Na Colômbia, só o perdão pode acabar com a guerra
Guerra civil colombiana fez oito milhões de vítimas, entre mortos, desaparecidos, órfãos, violados e estropiados. Com o acordo de paz iminente, a maioria mostra-se aberta à reconciliação mas há também quem olhe para o pacto com muita desconfiança. Viagem ao país que se esqueceu de como viver com paz
Martha Amorocho estranhou que o seu filho Alejandro, sempre activo e bem-disposto, passasse a tarde a tocar canções tristes na guitarra. “Está mal de amores”, pensou. Lá fora, o tempo não ajudava, com a brisa do planalto a esfriar Bogotá ao anoitecer, levando a família a aconchegar-se no quarto para ver um filme. Até que o telemóvel de Alejandro tocou: o seu irmão Juan Carlos tinha levado a namorada a comer um hambúrguer no clube de empresários El Nogal, ali perto, no mesmo bairro do Norte da capital, e pedia-lhe agora companhia para a ir deixar a casa. O rapaz vestiu-se e ainda desafiou o pai, que preferiu ficar. “Que pai desnaturado este, que deixa o filho ir sozinho para a rua à noite”, brincou, antes de sair porta fora. Martha e o marido sorriram.
O carro de Alejandro acabava de entrar na garagem do clube quando 200 quilos de dinamite explodiram à sua frente. O rebentamento fez com que os andares superiores desabassem e Juan Carlos, que estava na cafetaria, desabou com eles. As janelas do apartamento dos Amorocho estremeceram, contendo o estrondo abafado da desgraça. “Não liguei ao barulho e continuei no quarto até ver fumo na zona do El Nogal”, lembra Martha. “Quando liguei a TV, estavam a anunciar um atentado e tive logo um mau pressentimento. Tentámos telefonar, mas os dois telemóveis estavam desligados”.
Naquela noite de 7 de Fevereiro de 2003, Martha e o marido correram todos os hospitais e clínicas da cidade à procura dos filhos. Em vão. Quando regressaram, no meio da madrugada, o pai, desesperado, partiu um quadro de Jesus Cristo. Às 8h, receberam uma chamada do Hospital Militar: Juan Carlos, de 22 anos, vivia. “Estava irreconhecível, ao ponto de acharem que era um homem de 40 anos. Tinha o corpo todo ligado, estava entubado, não falava e nem lhe podia tocar, com medo de desligar algum fio. Pensei que ia morrer”, recorda Martha, hoje com 61 anos. Assim que saíram, ainda com o choque de verem o filho entre a vida e a morte, a polícia confirmou-lhes que Alejandro, de 20 anos, estava na lista de óbitos. “Não há nada menos natural do que uma mãe enterrar um filho”, afirma Martha, olhando para os quadros pintados pelo filho mais novo, pendurados nas paredes da sala. “O Alejandro pintava, cantava, tocava guitarra, era um miúdo solar e impulsivo, ao contrário do irmão, mais racional. Desde que ele morreu que luto para reivindicar a sua memória”.
O atentado ao El Nogal nunca foi reivindicado. Foi atribuído às FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), a guerrilha marxista-leninista que trava uma guerra com o Estado colombiano há 52 anos, mas os seus líderes nunca deram uma versão clara dos acontecimentos. A bomba colocada no clube exclusivo de Bogotá ficou para a história como uma das acções urbanas mais violentas dos rebeldes comunistas, provocando a morte a 36 pessoas e ferimentos a mais de 100. “Morreram 12 sócios, 12 convidados e 12 empregados, que representam todas as classes sociais do país. É de um simbolismo arrepiante porque mostra que mesmo que as causas das FARC na sua luta contra as elites possam ser legítimas, os seus métodos são inadequados, pois geram um sofrimento transversal a toda a sociedade”, diz Martha, designer de interiores já aposentada.
A mãe de Juan Carlos e Alejandro é uma entre oito milhões de vítimas do conflito armado na Colômbia, que dura desde 1964. Por causa dele, um milhão e 600 mil pessoas foram assassinadas, faleceram por causas naturais ou desapareceram. Os outros 6,3 milhões são colombianos que precisam de assistência. A Lei de Vítimas define como vítima a compensar "quem, a partir de 1 de Janeiro de 1985, tenha sofrido danos causados pelo conflito armado, incluindo membros da força pública e estrangeiros". Os que sofreram flagelos anteriores a 1985 não recebem compensação económica, mas têm direito à verdade, a medidas de reparação simbólica e a garantias de não-repetição.
Uma contagem geral, publicada recentemente pelo jornal El País — que não contabiliza como vítimas os familiares das baixas de guerra —, tenta uma visão mais precisa do conflito: mais de 300 mil mortos e 6,8 milhões de deslocados internos, o que coloca o país entre a Síria e o Iraque no topo da lista de nações com maior número de refugiados dentro das próprias fronteiras.
