Conversas com o poder
Chostakovich, o grande compositor e pianista, como homem acossado.
Dimitri Dmitrievitch vive em estado de permanente terror. Apesar de ser o compositor mais famoso da União Soviética, aplaudido dentro e fora do espaço da Cortina de Ferro, dele espera-se um trabalho de “engenharia da alma humana”, uma “produção” de acordo com os ditames do partido – isto é, de Estaline. Mas os caprichos do líder são tristemente famosos: o que lhe agrada num dia é banido no dia seguinte, os seus homens de mão, os seus mais fiéis “colaboradores” podem também, num ápice, desaparecer sem deixar rasto, juntando-se aos milhões de vítimas das purgas infindáveis e aleatórias. Em território tão escorregadio, com gostos tão voláteis e sujeitos a tão trágicas consequências, a expressão artística é um risco constante, uma aposta que depende de um destino cego.
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Dimitri Dmitrievitch vive em estado de permanente terror. Apesar de ser o compositor mais famoso da União Soviética, aplaudido dentro e fora do espaço da Cortina de Ferro, dele espera-se um trabalho de “engenharia da alma humana”, uma “produção” de acordo com os ditames do partido – isto é, de Estaline. Mas os caprichos do líder são tristemente famosos: o que lhe agrada num dia é banido no dia seguinte, os seus homens de mão, os seus mais fiéis “colaboradores” podem também, num ápice, desaparecer sem deixar rasto, juntando-se aos milhões de vítimas das purgas infindáveis e aleatórias. Em território tão escorregadio, com gostos tão voláteis e sujeitos a tão trágicas consequências, a expressão artística é um risco constante, uma aposta que depende de um destino cego.
Como fazer compreender aos mais altos dignitários – isto é, a Estaline – que um músico nem sempre consegue compor canções sobre os camponeses russos ou sobre a produtividade das grandes fábricas soviéticas? E como é possível que uma ópera tão apreciada como Lady Macbeth de Mtsensk – ah, o mau-olhado de Macbeth! – seja, num dia, considerada um orgulho para a Pátria e, depois de vista e ouvida pelo Poder – numa noite de má memória, no Bolshoi –, arrasada pelos críticos que a classificam como um chinfrim insuportável, uma manifestação de indulgência burguesa, um insulto a todo o povo russo?
É com a imagem de um Chostakovich permanentemente abalado pelo sinistro, invisível mas muito real desagrado de Estaline que Julian Barnes preenche as páginas de O Ruído do Tempo, o seu mais recente romance. O grande compositor e pianista, o génio que insiste em continuar a compor, é um homem acossado. Quando se dá o episódio da sua queda em desgraça – uma, de muitas quedas – ele receia o pior: ser preso, interrogado, talvez exilado, mesmo fuzilado, como muitos dos seus amigos e conhecidos. Faz uma pequena mala com o mínimo indispensável e vai, todas as noites, para o patamar da sua casa, junto ao elevador. Não se senta, não fuma, não come, não dorme, espera apenas que o venham buscar – a meio da noite, sempre a meio da noite. Barnes aproveita esse tempo de ansiedade, de medo corrosivo, para relatar o percurso de Chostakovich, o músico que nasceu na Rússia imperial, se entusiasmou com a Revolução, se envolveu patrioticamente no que supunha ser uma sociedade exemplar – “ a mais avançada do planeta” – e passou a desconfiar e a temer visceralmente o regime que tanto emulara.
Toda a vida de Chostakovich, um homem frágil, é feita de revezes: o nome trocado à nascença, a morte do pai, uma persistente tuberculose, uma mãe castradora e imperiosa, as mãos demasiado pequenas para um pianista, as demissões provocadas pelo o que são considerados os seus “desvios da estrada principal da arte soviética”, as tentativas (sempre) falhadas de suicídio, o perpétuo terror de não agradar aos burocratas que avaliam a sua “produção musical”. Numa viagem aos Estados Unidos, integrado numa delegação russa, é obrigado a ler discursos previamente escritos por um qualquer escriba, com o aval de Estaline, e a criticar o “traidor” Stravinsky que, na realidade, ele admira e de quem é amigo. Quando questionado acerca das suas próprias opiniões, atrapalha-se, responde miseravelmente, cheio de medo, papagueando os chavões do partido. Continuar a compor no fio da navalha é um suplício a que não consegue escapar, enredado em dúvidas e terror.
E, um dia, Estaline morre, precedido de algumas horas por Prokofiev que não chega a saber da queda do tirano. Inicia-se uma nova era, a de Khruschev, ou antes, a de Nikita, o Labrego. Subitamente, desaparece o medo de levar um tiro na nuca e já não é necessário esperar junto ao elevador. Dimitri Dmitrievitch Chostakovich e tantos outros podem respirar de alívio. No entanto, o compositor afunda-se cada vez mais no desespero. Cobrem-no de honrarias e ele só sente desprezo por si próprio; a bajulação, os copos de vodka, as pancadas nas costas, os encontros com os seus pares provocam-lhe lágrimas e gritos de aversão; as suas obras são tocadas sem restrições e ele lamenta-se; fazem pressão para que ele aceite cargos honoríficos e ele resiste. Tudo o que lhe resta é um sentimento de inveja em relação aos que já morreram. (“ A morte é um alívio da vida, das suas ilusões douradas”.)
O título O Ruído do Tempo é extraído das memórias do poeta e ensaísta Osip Mandestam, grande amigo de Anna Akhmatova, feroz opositor a Estaline, perseguido e exilado durante o Grande Terror e que acabou por morrer em trânsito para um campo de trabalho, em 1938. Mandelstam defendia uma posição heróica do poeta ( ou do músico) num tempo perigoso, sombrio e hostil à autonomia criativa. O conflito portentoso entre a liberdade e uma ideologia em que o indivíduo, incluindo o artista, não passa de um grão de areia na grande mecânica social ao serviço da qual se encontra é, neste romance, escrupulosamente dissecado. Chostakovich é uma figura trágica numa sociedade em que a razão é afastada por um tirano que se apodera, pela ameaça, pela incerteza e pelo medo, de toda uma colectividade, fazendo-a mover-se obedientemente ao ritmo dos seus apetites, humores e interesses. Na terceira parte do livro, Chostakovich, já envelhecido, sobrevivente envergonhado, dos cataclismos do tempo e das três quase fatais “conversas com o poder”, reflecte sobre a morte e brinda “à esperança de que as coisas não melhorem”.
Este pessimismo é magistralmente enunciado por Julian Barnes, um perito no que diz respeito a temas como a morte, o medo, a traição e o peso dos sistemas totalitários, tão largamente analisados pelo seu compatriota e ex-amigo Martin Amis o qual, em Koba o Terrível e em A Casa dos Encontros, se fixa especificamente na Rússia de Estaline e nos gulags. Mas Barnes é diferente e o seu estilo e a construção novelística são distintos dos seus contemporâneos, aproximando-se mais de E.M. Forster, como faz notar em A Herança Perdida, o crítico James Wood: “Tal como Forster (Barnes) é rápido com os mistérios, delicadamente pedante, inegavelmente perspicaz e inequivocamente confortável”.
É verdade que Barnes tem um estilo pomposo, ligeiramente enfadonho e ruminativo – o tema presta-se – mas a sua arte narrativa faz justiça a uma atmosfera de pesadelo, pontuada por uma ironia triste, subtil, subterrânea.