Maria do Carmo Piçarra é a memória do cinema de propaganda colonial
Investigadora, deve ser das pessoas que viram mais filmes sobre o colonialismo português. Em campo estão realizadores a dar a imagem de um colonizador suave. Em contracampo há a propaganda do Estado Novo que ainda hoje tem os seus efeitos.
Viu centenas de filmes que documentam a memória do colonialismo português e a propaganda do Estado Novo. Houve uma altura em que ia todas a quintas-feiras ao ANIM, o arquivo da Cinemateca Portuguesa. “Gosto muito de fazer descobertas”, confessa na sala de jantar de sua casa, perto de Lisboa. “Desde que o ANIM abriu nos anos 1990 que vou ver diferentes tipos de filmes - e agora a colecção colonial.” Estima-se que a Colecção Colonial da Cinemateca tenha entre 500 a mil filmes – o espólio é da antiga Agência Geral do Ultramar.
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Viu centenas de filmes que documentam a memória do colonialismo português e a propaganda do Estado Novo. Houve uma altura em que ia todas a quintas-feiras ao ANIM, o arquivo da Cinemateca Portuguesa. “Gosto muito de fazer descobertas”, confessa na sala de jantar de sua casa, perto de Lisboa. “Desde que o ANIM abriu nos anos 1990 que vou ver diferentes tipos de filmes - e agora a colecção colonial.” Estima-se que a Colecção Colonial da Cinemateca tenha entre 500 a mil filmes – o espólio é da antiga Agência Geral do Ultramar.
Com a série "Colecção colonial da Cinemateca. Campo, contracampo, fora de campo", organizada pela Aleph - Rede de Acção e Investigação Crítica da Imagem Colonial, da qual é fundadora, Maria do Carmo orienta todos os meses uma sessão com projecção de filmes e debates na Rua Barata Salgueiro, em Lisboa. É assim desde Janeiro de 2015, quando o ciclo estreou com Le Portugal D’Outre Mer Dans Le Monde d’Aujourd Hui (1971), de Jean Leduc, ou Monangambée (1968), de Sarah Maldoror.
Doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, crítica de cinema, está a fazer um pós-doutoramento onde irá comparar as imagens dos colonialismos português, britânico e francês no cinema. É autora de Azuis ultramarinos. Propaganda colonial e censura no cinema do Estado Novo (Edições 70), e co-organizou a colectânea Angola, o nascimento de uma nação (Guerra&Paz). Em Agosto, a Cinemateca está fechada, por isso a série retoma a 26 de Setembro, com O vento sopra do Norte, de José Cardoso, apresentado por Raquel Schefer.
Foi trabalhar em 2006 num bairro social e a partir daí apareceu o interesse de fazer a investigação sobre o cinema e colonialismo. Quer contar?
Foi no bairro da Quinta da Serra, no Prior Velho, no Programa Escolhas [projecto governamental para promover a inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis]. No contacto com os miúdos, eles queixavam-se que a escola portuguesa no geral era muito racista. Isso veio contrariar a ideia que tinha, do senso comum, de que os portugueses eram menos racistas do que os outros povos.
Entretanto, tinha feito um trabalho de investigação sobre cinema de propaganda do Estado Novo. Decidi ir para o ANIM ver as actualidades cinematográficas – filmes de 10 minutos que passavam antes das longas-metragens. Havia uma colecção, Jornal Português, que recentemente saiu em DVD, e Imagens de Portugal, série de actualidades. Quis olhar para as imagens nesta perspectiva: como é que mostravam as colónias e como é que mostravam as pessoas que viviam nas colónias, quer os colonos, quer os africanos, colonizados?
