia”, num estado designado por “estupor catatónico”. Não falava, não comia.
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“Numa maca, conduzi-a para a sala dos electrochoques. Quis dar-lhe a mão, esperando apaziguá-la naquele momento difícil. Uma imensa parafernália esperava-nos na sala do procedimento. Rapidamente, o anestesista guiou a Joana para um sono profundo (...) Não demorou mais de uns minutos. Ao contrário do que dizem os tabloides e os documentários do YouTube, a Joana não esperneou, não gritou, não espumou.” Diogo Telles Correia, psiquiatra no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, foi chamado um dia para ir visitar uma doente em casa. Joana, uma mulher com 50 e poucos anos, mãe de um jovem de 25, estava em “quase paralisia”, num estado designado por “estupor catatónico”. Não falava, não comia.
O caso de Joana é um dos quatro contados no livro A vida num degrau, da editora Pactor, que Diogo Telles Correia acaba de lançar. São quatro histórias inspiradas em doentes seus, quatro tipos de depressão diferentes, que tiveram respostas terapêuticas distintas.
Havia anos que Joana sofria de crises — ora de euforia extrema, ora de depressão. Fora uma aluna brilhante de Literatura. Mas já o pai, que se suicidara anos antes, tinha tido uma vida marcada por episódios depressivos, e o avô vivera situações como as que vivia Joana, de altos e baixos levados ao extremo. No capítulo que é dedicado a esta mulher, o também professor auxiliar convidado de Psiquiatria e de Psicopatologia da Universidade de Lisboa e vice-presidente da Associação Portuguesa de Psicopatologia aborda o tema da electroconvulsivoterapia. “O tratamento electroconvulsivo, em que uma leve corrente eléctrica é aplicada na cabeça do doente, produzindo uma descarga no cérebro, é hoje feito com todos os cuidados, de forma que o doente não sinta absolutamente nada", descreve.
Joana foi alvo deste tratamento. Melhorou muito, assegura o médico. Foi o tema central de uma conversa com o PÚBLICO, no seu consultório, em Lisboa.
A depressão é hereditária? A da Joana do seu livro parece ser: o pai era deprimido, o avô também...
Antes de mais queria dizer isto: para o público em geral, não especialistas, conto histórias reais, para as pessoas perceberem como é que o doente se sente, que vida tem, e como ao longo da vida se vai submetendo a algumas técnicas para melhorar a sua situação. Isto desmistifica os tratamentos psiquiátricos e desmistifica o doente psiquiátrico — porque fala da vida dele e torna-o igualzinho a nós. E isto é fundamental.
Sobre a hereditariedade: sim, existe uma componente hereditária grande. Um dos factores de risco é termos familiares com depressão.
Não se sabe qual é causa da depressão...
Sabe-se que existem factores endógenos e factores reactivos. Os endógenos têm a ver com os genes que herdamos. E os reactivos, com o ambiente — desemprego, o mobbing [assédio em meio laboral], que abordo no livro, um luto, um desgosto amoroso. Também se pensa que existam algumas alterações fisiológicas, ao nível dos neurotransmissores. Mas não se sabe ao certo o que se passa dentro do nosso cérebro.
A Joana do seu livro, quando a conhece, está num estado de incomunicabilidade total. O que é que se pondera para optar por um tratamento como a electroconvulsivoterapia (ECT)?
A ECT tem indicações específicas. Pode ser utilizada na depressão e talvez seja na patologia em que é mais eficaz. Sobretudo na depressão grave, resistente à terapêutica farmacológica ou, nalguns casos limite, como este caso da depressão melancólica, do estupor melancólico, em que a pessoa está num estado de mutismo, não fala, não se mexe, não come, um estado limite. Nestes casos precisamos de uma resposta muito rápida que a medicação muitas vezes não nos vai dar. A ECT é muitas vezes seleccionada porque tem uma eficácia de cerca de 80%. Também está indicada para doentes que não podem fazer medicação, pelas mais diversas razões.
O que é que significa ter uma eficácia de cerca de 80%?
Que oito em cada dez pessoas melhoram. O que é fantástico. É raro não conseguirmos hoje tratar um doente com medicação. Mas há uma franja de doentes resistente à medicação e a ECT pode ser uma solução. No caso da Joana foi mesmo porque era preciso uma resposta muito rápida.
Com que frequência é usada a ECT?
Não consigo dizer. Mas é mais frequente do que se imagina.
Ainda é mal visto este tratamento?