Se é certo que as FARC e o Exército são apenas dois dos muitos actores deste enredo de meio século — há ainda o ELN (Exército de Libertação Nacional, outra guerrilha de extrema-esquerda), as autodefesas paramilitares de extrema-direita (oficialmente desmobilizadas), as "bacrim" (bandos criminosos compostos por paramilitares dissidentes) e um punhado de outras facções à margem da lei —, também o é que desempenharam os papéis principais e mais duradouros. Em 2012, o Governo chefiado pelo Presidente Juan Manuel Santos encetou conversações de paz com a guerrilha, liderada por Rodrigo Londoño, conhecido por “Timochenko”, que culminaram com a assinatura de um acordo de cessar-fogo bilateral em Havana, Cuba, a 23 de Junho deste ano.
O pacto está agora pendente da assinatura do acordo final de paz, que deverá decorrer em solo colombiano até ao fim deste mês de Agosto, e da sua ratificação através de um referendo de voto obrigatório, a realizar nos quatro meses seguintes. Assume um carácter histórico por prever a desmobilização da última grande guerrilha da América Latina e perspectivar a paz num país que já se esqueceu de como viver com ela. O perdão colectivo é a condição primordial para a sua obtenção.
“As vítimas querem que os agressores confessem e se arrependam, que lhes digam que não deviam ter assassinado, sequestrado ou despejado à força”, declara Paula Gavíria, de 43 anos, directora da Unidade de Vítimas, a entidade estatal encarregada da sinalização e compensação das vítimas do conflito. “Mas não exigem que os seus carrascos apodreçam na prisão”. A moldura penal prevista nos acordos prevê amnistias para os guerrilheiros que confessem os seus crimes: restrições de liberdade de movimento e residência de dois a cinco anos para quem admita delitos mas não tenha tido participação determinante na sua execução e de cinco a oito anos para quem tenha cometido crimes mas colabore prontamente com a verdade e compensação das vítimas.
A atitude de Martha Amorocho corrobora o argumento de Paula. Um mês após o atentado, foi desafiada por um telefonema de uma rádio nacional a deixar uma mensagem às mães colombianas no Dia da Mulher. “Podia proferir um discurso de destruição ou de construção. Preferi construir. Porque ninguém me pode devolver o Alejandro, mas a sua memória pode contribuir para um bem maior, que é a reconciliação nacional”, diz. “Aderi à associação Vítimas Visíveis, despersonalizei o meu caso e transcendi-me, pondo à frente a questão do meu país”.
Ao mesmo tempo, acompanhava a lenta evolução clínica de Juan Carlos, que regressou do hospital com fraldas, sem andar nem falar. “Tinha comportamentos muito agressivos como ferrar as unhas no forro do elevador e atirar-se da cadeira. Tivemos de esconder os cortinados para que não se enforcasse”, conta a mãe. Ainda assim, finalizou a licenciatura e, ano após ano, foi recuperando as faculdades. Em 2015, o milagre consumou-se: foi pai de uma menina, que nasceu prematura, com sete meses. “A mulher estava à beira da morte. Podem imaginar a angústia dele? Já estava a pensar como ia educar a bebé sozinho. E onde estava o seu irmão para acompanhá-lo? Estava morto. Somos vítimas? Sim, claro. E vamos sê-lo independentemente do resultado do acordo de paz”, esclarece Martha.
Em 2014, o El Nogal promoveu uma palestra sobre o conflito e convidou Martha, que se sentou ao lado de Regis Ortiz, um ex-guerrilheiro recrutado em criança pelas FARC, recentemente reintegrado na sociedade. Findo o depoimento da vítima, Ortiz pediu-lhe espontaneamente desculpa. Martha abraçou-o e a imagem atravessou rios e montanhas para chegar a todos os lares da Colômbia.
A mãe-coragem acabou por integrar o comité de vítimas que viajou até Cuba para participar nos debates pela paz: comeu à mesa com os líderes rebeldes, discursou à sua frente e deles exigiu, sem receber em troca qualquer informação sobre a fatídica noite, apenas uma coisa: “A verdade”, sublinha. “A reparação é simbólica, as penas são simbólicas, mas a verdade é imprescindível como condição de não-repetição. E os senhores de Genebra [onde funciona o Conselho de Direitos Humanos da ONU, que monitoriza o processo de paz] não podem estar apenas a observar a assinatura dos papéis, têm de garantir que a verdade se conheça. Prefiro que o processo seja mais longo e que cumpra todos os pressupostos, a uma paz rápida que ignore os pontos estabelecidos. Isso ia gerar mais estragos e uma quebra total de confiança”.