Em campo tinha as imagens da propaganda e a mensagem que o Estado Novo queria veicular através de filmes, e filmes assumidamente de propaganda. Em contracampo queria pôr casos de filmes que tinham sido censurados pelo Estado Novo. Percebi que havia três filmes censurados, e causou-me estranheza que não fossem muito referenciados em termos de história do cinema português: Catembe [1965, de Manuel Faria de Almeida], Deixem-me ao menos subir às palmeiras [1972, de Joaquim Lopes Barbosa], e Esplendor Selvagem [1972, António de Sousa]. São filmes que estão integrados no Cinema Novo, embora Esplendor Selvagem não tanto. António de Sousa era um tipo ligado ao regime e é interessante perceber porque foi censurado. Ele adorava África e decidiu fazer um filme sobre a paisagem africana e as cerimónias entre tribos angolanas. O regime considerou que, como Portugal era acusado de deficiente civilização das suas colónias, ao só mostrar imagens de rituais e de africanos num estado “não civilizado”, o filme ia dar razão a quem acusava Portugal – e estamos a falar dos anos 1970, atenção! Foi censurado em Portugal e em Angola, em Moçambique passou. Estudei o filme, que tem particularidades – ele era bom fotógrafo, filmava bem, mas tem questões tremendas em termos da representação do corpo da mulher. Ele alterna as sequências da dança com planos em que se vêem os peitos das mulheres, o que não deixa de ser curioso porque o Estado Novo não permitia que se mostrassem cenas de nudez. Se fosse um filme vindo dos EUA, em que aparecesse uma mulher branca em tronco nu, isso era censurado, mas em relação ao corpo das mulheres africanas negras havia grande permissividade.
Interessa-me a mentalidade do Estado Novo, do censor, do colonizador, porque é que não permite determinado tipo de imagens – foi isso que tentei fazer com a análise do Catembe e Deixem-me ao menos subir às Palmeiras.
Esses filmes continuam a ser os mais importantes do arquivo sobre a questão colonial?
Não. Estes são os filmes que num determinado momento da minha pesquisa decidi estudar, e são mais citados porque assumi que o meu trabalho era político e ‘pu-los’ no mundo. Estes filmes acabaram por ser vistos de uma maneira que não tinham sido antes.
Houve uma altura em que praticamente não tinham sido exibidos.
Agora já foram. Por exemplo, em sequência da pesquisa que fiz descobriu-se que o Faria de Almeida tinha 11 minutos dos [103] cortes que tinham sido feitos ao filme [do original de 87 minutos passou para 45 minutos, e é o filme português mais censurado de sempre]. Ele destruiu os negativos, era suposto destruir também o positivo e não o fez. Hoje não é possível recuperar o filme original mas a Cinemateca já fez sessões em que apresentou uma versão restaurada do Catembe. A Colecção Colonial da Cinemateca era uma colecção com filmes que não eram exibidos. Quase todas as sessões têm sido estreias. Percebemos que muitos destes filmes não eram vistos desde o 25 de Abril: Catembe tinha sido visto duas vezes, Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras não tinha sido mostrado na Cinemateca, Esplendor Selvagem estreou em 2012 em sequência de uma conversa com José Manuel Costa [director da Cinemateca].
A Cinemateca tem feito um esforço grande no sentido de recuperar os filmes. Este trabalho vai dando os seus frutos.
Há várias pérolas no arquivo, muitos filmes por ver e por restaurar. Foi-me também dito para ir identificando filmes que não estão na colecção e que a Cinemateca depois tentará arranjar cópias. Por exemplo, há um filme de 1929, de um suíço, Marcel Borle, compositor e cineasta amador, que vai com o pai a uma missão botânica a Angola numa altura em que a Agência Geral das Colónias tinha encomendado filmes para as exposições coloniais europeias que estavam a organizar-se nessa altura em Sevilha, Antuérpia e Paris. Ele cruza-se com as equipas portuguesas que estão a filmar Angola. É incrível comparar os filmes da missão portuguesa, que era exclusivamente cinematográfica, e o filme de amador que Borle faz e é lindíssimo, e que não existe na colecção da Cinemateca.
Quais são então as diferenças?
É a qualidade do olhar. O filme dos portugueses é muito de alguém que chega lá, abre a câmara de filmar e regista o que se passa. E o Borle, apesar de dizer que é um filme despretensioso e que é um caderno de viagem filmado, tem uma perspectiva. Não tenhamos ilusões: é o filme de um colonialista, têm os negros que vão carregando as coisas, é uma missão botânica. Ele pára, filma os carregadores, há uma interacção com as pessoas, uma coisa que durante anos não acontece nos filmes feitos nas colónias.
Foi a primeira pessoa a fazer a lista dos filmes da colecção colonial da Cinemateca. Como interpreta isso?
