O cinema argentino entre Buenos Aires e Nova Iorque

Locarno recebeu dois cineastas argentinos muito lá de casa, mas com resultados menos interessantes do que seria desejável.

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Todos os festivais têm os seus cineastas “da casa”, nomes nos quais a organização acreditou e que formou, apoiou ou lançou. A curiosidade de dois dos nomes “da casa” de Locarno 2016 está em que são ambos argentinos: de um lado Milagros Mumenthaler, cuja primeira longa Abrir Puertas y Ventanas ganhou o Leopardo de Ouro em 2011; do outro Matías Piñeiro, cujo filme anterior, La Princesa de Francia, causou aqui sensação em 2014. Ambos regressam agora à competição internacional com os “sucessores” desses filmes, e estão para já a ser muito bem recebidos por um festival que parece feito à medida do seu cinema – o problema é que quer em La Idea de un Lago, segunda longa de Mumenthaler, quer em Hermia & Helena, que Piñeiro rodou entre Buenos Aires e Nova Iorque, parece estarmos perante cinema feito à medida do festival.

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Todos os festivais têm os seus cineastas “da casa”, nomes nos quais a organização acreditou e que formou, apoiou ou lançou. A curiosidade de dois dos nomes “da casa” de Locarno 2016 está em que são ambos argentinos: de um lado Milagros Mumenthaler, cuja primeira longa Abrir Puertas y Ventanas ganhou o Leopardo de Ouro em 2011; do outro Matías Piñeiro, cujo filme anterior, La Princesa de Francia, causou aqui sensação em 2014. Ambos regressam agora à competição internacional com os “sucessores” desses filmes, e estão para já a ser muito bem recebidos por um festival que parece feito à medida do seu cinema – o problema é que quer em La Idea de un Lago, segunda longa de Mumenthaler, quer em Hermia & Helena, que Piñeiro rodou entre Buenos Aires e Nova Iorque, parece estarmos perante cinema feito à medida do festival.

O caso mais grave, entre aspas, é o de Piñeiro, que continua com Hermia & Helena o dispositivo de criar variações modernas a partir das personagens femininas das comédias de Shakespeare iniciado em 2010 com a curta Rosalinda. Aqui, ataca o Sonho de uma Noite de Verão, transformando a Hérmia e a Helena da peça original em Camila e Carmen, e a floresta encantada de Shakespeare na floresta de betão armado das ruas de Nova Iorque. A estafeta entre as duas mulheres, duas amigas de Buenos Aires que se revezam como bolseiras num programa nova-iorquino, e os seus afazeres mais ou menos românticos, mais ou menos pessoais está aqui menos presa ao texto original, mas cai em saco roto. É que Piñeiro, ele próprio bolseiro em residência artística em Nova Iorque ao longo dos últimos quatro anos, não conseguiu resistir à tentação de se medir com heróis da nova independência como Noah Baumbach ou Alex Ross Perry (ou até, vá lá, com o Woody Allen dos bons tempos). E Hermia & Helena parece estar demasiado interessado em Nova Iorque, e em estar a fazer um filme em Nova Iorque, para se preocupar com as personagens que tem em mãos – isto apesar de dedicar o filme à recém-falecida musa de Yasujiro Ozu, Setsuko Hara, e de trabalhar com as suas actrizes regulares, Agustina Muñoz e María Villar. É um passo em falso, e é pena que assim seja.

(Abrimos aqui um pequeno parêntesis a propósito de bolsas e residências artísticas para falar de L’Indomptée, estreia na longa-metragem da francesa Caroline Deruas, argumentista e companheira de Philippe Garrel, apresentada no concurso Cineastas do Presente. Deruas, ela própria bolseira da Villa Médicis em Roma, usa essa veneranda instituição como cenário de uma espécie de giallo francese, existencial e intelectual, à volta de uma escritora bloqueada e de uma fotógrafa imprevisível em residência artística, mas a realizadora sucumbe não poucas vezes ao ridículo e refugia-se em lugares-comuns narrativos que já nem Brian de Palma usa. Fechamos parêntesis, voltamos à Argentina.)

Milagros Mumenthaler não dá um passo em falso com La Idea de un Lago, mas isso é porque está tão em controlo do seu filme que não se desvia um milímetro do caminho. Prosseguindo o confronto com as memórias familiares de Abrir Puertas y Ventanas, o novo filme acompanha uma fotógrafa grávida em processo de separação enquanto desenterra fotografias de família para um projecto sobre o seu pai, “desaparecido” pelo regime militar em 1977. Tudo isto, contudo, é sugerido mais do que dito, por entre uma meticulosa construção em quebra-cabeças, oblíqua e propositadamente intrigante, e contado através das tensões que o projecto de memória de Inés cria com a sua mãe e das memórias felizes das férias em família em La Angostura, à beira do lago. Há muito de Lucrecia Martel na relação entre espaços e emoções, mas a citação é talvez excessivamente procurada; Milagros Mumenthaler tem – se nos perdoarem o trocadilho  “cabeça a mais” para se chegar ao pé das “mulheres sem cabeça” da sua conterrânea. La Idea de un Lago não é um mau filme, longe disso, mas tudo nele soa demasiado trabalhado, demasiado calculado, demasiado cerebral; um bocadinho mais de espontaneidade seria suficiente para estar aqui algo mais do que uma “ideia de um filme”.