“O maior inimigo é a desconfiança das vítimas sobre o Estado. Muitas delas encaram a sua aposta recente na paz como um pai que regressa a casa depois de 50 anos de ausência, em que deixou que todos os horrores acontecessem”, comenta Paula Gavíria, também gestora de um fundo público de 55 mil milhões de pesos (27 milhões de euros) para compensar vítimas até 2021. “Às vezes, vamos a lugares em que o Estado jamais tinha ido. São pessoas que nunca viram um representante do Estado, só homens armados. Somos os primeiros a dar a cara. Temos de lhes conquistar a confiança, sem promessas, para não defraudar expectativas. E só quando começam a assimilar que o Estado se preocupa com elas é que desistem de ser uma barreira para a paz, colocando como prioridade que a dor que vivem não seja vivida por mais ninguém”. As FARC também partilham alguma dessa desconfiança: em 1984, quando o Governo de Belisario Betancur lhes abriu a porta da cena política através da criação da UP (União Patriótica), na primeira tentativa de cessar-fogo entre as partes, sentiram-se traídos devido ao genocídio político que se seguiu, resultando na morte e no exílio de 3000 partidários da UP.
Casa é um lugar distante
Servelinito Piraza não conhecia o Estado. Nem a guerrilha. E no paraíso onde vivia não precisava deles: “Plantava arroz, milho, cana-de-açúcar e banana, tinha coqueiros e centenas de outras árvores e ia à pesca de noite. Gostava muito do contacto com a Natureza”, recorda o líder da comunidade indígena wounaan, de 66 anos, que em 2000 foi obrigado a partir da terra dos seus antepassados, na província de Choco, para Ciudad Bolívar, nos subúrbios de Bogotá. “Os problemas começaram assim que os paramilitares chegaram à nossa região. Eles queriam que destruíssemos os nossos cultivos para plantarmos coca, e eu recusei. Ameaçaram-me de morte”.
“O paramilitarismo surge quase ao mesmo tempo que as guerrilhas quando o Presidente Guillermo León Valencia autorizou por decreto os proprietários rurais a armarem-se contra as FARC”, conta Jorge Restrepo, presidente do Centro de Análise de Conflitos, da Universidade Javeriana. “Essas unidades de autodefesa de direita perderam o seu envolvimento político inscrito na lógica da Guerra Fria, degenerando em práticas de violência, de extorsão e de tráfico de drogas”.
O mesmo sucedera às FARC: nasceram como uma guerrilha marxista-leninista inspirada pela revolução cubana, mas acabaram designadas, pelos EUA e pela União Europeia, como um grupo terrorista. Foram acusadas de crimes de extorsão, sequestro e envolvimento no tráfico de cannabis e cocaína. “Ainda que o seu objectivo não fosse a acumulação de riqueza, mas sim o financiamento das actividades guerrilheiras, é hoje inegável que as FARC tiveram em várias zonas do país actividades ilícitas nas fases iniciais do narcotráfico, como o cultivo e a transformação de coca”, conta Restrepo. A sua luta política caiu em descrédito total na opinião pública colombiana e levou à machadada final durante o Governo conservador de Álvaro Uribe (2002-2010), que demonizou e perseguiu os rebeldes como nenhum outro Governo tinha feito. A impopularidade das FARC chegou a níveis tão elevados que, no fim de 2015, as sondagens indicavam que mais de 50% dos colombianos rejeitavam os acordos de paz devido à impunidade prevista para a guerrilha. Essa tendência inverteu-se nos últimos meses.
A selva, que até então não tivera segredos para Piraza, passou a ser um lugar perigoso. Homens armados patrulhavam a zona e fuzilavam quem lhes fizesse frente. “Um dia, quando tinha vindo a Bogotá vender artesanato, capturaram um indígena de outra comunidade para o obrigar a dizer onde é que eu estava. Ele não me denunciou, mas, ao tentar escapar, bateu com as costas no barco e até hoje tem dificuldades em caminhar. Quando me encontrou, disse-me que eu tinha de fugir porque eles estavam decididos a matar-me”.
No dia 15 de Abril, o chefe Wounaan e o seu filho mais velho deixaram a aldeia de barco, rumo a Buenaventura. Assim que chegaram, foram abordados por um homem no porto: “Queria saber se eu conhecia um índio que tinha vindo naquele dia de Choco e que vendia artesanato. Só podia ser eu. Disse-lhe que não, peguei no meu filho e refugiei-me na igreja evangélica”, conta Piraza. “Na manhã seguinte, fomos para o terminal rodoviário e, em vez de Bogotá, apanhámos um autocarro para Cali. Já estávamos sentados quando várias motos rodearam o autocarro e um dos homens perguntou ao condutor se havia algum wounaan dentro do veículo. Estávamos a morrer de medo. Ele negou e arrancou. As motos ainda nos seguiram até à saída da cidade”.