Sabe o poder da comunicação social e do que se diz! E o que se diz muitas vezes não corresponde à realidade. Por exemplo, há um preconceito grande em relação aos medicamentos psiquiátricos — mas muitas vidas teriam sido poupadas se as pessoas tivessem sido medicadas devidamente para a depressão, havia menos suicídios. No caso da ECT, basta ver no YouTube, os vídeos mostram pessoas a receberem tratamento e a terem convulsões, a babarem-se, coisas horríveis...
E não é assim?
Não. A electroconvulsivoterapia tem séculos, mas foi desenvolvida sobretudo a partir dos anos 40. Na altura eram tratamentos dolorosos, hoje o doente não sente absolutamente nada. É anestesiado, não há sequer convulsões, nem dor.
Já assisti e já apliquei estes tratamentos. A corrente eléctrica é aplicada na cabeça do doente, produz uma leve descarga no cérebro, quando as pessoas acordam sentem, muitas vezes, uma grande tranquilidade, por vezes podem sentir uma certa confusão e dor de cabeça. Geralmente ficam bem passado umas horas. Pode haver algumas alterações de memória. Mas geralmente, ao fim de dias ou semanas, há uma recuperação. Que na maioria dos casos é completa.
O tratamento é habitualmente feito duas a três vezes por semana, durante um período variável de tempo, depende de pessoa para pessoa. O risco de lesão grave ou fatal é de 1 caso em 50 mil tratamentos. É mais baixo do que o risco que existe com um parto. É importante que as pessoas percebam isto.
Mas as falhas de memória não são tão pouco frequentes assim...
Não são tão pouco frequentes, mas a frequência de situações em que há uma lacuna da memória, em que não se recupera, é rara. E não é a memória toda! É uma lacuna.
Ainda assim, arriscam?
Medindo todos os benefícios-custos acho que não há dúvida nalguns casos — porque é importante perceber a gravidade dos casos. Muitas vezes são pessoas que estão em risco de vida. Mas este tipo de tratamento não deve, a meu ver, ser um tratamento de primeira escolha. Até pelos custos que tem...
Os medicamentos também saem caro...
Mas a ECT trata um episódio, não cura, atenção. Há pessoas que até fazem tratamentos de manutenção.
As pessoas continuam a ter de ser medicadas?
A Joana, cujo caso conto no livro, começou a fazer lítio depois da ECT e nunca mais foi preciso fazer ECT. Também há muito preconceito em relação ao lítio, mas é muito eficaz. Agora, o seu uso tem que ser vigiado, quem faz lítio tem que ser submetido a análises seriadas e frequentes das funções da tiróide, rins, etc, porque o lítio nalgumas pessoas provoca lesões. Portanto, não pode ser usado sem ser prescrito por um médico. Digo isto porque sei que há lítio à venda nas lojas de produtos naturais.É um alerta.
É verdade que os electrochoques para tratar a depressão estão a regressar, como se houvesse uma reabilitação da imagem deste tratamento?
Durante a euforia da multiplicação dos psicofármacos houve uma regressão destes tratamentos. As pessoas apostavam nos psicofármacos. Mas recentemente não houve mais grandes avanços, aliás, houve uma certa estagnação, e é natural que voltem a recrudescer outros tratamentos. Mas também tenho ideia que nalguns casos, e nalguns centros, o tratamento por ECT tem sido feito sem ser em último recurso.
Está a dizer que se passou de um extremo em que se usava pouco, para outro em que se está a usar demais?
Há psicofármacos tão bem tolerados, acho que devem ser experimentados antes de se dar o passo para este tratamento. Mas acredito que haja técnicos que usem a ECT não como último recurso. Acho que há um movimento que tem feito essa força...
Há uma moda?
Sim, uma moda.
Lembra-se do primeiro doente que tratou com ECT?
Lembro-me. Lembro-me que fiquei pasmado com a eficácia. Ficamos maravilhados com os resultados da ECT.
Prescreve-se mal medicamentos psiquiátricos em Portugal?
Pois já me têm perguntado por que é que em Portugal se prescrevem tantos psicofármacos, mais do que noutros países. Mas a grande maioria dos psicofármacos não é prescrita por psiquiatras. A maioria é por médicos que não são especialistas. Noutros casos, são aviados nas farmácias, sem receitas, o que é grave. É criminoso. As pessoas não devem ter medo de ir ao psiquiatra porque é o psiquiatra que as pode medicar bem.