Acho que tem a ver com o seguinte. Durante muitos anos, os investigadores não ligaram ao cinema. Os críticos vão escrevendo sobre o que vai saindo. E depois há os cinéfilos que têm interesse nos filmes artisticamente relevantes. Há muitos filmes que são artisticamente relevantes mas que não conhecemos como tal porque na época em que foram feitos não lhes deram atenção. A Cinemateca tem uma equipa que tem vindo a diminuir, e interpreto o facto de não fazer essa lista por não ter gente. José Matos Cruz criou filmografias relativas a Moçambique, Angola e Cabo Verde mas numa fase em que o arquivo não tinha a quantidade de filmes que tem hoje em dia. A dada altura, estas listas deixaram de estar actualizadas, a base de dados da Cinemateca foi ficando ultrapassada e deixaram de ter a capacidade de criar estas listas de forma actualizada. Como sou exaustiva decidi que tinha de ver todos os filmes que a Cinemateca tinha.
Nessas listagens há filmes estrangeiros?
Há menos. Dos estrangeiros há os filmes do Jean Leduc e de Jean Noel Pascal-Angot. Quando comecei a ver estes filmes, a Cinemateca tinha várias cópias, em várias línguas, de filmes do Jean Noel Pascal-Angot. Havia grandes dúvidas sobre como é aqueles filmes tinham sido produzidos. Mas não havia documentação sobre isso. Percebi que na Torre do Tombo havia documentos sobre processos de negociação relativamente à produção destes filmes e havia também documentação no Arquivo Histórico-Diplomático, alguma ainda estava confidencial – significa que não se sabia que estes filmes tinham sido produzidos com o apoio directo da presidência do conselho. Em 1964, Jean Noel Pascal-Angot e a produtora dele contactam directamente Salazar e oferecem-lhe um plano de filmes sobre a metrópole e o Ultramar, explicam que os filmes feitos por portugueses em geral têm uma fraquíssima distribuição internacional, tecnicamente não têm a desenvoltura e competência que ele é capaz de dar – e com isso consegue que o César Moreira Baptista, à frente do SNI [Secretariado Nacional de Informação], andasse a ver quem é que, ministério a ministério, estava interessado em ter filmes de propaganda e quem tinha recursos para os financiar. No espaço de um ano consegue-se financiamento e fazem-se sete filmes sobre Angola e Moçambique, as colónias ricas.
Esse olhar continua a ser de propaganda?
Completamente, mas mascarado de independente. Fingem que são repórteres isentos e internacionais. Muitas vezes respondem directamente a acusações que são feitas a Portugal, outras vezes parece que estão a ser críticos mas depois vão desmontando as críticas feitas ao regime. O que é que os filmes querem muito mostrar? A multirracialidade. Por exemplo, mostram fotografias, que são verídicas, em Angola de pessoas brancas e negras a apanharem autocarros juntas, uma coisa impossível em relação aos Estados Unidos na altura. ‘Sim podemos dizer que o racismo português era diferente’. Outro exemplo: nos laboratórios científicos fazem questão de mostrar que os negros desempenham tarefas algo qualificadas. Não é por acaso que, quando se quer mostrar a qualidade habitacional proporcionada aos negros, se mostram os mesmos bairros, os bairros da Diamang que existem para os negros que desempenham postos de trabalho com mais responsabilidade – mas aquilo é uma imensa minoria e são sempre as mesmas imagens. Há uma enorme reciclagem de imagens. Não há muitos filmes de ficção, há muitos documentários, mas se formos a analisar, imagem a imagem, muitas coisas estrearam com títulos diferentes usando as mesmas imagens.
Qua grandes linhas de propaganda sobre o colonialismo é que notou?
Há períodos. A determinada altura, nos anos 1920, procura-se responder às acusações internacionais segundo as quais Portugal é um péssimo civilizador e colonizador. Então procura-se mostrar que estamos lá com missões, a alfabetizar, a fazer desenvolvimento económico, a construir estradas e linhas de comboio. Há coisas caricatas, como num filme do Lopes Ribeiro em que se mostram miúdos com livro nas mãos a cantarem em latim. E depois há coisas que o espírito do tempo não faz censurar. É óbvio que o que havia era trabalho infantil, e que as crianças não estavam lá para estarem na escola – tinham pouquíssimas aulas e estavam a ser educadas para o trabalho. Na Exposição Colonial do Porto há textos sobre a importância de educar os africanos para o trabalho, textos que dizem: ‘Não podemos trata-los como se eles fossem iguais aos brancos por uma questão de humanidade. Eles têm uma cultura diferente da nossa, não vamos ensiná-los a ser brancos, vamos educá-los para o trabalho, não os vamos alfabetizar como se fossem brancos’. Há filmes de propaganda religiosa, económica e filmes de apontamentos etnográficos que são mais folclorizantes. São trazidas pessoas que viviam nas tabancas da Guiné-Bissau e expostas como zoos humanos aqui no Parque Eduardo VII, e depois em contraste mostram a modernidade em Lisboa.