Esperaram oito dias em Cali antes de rumarem à capital. No dia 24 de Abril, os indígenas chegaram à selva de betão. Estiveram três meses escondidos em casa de uma familiar. “Até que a minha mulher me ligou a dizer que os paramilitares andavam a recrutar meninas e meninos para as suas milícias. Ordenei que toda a comunidade se juntasse a nós”. Eram 42 pessoas.
Com 500 mil pesos emprestados por um amigo, Servelinito arrendou uma casa de 16 metros por 12 metros para acomodar a sua tribo. “Estava tão sobrelotada que para irmos à casa de banho tínhamos de passar por cima de quem estava a dormir no chão. Chorei muito. Tínhamos deixado tudo o que tínhamos na aldeia, só trouxemos as roupas”, recorda. “Habituámo-nos a ir buscar água ao rio quando tínhamos sede, a colher frutos para matar a fome e a queimar lenha para combater o frio. Aqui chegavam-me as facturas de água e de gás e eu não sabia como pagá-las. Estávamos pela primeira vez dependentes do dinheiro, não apenas de semear e de pescar”. Muitos dos homens da comunidade caíram no alcoolismo. Outros tornaram-se presas fáceis das várias células criminosas instaladas em Ciudad Bolívar.
“Os indígenas e as comunidades rurais têm muitas dificuldades de adaptação à cidade”, segundo Rosalba Diaz, do Centro Salesiano Juan Bosco Obrero, que há dez anos presta assistência a refugiados do conflito. “As primeiras necessidades são assistência médica, comida, roupa e alojamento. Muitas vezes chegam aqui sem sapatos. Só depois vêm as questões de integração e emprego, que são mais difíceis de resolver”. Ciudad Bolívar é um imenso bairro de lata que se alastrou pelas encostas das montanhas para dar refúgio a quase um milhão de deslocados. Aqui encontram-se todos os povos colombianos, bem como grupos das FARC, das "bacrim" e de todos os gangues que fazem parte do conflito. As casas de madeira e ladrilho despontam como plantas sem raízes nesta terra, ligadas sim a solos distantes.
É à sombra da nova moradia da família que Servelinito conta aos mais pequenos, já nascidos na cidade, os mitos do seu povo. Fala em maach meu, a sua língua materna, que os indígenas estavam proibidos de usar no bairro para evitar a opressão. “Mesmo que a paz regresse às nossas terras, nós não voltaremos. Estamos aqui há 16 anos, os rapazes habituaram-se aos telemóveis, ao dinheiro e à vida da cidade. Nunca se iriam adaptar a viver do que a terra dá”, sustenta o chefe da comunidade. “Mas gostávamos de poder levá-los a visitar a selva, as suas origens, as velhas cabanas e o nosso rio, para que não esqueçam a nossa cultura. É por isso que rezo pela paz”.
A Unidade de Vítimas não perspectiva um regresso maciço dos deslocados às suas aldeias de origem, mesmo com a paz. “A maioria dos refugiados não regressa às aldeias porque a vida no campo é muito mais dura, constituíram família na cidade e estão traumatizados com o conflito. Estamos a focar o nosso trabalho na consolidação da qualidade de vida nos lugares de destino, através de uma integração plena e incentivo ao empreendorismo”, diz Paula Gavíria. “Mas também ajudamos os que pretendem regressar e reconstruir as suas antigas casas e quintas”.
A ocidente de Ciudad Bolívar, fica outro grande bairro de deslocados: Soacha. São dois bastiões de uma violência que nos planaltos de Bogotá chegou a ser ritualística. Quando Alexander von Humboldt investigou os costumes dos indígenas desta região, descobriu que os índios chamavam quihica às vítimas das cerimónias rituais. “Quihica significava porta. A morte de cada um dos eleitos abria um novo ciclo de 185 luas”, escreve Eduardo Galeano em As Veias Abertas da América Latina.
Do centro de Bogotá, contem-se duas horas, um autocarro urbano e dois suburbanos para chegar a Soacha. Depois, é um emaranhado de ruas poeirentas, caóticas, com a densidade humana dos mercados indianos ou chineses. Junto a uma vedação que proíbe a passagem de transeuntes para um bairro controlado pelas "bacrim", passa um velho Cadillac com duas caveiras sobre os faróis dianteiros. É uma mistura de filme de "narcos" com uma saga de Tarantino. Até que surge uma heroína invulgar, baixa, gordinha e com uma voz suave a calar um bairro inteiro de durões: Baldomera Castilblanco, de 34 anos, foragida de guerra e com uma fábrica têxtil em Soacha que emprega 30 vítimas do conflito. “O meu sonho é montar as minhas próprias lojas e exportar a minha marca”, revela. Sonhos, ali, no reino das atrocidades.
