O país com origens no deserto

Uma leitura gráfica e transversal daquilo a que se poderia chamar a Espanha enquanto estilo.

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O que distingue Jan Morris não será sequer a vontade de nos impor teses sobre nações; antes, uma conjugação da inteligência com a percepção perante realidades contraditórias e fugidias David Hurn/Magnum photos

Espanha é provavelmente o livro mais arriscado de Jan Morris. E é também o livro onde se lê uma das mais extraordinárias sínteses que alguém terá tentado traçar da prodigiosa diversidade espanhola: o capítulo terceiro, que se chama A Dama de Elche. É uma leitura gráfica e transversal daquilo a que se poderia chamar a Espanha enquanto estilo. Apanha desde a própria estatueta de meio metro de altura, encontrada na cidade da província de Alicante em 1897 e esculpida vinte e quatro ou vinte e cinco séculos antes, até às catedrais espanholas mais famosas (que são quase todas), passando por Goya, Velázquez e Dalí, pela torre da Giralda ou pela duvidosa mitologia que fez de Santiago de Compostela lugar de peregrinação universal.

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Espanha é provavelmente o livro mais arriscado de Jan Morris. E é também o livro onde se lê uma das mais extraordinárias sínteses que alguém terá tentado traçar da prodigiosa diversidade espanhola: o capítulo terceiro, que se chama A Dama de Elche. É uma leitura gráfica e transversal daquilo a que se poderia chamar a Espanha enquanto estilo. Apanha desde a própria estatueta de meio metro de altura, encontrada na cidade da província de Alicante em 1897 e esculpida vinte e quatro ou vinte e cinco séculos antes, até às catedrais espanholas mais famosas (que são quase todas), passando por Goya, Velázquez e Dalí, pela torre da Giralda ou pela duvidosa mitologia que fez de Santiago de Compostela lugar de peregrinação universal.

Se o livro, no todo, é arriscado a construir uma imagem crítica (fascinada, mas nunca deslumbrada) de Espanha, esse capítulo é-o muito mais. Pela maneira como Morris troca, sem dificuldade, o estilo narrativo pela dimensão propriamente ensaística que é essencial à literatura de viagens, quando esta é mais que mero relato de passeios.

A Dama de Elche é uma magnífica e magnificamente livre interpretação estética da Espanha, cujo motivo condutor está na duplicidade desta dama esculpida com “claros traços iberos e nítido sangue grego”. Nesta mistura não há contradição, embora o argumento da mistura seja crucial para a maneira como Morris desconstrói (o verbo também soa arriscado, mas é, de longe, o mais próprio), a partir deste capítulo, a crença demasiado espalhada de uma identidade espanhola tão castiça que seria isenta de mestiçagem. Grega e ibérica, a dama de Elche teria “por base a clareza” (porém, “uma clareza com um toque de mescalina”) e esta seria “a principal característica de Espanha”.

É difícil imaginar um conhecedor da Espanha disposto a refutar esta tese. Ou, pelo menos, disposto a contestar a sua verosimilhança. A primeira versão do livro saiu em 1964, o ano em que James Morris iniciou o processo médico de mudança de sexo que o converteu na senhora Jan Morris. A segunda edição, revista, foi em 1979 e, nessa nova versão, se reeditou em 1982 e em 2008. A queda da ditadura franquista obrigou a rever o texto – mas a própria autora diz no novo prólogo, reconhecendo a mudança do velho país, que “de modo algum a transformação foi completa, pelo menos no que à estética se refere”. Mesmo estando a falar das diferenças de um estilo cultural antes e depois de Pedro Almodóvar, o que não é pouco, a ideia do país em que “é tudo sol ou sombra” e em que “o meio-termo é raro” mantém-se persuasiva.

Mas o que distingue Jan Morris não será sequer a vontade de nos impor teses sobre nações. Antes, uma forma de conjugação da inteligência com a percepção perante realidades contraditórias e fugidias, a que é preciso regressar muitas vezes. O humor nunca lhe falha e tem neste capítulo da Dama de Elche passagens notáveis que vale a pena sublinhar.

Logo na leitura da própria estatueta e na arte da descrição forte, empírica e, ao mesmo tempo, especulativa: “É uma dama extraordinária: rosada, de ombros largos, constituição pesada, de amuletos ao pescoço, com um toucado complexo que inclui o que parecem ser rodas de carroça e uns ares de pragmatismo, como se estivesse prestes a dizer a um sobrinho desobediente que se deixe de coisas ou a perguntar a uma prima acanhada onde raio arranjou semelhante vestido.”

E o momento alto naquele ponto em que, defendendo o predomínio de um princípio realista, figurativo, na generalidade da arte espanhola, estende-o até aos modernos e, além de Picasso e Miró, inclui também Salvador Dalí, nestes termos inesquecíveis: “quando olhamos para uma das silenciosas praias catalãs de Dalí é como se estivéssemos a ver a nossa enseada preferida, onde passamos férias, prolongada até ao infinito e pejada de girafas e trombones, coisas que poderíamos perfeitamente ter observado se o tempo tivesse estado melhor.”

Não está ao alcance de uma narradora vulgar escrever assim. Morris é mesmo uma escritora que – lidando com lugares-comuns (cita com frequência guias para viajantes) e, na melhor tradição inglesa, nunca desprezando a inteligência do senso-comum – fornece superiores exemplos da arte de bem fintar banalidades e de esboroar qualquer estereótipo. A sua preocupação principal não está nos episódios empolgantes ou maçadores de uma viagem a este ou àquele sítio. A sua relação principal, como em toda a grande literatura moderna de viagens, é a relação com o mapa. E o mapa literário da Espanha de Jan Morris é extraordinariamente denso, móvel, instável, conflituoso. O mapa de um país “com origens colaterais no deserto” que nunca aparecerão nas linhas fechadas da cartografia política.

Destacando quase só um capítulo (mas são todos excelentes) neste curto espaço crítico, mal se faz justiça a esta imagem lucidíssima de um terreno estranho que se quer conhecer por dentro, sabendo perfeitamente que nunca se deixará de estar de fora e de passagem (“ninguém poderia ser menos espanhola do que eu”, diz Jan no prólogo). A obsessão com a diversidade real da vida humana, ou seja, a intensa curiosidade antropológica da literatura, tem aqui uma ilustração etnográfica do mais alto nível.

O último parágrafo tem um único fim: destacar a notável tradução de Raquel Mouta. O trabalho para criar uma escrita Jan Morris em português já começara em Veneza (2009) e em Hav (2014) e está aqui brilhantemente consolidado. Esperemos que prossiga, porque traduzir é uma arte preciosa. Que alguma instituição nacional dê por isso, o reconheça e o premeie devidamente – isso é que não vale a pena esperar.