O homem do passado no país do futuro
Vor der Morgenröte, sobre o exílio de Stefan Zweig, é um dos melhores filmes de Locarno 2016, onde passou fora de concurso.
E se um dos melhores filmes que vimos este ano em Locarno – ou pelo menos um dos que melhor captam este momento no tempo e no espaço no mundo em que vivemos – não estivesse em nenhuma das competições principais, mas sim na secção “grande público” que são as projecções ao ar livre na Piazza Grande? A verdade é que, logo no primeiro plano de Vor der Morgenröte – plano que deve durar uns bons cinco, dez minutos, e durante o qual a câmara, instalada à cabeceira de um salão nobre onde irá decorrer um banquete, não mexe – percebemos que este não é o filme de prestígio do costume. E ainda bem.
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E se um dos melhores filmes que vimos este ano em Locarno – ou pelo menos um dos que melhor captam este momento no tempo e no espaço no mundo em que vivemos – não estivesse em nenhuma das competições principais, mas sim na secção “grande público” que são as projecções ao ar livre na Piazza Grande? A verdade é que, logo no primeiro plano de Vor der Morgenröte – plano que deve durar uns bons cinco, dez minutos, e durante o qual a câmara, instalada à cabeceira de um salão nobre onde irá decorrer um banquete, não mexe – percebemos que este não é o filme de prestígio do costume. E ainda bem.
O que a actriz alemã Maria Schrader, na sua terceira realização, faz ao longo de duas horas é uma radiografia sociopolítica inspirada pelo desespero de um homem que vai percebendo lentamente que o seu mundo está à beira de desaparecer. Esse homem era o austríaco Stefan Zweig (1881-1942), o cronista de uma Mitteleuropa cristalizada em âmbar que inspirou a Wes Anderson o seu Grand Budapest Hotel, exilado da sua terra natal pela subida ao poder de Hitler e condenado a uma existência de “judeu errante” pela “banalidade do mal”. Não por acaso (e não apenas porque Barbara Sukowa aparece em ambos), nenhum filme está mais próximo de Vor der Morgenröte do que a Hannah Arendt de Margarethe von Trotta – no modo como acredita que contar uma boa história não é incompatível com pensar sobre ela e levar o espectador a pensar também.
Estruturado como se fosse uma novela, com quatro capítulos/cenas (Buenos Aires, 1937; Recife, 1941; Nova Iorque, 1941; Petrópolis, 1941) mais um prólogo e um epílogo, Schrader desenha o percurso de Zweig pela América (do Norte e do Sul) evitando as armadilhas todas do filme biográfico, preferindo-lhe uma paciente construção por acumulação de ideias e situações. A cada um dos “capítulos” a realizadora e o seu co-argumentista Jan Schomburg fazem corresponder um passo a mais na tomada de consciência de que o tempo de uma Europa culta, civilizada, gentil, aristocrática havia passado e que apenas os “movimentos tectónicos que duram séculos” permitiriam devolvê-la ao seu estado ideal. As ideias já nada querem dizer num mundo onde o poder se transferiu para a demagogia e para o medo; o que podem as palavras contra as acções, de que serve pregar aos convertidos que já estão de acordo connosco se a sua massa crítica é insuficiente para combater os inimigos?
Esse desespero existencial que vai ganhando terreno é magnificamente transmitido pelo olhar cada vez mais vazio de Josef Hader, actor impecável na sua interpretação de um Zweig preso entre noções quase arcaicas de honra e cavalheirismo e um mundo real que parece fazer pouco delas ao mesmo tempo que o admira como mago das palavras. Talvez o mais interessante de Vor der Morgenröte seja o modo como cruza a fé de Zweig no Brasil como um “país do futuro” onde a utopia de uma sociedade harmoniosa era possível com a brutal consciência de que ele próprio nunca viveria para a ver realizada – e mesmo assim não sucumbiu ao niilismo, mantendo-se quixotescamente fiel a si próprio e à sua concepção de um mundo em desaparecimento. (Nesse aspecto, aliás, Maria Schrader encontra igualmente terreno em comum com os “corações cicatrizados” do filme de Radu Jude, que com ele partilha uma série de temas tratados de modo estética e narrativamente diferentes.
Há a curiosidade adicional de reconhecermos no filme, co-produção alemã, francesa e austríaca parcialmente rodada no nosso país e em São Tomé e Príncipe (a fazer as vezes do Brasil), um sem-número de actores portugueses em pequenos papéis secundários. Mas mesmo que isso não fosse verdade, a inteligência e a humanidade de Vor der Morgenröte fazem dele uma dos momentos de cinema mais emocionantes de Locarno 2016 – com a boa notícia de que a sua distribuição em Portugal (ainda sem data) está já assegurada.