Com 13 anos, Baldomera foi obrigada a fugir pela primeira vez de casa, San Juan de Rio Seco, cinco horas a sul da capital, “zona caliente”, como denominam os colombianos as regiões de maior conflito. “A guerrilha da ELN começou por invadir as casas e as quintas, extorquir a população e servir-se dos porcos e das galinhas dos camponeses”, segundo a empresária, que à época vivia com os pais e oito irmãos numa pequena fazenda. “Depois, bombardearam os carros da polícia e ocuparam a esquadra. Já não havia lei. O meu pai mandou-me para Bogotá estudar”.
Quatro anos depois, Baldomera voltou para ajudar os pais, já impotentes para conter a desordem. “Os rapazes que trabalhavam nos campos andavam agora montados em motos, armados até aos dentes”, lembra. “Em 2001, apareceram os paramilitares e as coisas foram de mal a pior. Todos os dias aparecia alguém morto, acusado de pertencer ou de colaborar com a guerrilha. Muitos eram inocentes. Matavam em qualquer lado, com tiros, facas e motosserras. O meu pai adoeceu e morreu. Foi então que fugimos com a minha mãe para a capital”.
Em Bogotá, Baldomera estava proibida de dizer que era vítima de guerra, sob pena de retaliações. Passou fome e as maiores privações até perder a paciência: declarou-se à Unidade e recebeu 1,5 milhões de pesos (451 euros), colchões e dez quilos de arroz embalados pelas Nações Unidas. Isso permitiu-lhe alugar um apartamento mínimo e lançar negócio: “Com o arroz, comecei a fazer tamales [prato típico colombiano] e a vender na rua. Com o dinheiro que poupei, comprei uma botija de gás. A nossa vida melhorou. Já pude começar a procurar trabalho na costura, que era o que mais gostava”, conta.
Passou por várias empresas onde aprendeu a trabalhar com a maquinaria e a confeccionar trajes de todos os tipos, dos militares aos desportivos, passando pelos de gala. Em 2012, ganhou um concurso para fabricar 400 coletes para a Juan Valdés, a maior marca colombiana de café, com um contrato de quatro milhões de pesos (1200 euros). “Mas não tinha máquinas para os fazer. Então, convidei dez vizinhas, que tinham máquinas, para trabalharem comigo no meu apartamento Em 20 dias, despachámos a encomenda”, conta a empreendedora. “Algumas delas abriram negócio e eu apercebi-me de que podia ajudar as vítimas aqui em Soacha”.
Assim, com a ajuda da Unidade, Baldomera fundou a sua própria marca — a Moda BC — e empregou refugiadas e mães solteiras do seu bairro. Apesar de terem sofrido às mãos de diferentes agressores — as FARC, a ELN, os paramilitares ou o próprio Estado — a convivência é harmoniosa. Muitas aprendem a costurar e saem, mais tarde, para iniciarem uma actividade por conta própria. A pequena fábrica, instalada numa garagem, está agora a preparar 7500 calças para serem distribuídas em 70 hipermercados.
Baldomera não esconde o orgulho: “Nós, as vítimas, somos gente habituada a trabalhar. Só precisamos que nos ensinem e que nos dêem uma oportunidade. Para mim, a reconciliação não pode ser obtida distribuindo dinheiro. É preciso educação, emprego e igualdade nas oportunidades, para que os jovens não cedam à tentação de enveredar pelo crime. Só assim teremos um futuro pacífico”, afirma. E, nessa altura, para além de exportar a Moda BC, Baldomera pretende reconstruir a quinta que a família deixou para trás: “Os meus pais casaram com 13 anos, viveram naquela casa 57 anos e ali tiveram nove filhos. Vê-la em ruínas dá-me um aperto no coração”.
Soacha é a capital das mães enlutadas. Em 2008, descobriu-se que o Exército levara a cabo uma matança de jovens oriundos de bairros pobres, incriminando-os falsamente de pertencerem às FARC, de forma a atingir as quotas de eliminação da guerrilha a que o Governo liderado por Álvaro Uribe se tinha proposto. Foram mais de 4000 execuções extrajudiciais perpetradas pelo Estado (o actual Presidente, Juan Manuel Santos, estava então na pasta da Defesa), que ficaram célebres como “falsos positivos”. Dezanove deles eram de Soacha. As mães destes rapazes uniram-se e formaram as Mães de Soacha, um colectivo que emocionou a Colômbia pela luta pela justiça e responsabilização dos crimes. Até hoje, mais de 800 militares foram presos, sem que nenhuma personalidade política fosse implicada.