A pouco e pouco, nos anos 1950, por causa da questão de Goa, começa a haver a necessidade de, em termos internacionais, ilustrar cinematograficamente as ideias luso-tropicais de Gilberto Freyre [antropólogo brasileiro que defendeu que os portugueses tinham uma maneira especial de estar nos trópicos e se miscegenaram com as populações locais], que são acolhidas e simplificadas sobretudo para consumo externo. Isso começa a ser notório nos filmes, começa a ser mostrado que não há racismo e que brancos e negros convivem cordialmente. Estes filmes todos do Angot têm esse enfoque. São sobretudo os realizadores a quem o regime paga que dão essa imagem. António Escudeiro, que nasceu em Angola, a dada altura dizia que não havia segregação nos cinemas em Angola. Mas Francisco Castro Rodrigues, quando desenha o Cinema Flamingo no Lobito [1963], diz que este é o primeiro cinema em que vai deixar de haver segregação. Não havia uma proibição formal, mas as pessoas sabiam que não podiam ir. Escudeiro faz um filme nos anos 1970, Angola Terra do Passado e do Futuro, em que também mostra esta multirracialidade porque os filmes feitos com apoios do regime batiam nessa tecla.
Já o Chaimite dos anos 1950 mostra os africanos, os vátuas, que se revoltam contra os portugueses [em finais do século XIX] – a ideia tese é que se traem entre eles e não há diálogo possível.
Nos anos 1960 o discurso vai muito para o luso-tropicalismo. O Faria de Almeida quando faz a proposta para o Catembe diz que quer mostrar o portuguesismo. A proposta do filme não tem nada de outro mundo e há pessoas que vêem o filme e dizem: ‘mas foi proibido?’ O que é chocante é a forma como ele mostra o trabalho.
Os não ditos que acabam por ser uma beliscadela ao projecto de propaganda do regime?
São o fora de campo, aquelas coisas em que ninguém pensou mas a câmara captou. Houve uma projecção, onde Faria de Almeida participou, em que uns brasileiros diziam: ‘ah, havia imensa segregação!’ Faria de Almeida disse: ‘sim, está lá, a câmara fixou-a porque efectivamente os brancos e os negros viviam de maneira diferente em Moçambique, em Lourenço Marques’. No caso específico tem muito a ver com o trabalho. O filme acabou por ser proibido também por causa da abordagem dos costumes. Até aí havia a Comissão da Censura, e a partir do Catembe a Agência Geral do Ultramar passa a ser chamada para censurar os filmes das colónias. O agente geral Pedro Banha da Silva estava muito formatado pelas actualidades e pelo documentário de propaganda que mostravam os negros nas escolas multiraciais e em competições desportivas em que também havia brancos. Dizia que o Faria de Almeida tinha desaproveitado a oportunidade de mostrar imagens convenientes relativamente à convivência racial. Uma parte do filme que foi cortada são sequências nocturnas em bares, com pessoas a dançar sambas e negros, brancos e mestiços em convivência racial – mas isso já não era conveniente para o regime.
Já os filmes dos anos 1960 e 1970 são obcecados em mostrar o progresso económico e continuam com enfoque de mostrar a diversidade racial, cultural, o convívio e a diversidade e liberdade religiosa. É este tipo de discurso, não há elaborações por aí além. Há é uma retórica luso-tropical que vai sendo cada vez mais apropriada e esvaziada – podem fazer-se muitas críticas a Giberto Freyre, mas ele sempre foi um defensor da mestiçagem coisa que o regime português não podia fazer. O Freyre também disse que os portugueses tinham sido melhores procriadores do que colonizadores - e isso não interessava ao regime que queria mostrar-se como grande colonizador, em termos internacionais era atacado por défice de colonização.
Estes filmes passavam nas televisões na altura, eram muito vistos?
