Geração "CrossFit" ou a maleita do "fitness"
Perdoem-me por preferir, apesar de tudo, a actividade suave, meditativa, reflexiva, do corpo-dança, a visão "espiritualizada" do "corpus" frágil
Dois paradigmas aparentam controverter-se na "hipermodernidade" (Lipovetsky): o "moderno", centrado na "performance", no "rendimento", no "resultado", e o "pós-moderno", concentrado no "processo", na humanização do próprio "espírito" (talvez com o rebuço da "espiritualização do humano"). Estes modelos autorizam uma visão díspar da actividade física. O mundo do "desporto", e do "fitness", rege-se essencialmente pelo primeiro, mas, a meu ver, a óptica da "saúde" deve regular-se dominantemente pelo segundo, coisa subentendida pela dinâmica do "fitness", do novo (?) conceito de actividade do corpo, muito centralizado nas tarefas de força, no desempenho.
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Dois paradigmas aparentam controverter-se na "hipermodernidade" (Lipovetsky): o "moderno", centrado na "performance", no "rendimento", no "resultado", e o "pós-moderno", concentrado no "processo", na humanização do próprio "espírito" (talvez com o rebuço da "espiritualização do humano"). Estes modelos autorizam uma visão díspar da actividade física. O mundo do "desporto", e do "fitness", rege-se essencialmente pelo primeiro, mas, a meu ver, a óptica da "saúde" deve regular-se dominantemente pelo segundo, coisa subentendida pela dinâmica do "fitness", do novo (?) conceito de actividade do corpo, muito centralizado nas tarefas de força, no desempenho.
Interessa perceber até que ponto o "bem-estar" fornecido pela prossecução de uma visão "moderna" do "homo motor" (Hannah Arendt) justifica o "sofrimento" ("pós-moderno") do corpo no curto e médio prazo. Não é que a actividade física não faça bem, mas este "bem" deve ser adequadamente contextualizado. Por exemplo, um treino de força permite obviamente ganhar massa, potência e resistência musculares, mas é preciso entender de que modo essa "força" serve o objecto "saúde". Será que esse ganho no curto prazo, e sua aplicação funcional/laboral/social, justifica o "mal" que pode estar a ser colocado ao nível articular? Será, por exemplo, que a corrida que permite ganhar resistência aeróbia se justifica no utente cuja postura dos joelhos o arrisca a desenvolver artrose?
É difícil medir ganhos e desvantagens, mas, enquanto fisioterapeuta de reeducação postural que sou, sinto-me tentado a defensar, desempenhar, sobretudo o meu papel; que, não obstante, se diferencia do de muitos outros fisioterapeutas, mais aplicados na questão do "rendimento", da produtividade. Confesso que me irritam sobremaneira os "fisioterapeutas do desporto", que reabilitam a estrutura, muitas vezes com demasiada prematuridade, com vista a alvejar o atleta com seu alvo de rendimento. Mas a "saúde", entendida por mim, essencialmente, enquanto objecto de supressão do sofrimento, parece ganhar mais com uma actividade cuja óptica é a do continuum moderado da tarefa motriz, a do movimento/postura trabalhado na adequação das leis da biomecânica à especificidade tónica/postural do sujeito.
Estamos, assim, bem para além da lógica dos estudos de carácter estatístico-probabilístico, que, geralmente, não obviam a adequação do raciocínio clínico à necessidade individual. E quando se trata deste tipo de precisão, exercícios e treinos pensados para grupos, para estruturas "perfeitas", perdem a validade. São os pulos destruindo joelhos, a natação afectando ombros e coluna, a musculação exercendo pressões incríveis no tecido conjuntivo, essa nova invenção, o CrossFit, totalmente maquiavélica na criação de desequilíbrios musculares, em tudo se vê excesso e desadequação. É claro que, no fundo, é tudo uma questão de "sorte". O atleta com a forma aparentemente perfeita vai tudo fazendo, até que, um dia, um movimento ou peso a mais na elevação do haltere cria a ruptura do tendão no ombro, mas isso seria decerto evitado se tivesse havido, sempre exemplificando, uma adequada identificação do conflito sub-acromial preexistente na articulação, seguida de uma intervenção postural preparatória (para não dizer que se desaconselharia o exercício). Enfim, cada caso é um caso, mas os exemplos poderiam ser infindáveis, e a isso teria de acrescentar a evidência neurobiológica, com esta a dizer respeito a todos. Havendo, por exemplo, uma perfeita evidência de que a zona posterior do corpo é essencialmente tónica, muito tensa, para quê a persistência no treino dessa zona nos problemas de coluna? Bem, a verdade é que as "leis" por que se processa o treino não estão adequadas às bases posturais, que, na fisioterapia, alimentam grandes sistemas de intervenção, como os baseados em Mézières. Muitas vezes se força, fortalece, o que deveria ser alongado. E muitas vezes se alonga indevidamente, esquecendo precisamente aquilo que é mais importante alongar. A riqueza dos modelos de fisioterapia neurológica (como o do método Bobath) deixariam muitos personal trainers de boca aberta. O conhecimento da semiologia clínica, fundamental, é estranho a muitos profissionais da "educação física".
E, no entanto, discute-se a importância da Educação Física no Ensino Secundário, quando a sua base é esmagadoramente "desportiva". Suponho que toda aquela competição seja importante no contexto da Sociedade em que vivemos, neste mundo de cão onde ou se mata ou se é morto. Perdoem-me por preferir, apesar de tudo, a actividade suave, meditativa, reflexiva, do corpo-dança, a visão "espiritualizada" do "corpus" frágil. Não, não sou um "treinador", sou um "terapeuta", e a minha perfectibilidade é outra, a do "ser" em renovação constante, Ele mesmo objecto sem "objecto".