“Num dos casos, a mãe já tinha um filho no Exército quando o outro foi recrutado, por 450 euros, para supostamente integrar as forças em Norte de Santander. Quando lá chegou, taparam-lhe a cabeça e entregaram-no a dois soldados, que o levaram para um cerro para o fuzilarem”, conta Daniel Cadena, um voluntário da Unidade de Vítimas em Soacha. “Quando lhe destaparam a face, o soldado viu que era o irmão. Recusou-se a matá-lo. Pediu ao colega para dizer que tinha desertado e fugiu com o familiar. Contaram à mãe e voltaram a desaparecer porque sabem que se forem apanhados vão ser eliminados”.
Feridas de guerra
Não só os jovens foram alvo dos “falsos positivos”. O pai de Martha Giraldo, José Orlando Giraldo, foi morto em 2006 por nove soldados do Exército e acusado de pertencer às FARC. A filha, de 37 anos, disputa há dez anos uma dura batalha judicial para conduzir todos os envolvidos à prisão: “Como é que eu posso ter esperança na paz se os maiores criminosos de guerra, como o ex-presidente e actual senador Álvaro Uribe, continuam a exercer política?”, pergunta a activista do Movice, Movimento de Vítimas de Crimes de Estado. “Honestamente, as FARC são apenas uma parte ínfima do problema. Os crimes mais atrozes foram cometidos pelo próprio Estado e pelas unidades paramilitares que lhes prestavam vassalagem”, defende.
A família de Martha é de uma zona rural nas cercanias de Cali, no Valle del Cauca. Lidou desde os anos 80 com a presença de várias guerrilhas, que se dedicavam à extorsão e a atormentar o seu quotidiano. Martha passava muito tempo fechada em casa: “Havia muitos relatos de violações de meninas por parte das guerrilhas e do Exército”, explica. Já adultos, ela e os irmãos migraram para Cali, deixando o pai sozinho nos afazeres agrícolas. “Ele era um homem serviçal, que fazia tudo para agradar aos vizinhos. Distribuía ovos e leite e eu ralhava por ele andar a dar coisas quando nós vivíamos com tão pouco. Ele tinha outra visão e hoje percebo porquê”, lembra Martha. Sempre que podiam, os familiares iam visitar o patriarca. Mas não naquele sábado. O tio tinha a mala feita, mas perdeu o autocarro por segundos.
Na madrugada de 11 de Março 2006, o Batalhão de Alta Montanha de Cali, chefiado pelo sargento Luís Eduardo Mahecha e formado por oito homens, entrou em casa e levou José Orlando. Fora sinalizado por um informador do Exército, que umas semanas antes lhe tinha pedido, com sucesso, um pedaço de terra para plantar abóboras. As investigações posteriores concluíram que o agrediram a pontapé, o executaram com um tiro na cabeça, lhe vestiram umas calças do uniforme das FARC e esconderam o corpo: “Os cães comeram-lhe bocados da face”, lamenta a filha. No dia seguinte, o Exército congratulava-se por ter capturado um guerrilheiro que preparava um ataque à central eléctrica de Cali no dia das eleições municipais. A morte do camponês José Orlando foi aplaudida como um êxito militar.
Martha não se conformou e tem movido mundos para limpar a imagem do pai. Os seus advogados descobriram a prova determinante: a certidão de óbito da vítima fora registada a 10 de Março, um dia antes do homicídio. “Os agressores fizeram de tudo para parar-me: ofereceram-me 800 milhões de pesos, ameaçaram-me quando estava grávida e dispararam contra o meu irmão. Mas nós seguimos em frente porque não há nada mais valioso que a nossa dignidade”, conta Martha.
Em 2011, o juiz concluiu que José Orlando não tinha qualquer ligação aos rebeldes e sentenciou o sargento Mahecha a 37 anos de prisão. O julgamento contra os seus sete subordinados continua em curso. “Gostava de poder dizer que vai haver uma reconciliação, mas não acredito. Porque a reconciliação não é o que se exterioriza, é o que cada um sente no seu interior para poder exteriorizar. Se eu me reconcilio através de um processo reivindicativo de paz e justiça, de uma verdadeira transformação de quem cometeu crimes horrorosos, essa reconciliação vai dar frutos. Mas se é uma coisa que vem de fora, que está lá longe, que ninguém me consultou, que não se importa com o que eu penso, como vou interiorizá-la? Não vai transmitir misericórdia a ninguém e só vai causar mais ressentimentos”, afirma Martha.
Para Jorge Restrepo, as dificuldades existem, mas há também especificidades favoráveis no cessar-fogo colombiano. “Em oposição a outros conflitos, como o da Síria, o dos Balcãs ou mesmo o da África do Sul, na Colômbia somos todos da mesma etnia, da mesma religião, e falamos a mesma língua. Tanto um guerrilheiro como um cidadão comum anda com a bandeira nacional às costas”.