Os investigadores em Portugal não podem ver os arquivos da RTP sem pagar... A partir de 1936 o Estado Novo dispõe do Cinema do Povo, tem carrinhas que vão às aldeias mais recônditas do país onde as pessoas são analfabetas e não há electricidade. É mostrado a Revolução de Maio, de 1938, propaganda explícita do Estado Novo. E há um filme que também é mostrado, a viagem triunfal do Presidente da República às colónias de África, realizado por António Lopes Ribeiro, tipo à Triunfo da Vontade [de Leni Riefenstahl]. Os documentários coloniais eram mostrados. Estas projecções eram complementadas por sessões de doutrinação, começavam às 20h e acabavam para aí à uma da manhã. Estamos a falar de uma primeira fase (ainda não percebi quando o Cinema do Povo terminou).
Essa foi uma das armas eficazes do sistema para propagar a ideia do bom colonizador, em Portugal e no exterior, haviam outros instrumentos?
Os filmes do Pascal-Angot e do Jean Leduc foram mostrados nas principais instâncias internacionais como a Unicef, Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde, desconhecendo que eram de propaganda e pagos pelo regime português; alguns passaram nos festivais de cinema e nas actualidades francesas ou americanas, passavam em todo o mundo. Havia pessoas que nunca foram a Moçambique e Angola e pensam que aquilo é a realidade, mesmo pessoas que estavam contra o regime. A posse de colónias, mesmo para os comunistas, era uma coisa de identidade nacional… Relativamente a outros casos, tenho estado a estudar o caso inglês, e tem sempre um enfoque muito grande na questão económica e na produção. Há coisas ridículas. Os ingleses eram capazes de fazer filmes numa tabanca e mostrar como eles deviam higienizar as casas de colmo para tomar o chá das 5! Depois há a publicidade: nós não temos isso de promoção de negros a condição de consumidores.
Em que posição aparecem os negros nesses filmes de propaganda portugueses?
Sempre em condição de trabalho. A trabalhar nas grandes fazendas, nas plantações, na Diamang, na exploração das fábricas e aí há uma obsessão de mostrar as pessoas higienizadas, com luvas, ‘não estão a contactar directamente com os alimentos’. Há o lado folclórico, quando há visitas oficiais chamam-se os negros para dançar – os africanos são chamados para dançar, tocar marimbas…
Até que ponto esta propaganda através do cinema ainda tem os seus efeitos hoje?
Ainda tem. O Chaimite passou imenso na televisão. Faz uma representação complicada de africanos, dos vátuas. Relativamente às representações raciais e sobre o colonialismo português, tenho a certeza de que esta ideia de que somos menos racistas e tivemos um colonialismo suave vem do facto de as pessoas terem visto estas actualidades na televisão e no cinema. Mesmo depois de derrubada a ditadura, isso não foi questionado. Esta questão da descolonização é muito complexa e a dada altura foi como se tivéssemos todos posto a cabeça debaixo da areia.
Qual a ligação deste projecto, até mesmo em termos de direitos de autor, aos países africanos?
Uma realidade efectiva é quem vai restaurar estes filmes. Em Portugal isto é complicado. Os filmes que foram feitos pelo Estado português: têm autores. Há documentação que comprova que há filmes feitos com apoio, mas são de autores. A Cinemateca Digital tem imensos filmes coloniais que os investigadores podem ver.
[Uma vez num evento] um são-tomense pôs o dedo na ferida, disse que não podia dizer que existisse cinema em São Tomé, porque não há tecnologia em São Tomé. E se quiser aceder a imagens antigas não consegue, pois elas estão em Lisboa. Os portugueses foram lá e filmaram: será que os moçambicanos, são-tomenses, guineenses, angolanos não têm direito a ter cópias digitais destes acervos? Porque não há vontade política de o fazer? Estou a falar de cópias em museus ou cinematecas de modo as pessoas poderem consultar. A CPLP podia ter um papel nisso.
O que faria, e tentei fazer através de uma candidatura não bem-sucedida a um apoio, era ter uma filmografia do colonialismo português. Começava por ter, online, a listagem de todos os filmes que existem na Cinemateca com as fichas técnicas actualizadas e descritivos bem-feitos. E depois usava a rede Aleph, porque muitas pessoas que têm apresentado os filmes estão a fazer investigação, e há pessoas que aparecem nas sessões [e acrescentam informação]. Não sei se é viável pôr as longas-metragens ao online, mas as curtas-metragens não seria assim tão caro.