É complicado nacionalizar um sentimento tão privado como o perdão. Monica Rodriguez sente que já perdoou. Levou-lhe mais de dez anos. “Eu nem conheço, em rigor, quais são as condições para a paz, mas sinto que, se não dermos este passo, a Colômbia vai viver mais 50 anos de guerra”, antevê a empresária, que nasceu há 31. Em 2002, as FARC destruíram-lhe a vida. Primeiro, mataram-lhe o irmão, de 15 anos, por este se recusar a incorporar-se nas fileiras da guerrilha em Policarpo, Nariño, curiosamente uma das 23 zonas previstas pelo tratado de paz para o desarmamento das brigadas revolucionárias. Dias mais tarde, bloquearam o carro em que Monica regressava da escola e sequestraram-na. “Mandaram-me sair, vendaram-me e disseram-me que me iam fazer o que tinham feito ao meu irmão”, relembra. “A última coisa que vi foi uma mancha de sangue na berma da ponte que havia naquela aldeia, de onde os guerrilheiros costumavam atirar os corpos para o rio”.
Chegados ao acampamento na montanha, os sequestradores enfiaram-na numa jaula. “Havia dezenas de pessoas enjauladas, mas estavam dispersas, não conseguíamos comunicar. Passei ali a noite mais longa da minha vida porque pensei que me iam matar a qualquer instante, ainda que eu preferisse a morte a entrar para a guerrilha”. Pela manhã, dois comandantes – "El Japonés" e "El Parchado" – libertaram-na para ultimar a sua adesão às FARC. Monica rejeitou. Como retaliação, os dois homens violaram-na. “Até que se começou a ouvir um helicóptero do Exército que estava a fumigar plantações de coca e começou um combate. Aproveitei a distracção para me atirar por uma ravina. Rebolei vários metros até chegar à base, ensanguentada, e comecei a fugir. Andei várias horas escondida até chegar a Pasto, a casa de uma amiga, porque se fosse para casa eles iam encontrar-me”.
Nos anos seguintes, Monica não denunciou os seus violadores. Sentia-se suja e culpada. Nem às amigas contou o sucedido. A pressão era tanta que, anos volvidos, já mãe, chegou a receber uma carta a prometer a morte à filha, caso abrisse a boca. “Só encontrei paz quando, há uns meses, contei ao meu marido. Vivia apavorada de que ele me deixasse quando soubesse da violação. Mas ele reagiu bem. Desapareceu-me um grande peso”, revela.
Hoje, gere uma pequena empresa de gelo e presta assistência de saúde a pessoas que, como ela, escaparam à guerra nas suas aldeias para se radicarem em Cali. "El Japonés" e "El Parchado" desapareceram do mapa, impunes ao terror que disseminaram pela região. “Claro que gostava que fossem capturados, mas essa já não é a minha principal preocupação. Por isso, acredito que a capacidade de desculpar, ou esquecer, está muito vinculada ao percurso de cada um. Eu tenho uma família, um emprego de que gosto e sinto-me feliz. É mais fácil perdoar. Para aqueles cujas vidas continuam assombradas pelo terror, a dor é dominante”.
Esta guerra acabou. E as outras?
Quem conhece a história de Buenaventura não sabe se o tom púrpura das águas calmas do Pacífico ao entardecer é reflexo do sol ou da violência que espreme diariamente a cidade. É a mais perigosa da Colômbia — um feito paradoxal, visto que pelo seu porto passa 60% da riqueza do país. Mas Buenaventura foi erguida por escravos e é como tal que os seus habitantes, maioritariamente de origem africana, se sentem tratados.
Aqui não se pode apontar o dedo às guerrilhas. Há muito que não param por aqui. Quando uma delas, a ELN, que ficou de fora do actual processo de paz embora prometendo encetar conversações com o Governo se o acordo com as FARC for cumprido, dominava o território, mataram o pai de Nelson Ruiz. Foi em 1997: “Ele era alto e forte e a guerrilha queria recrutá-lo. Como não quis, entraram-nos em casa e alvejaram-nos com metralhadoras. O meu pai morreu, a minha mãe foi atingida na cabeça, mas sobreviveu. Eu, que tinha sete anos, e a minha irmãzinha assistimos a tudo”, diz Nelson, assistente social, de 26 anos. A família foi obrigada a exilar-se no mato. Nelson cresceu com traumas, insónias e pesadelos.
Quando regressou, já os paramilitares tinham decretado guerra aos esquerdistas e os tiroteios davam-se no meio da rua. Lentamente, as AUC (Autodefensas Unidas de Colombia) instauraram a sua forma de terror. “Decretaram fronteiras invisíveis, ou seja, zonas de acesso interdito a quem não seja de determinado bairro, que duram até hoje”, denuncia Nelson, que na infância sonhara ser guerrilheiro, sem imaginar que passaria a vida adulta a escapar ao recrutamento de grupos armados.
Pelos danos, a Unidade de Vítimas pagou-lhe cinco milhões de pesos (1480 euros). Mas o dinheiro não apaga o rancor. “Eu sou vítima deste conflito e nunca tive uma casa de apoio para me ajudar. Como me vou sentir quando vir os criminosos das FARC a gozar de um bom albergue, com comida paga por nós e acompanhamento psicológico? Ou a representarem-me no Parlamento? A meu ver, é absurdo. E vai provocar sede de vingança”.
As armas que estão na iminência de se silenciar disparam longe de Buenaventura. No bairro de La Carmelita, rotulado em 2015 como o campeão de homicídios em todo o país, há outras espingardas mais próximas – as dos "bacrim". São poderosas organizações mafiosas como La Empresa, Los Urabeños e o Clan Úsuga, compostas essencialmente por paramilitares desmobilizados, que controlam o tráfico de droga, os esquemas de extorsão no acesso ao porto e massacram todos os seus oponentes. “Aqui criaram as casas de piqué, que são casas palafíticas usadas como câmaras de tortura pelos gangues criminosos”, explica Jonathan Angulo,de 27 anos, desempregado de La Carmelita, que tem rejeitado múltiplas ofertas para entrar no mundo do crime. “Eles usam motosserras, picadores, machetes e catanas para mutilarem os corpos, que depois despejam no mar. De noite, ouvimos os berros. De manhã, a maré desce e há cabeças empaladas, cadáveres a boiar e outros a serem depenicados pelas galinhas. E onde é que o Tratado de Havana prevê o fim disto? Este processo de paz não contempla a população de Buenaventura”.
Mais uns passos e do cimo do monte ouve-se um alerta: “Raro, raro!” (“Estranho, estranho”). Jonathan levanta os braços. Conta que este é o código local para avisar que alguém transpôs uma fronteira invisível. O alarme é frequentemente seguido de chumbo. Desta vez, aparece um tipo alto e magro, vestido de branco da cabeça aos pés — indumentária urabeña. Está chateado por termos tirado uma fotografia do bairro sem autorização, mas acaba por nos deixar seguir. Jonathan desabafa: “Como posso confiar num acordo feito em Cuba se até no meu bairro desconfio todas as manhãs que posso morrer?”
Sete pontos-chave do acordo de paz
Referendo – O povo colombiano terá a última palavra na decisão dos acordos de paz através de um plebiscito de voto obrigatório. Prevê-se que a consulta popular contemple apenas uma questão - “Está ou não de acordo com o acordo de paz?” - e que esta ocorra num prazo de quatro meses após a celebração do acordo final entre o Governo e as FARC.
Justiça Transitória – Amnistia para os guerrilheiros e soldados que confessem os crimes cometidos. Penas de dois a cinco anos na liberdade de movimento e residência para quem não tenha tido participação activa nos delitos e de cinco a oito anos para os que tiveram participação activa. As penas serão agravadas consoante a demora na confissão e enquadradas na moldura penal comum, caso não haja confissão. Os crimes contra a Humanidade não estão contemplados pelos acordos e serão julgados à luz do direito internacional. As vítimas serão compensadas financeiramente pelo Estado.
Desarmamento – Os oito mil guerrilheiros das FARC têm 180 dias após a oficialização do acordo para entregar as armas, que serão recolhidas e usadas para fazer três monumentos. O acordo estabeleceu a criação de 23 zonas e oito acampamentos circunscritos e monitorizados pela ONU para os guerrilheiros entregarem as armas em segurança.
Desenvolvimento agrícola – Criação de um fundo de terras de distribuição gratuita, para além da formalização da propriedade rural, da entrega de subsídios e da formação de uma jurisdição agrária. A disputa pelas terras foi uma das maiores causas do conflito.
Participação política – As FARC poderão formar um novo partido e entrar na vida política. As zonas mais afectadas pelo conflito poderão eleger mais deputados, num programa que ambas as partes denominaram de “nova abertura democrática”. Fim do vínculo da organização entre a política e as armas.
Drogas ilícitas – O governo e as FARC concordaram na erradicação e substituição dos cultivos ilícitos de cocaína e de canábis. A Colômbia é o maior produtor de coca do mundo e as FARC geriam parte dos processos iniciais de produção.
Minas – O governo e os rebeldes anuíram trabalhar em conjunto na desminagem dos solos. A Colômbia é um dos países do mundo com mais minas.