“Eu já fui iluminado e agora quero ajudar a iluminar os outros”

Domingos Folque Guimarães é empreendedor e fundador da Academia de Código. Cedo percebeu que o que o apaixonava era a encenação e a realização. A sua vida é uma sequência de choques e iluminações e planos quinquenais que hão-de estender-se até aos 120 anos.

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Enric Vives-Rubio

A minha mãe ensinou-me que toda a gente tem medo. Com seis ou sete anos eu tinha medo do escuro e ela convenceu-me com esta conversa: "Toda a gente tem medo – do escuro, de arriscar, do desconhecido –, mas esse medo nunca pode impedir a acção." Houve vários momentos na minha vida em que me caiu a ficha e esse terá sido um dos primeiros. Foi aí que percebi que está tudo nas nossas mãos, que todos têm medo, mas que há aqueles que o superam.

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A minha mãe ensinou-me que toda a gente tem medo. Com seis ou sete anos eu tinha medo do escuro e ela convenceu-me com esta conversa: "Toda a gente tem medo – do escuro, de arriscar, do desconhecido –, mas esse medo nunca pode impedir a acção." Houve vários momentos na minha vida em que me caiu a ficha e esse terá sido um dos primeiros. Foi aí que percebi que está tudo nas nossas mãos, que todos têm medo, mas que há aqueles que o superam.

Eu sempre fui aquele que fazia, que tomava a iniciativa, que não me limitava a opinar. Apercebi-me desde muito cedo que tinha uma personalidade de vendedor, porque consigo incentivar e mobilizar os outros a acompanharem-me. Mas quando cheguei ao 12.º ano não fazia ideia do que queria ser. Resolvi ir para Direito, mas acabei por convencer os meus pais que queria ir para Londres para ser actor. Aos 19 anos estava em Londres a trabalhar em cafés, em lojas, em restaurantes e a estudar representação. 

Voltei para Portugal com a ideia de que faria carreira de actor por cá. Fui ter com um amigo, perguntei-lhe quem era o melhor encenador português, ele disse: "O Jorge Silva Melo." Perguntei-lhe se conhecia quem nos apresentasse, ele disse: "Vou falar com a minha tia." Soube que o Jorge Silva Melo estava a encenar uma peça na Culturgest e no dia em que começavam os ensaios fui o primeiro a chegar. Não estava lá mais ninguém e eu dirigi-me a ele: "Não sei se a tia do meu amigo te disse alguma coisa, mas eu sou o Domingos, tirei um curso de actor em Londres, soube que és o melhor e venho aqui para trabalhar contigo." Ele não sabia como reagir. "A mim ninguém me disse nada. Eu já tenho a minha equipa, vais fazer o quê?" Concordámos que eu trabalharia durante uma semana a assistir a equipa em tudo aquilo de que precisassem e depois veríamos. Fiquei uma semana, fiquei quatro meses, decidiram que tinham de me pagar um ordenado, fui em tournée. Tornei-me a mascote da equipa e percebi rapidamente que não ia ser actor. Eu gostava mesmo era de coordenar pessoas.

Esse trabalho abriu portas junto de um grupo de teatro italiano e durante uns anos vivi entre Itália e o Reino Unido. Nessa altura aconteceu uma coisa terrível. Eu tinha 23 anos quando o meu pai morreu. Deixei tudo e fui para Lisboa para apoiar a família. A Expo-98 estava a começar e eu fui contratado para produzir dois palcos com quatro a seis concertos diários. Trabalhava 20 horas por dia, tinha dois telemóveis e juntei muito dinheiro que utilizei para estudar fotografia de cinema em Madrid. Nas noites de Madrid tornei-me amigo do pessoal que trabalhava com o Fernando Trueba, que venceu o Óscar de melhor filme estrangeiro com o Belle Époque. Começo a partilhar apartamento com o Andoni Gracia, que estava a fazer um filme onde interpretava um português que juntamente com um italiano e uma francesa decidem partir de Paris num dois cavalos para assistir ao 25 de Abril em Lisboa. Um dia estou a lavar os dentes e aparece ele a pedir-me aulas de italiano com sotaque português. Aquilo correu tão bem que fui contratado como treinador de dialectos do Alla rivoluzione sulla due cavalli. O Andoni Gracia ganhou o prémio de melhor actor no festival de Locarno e ainda hoje diz que parte dessa vitória é minha. 

Em Madrid tomei uma decisão que transformou a minha vida para sempre. A morte do meu pai deixou-me em estado de choque. Percebi que era mortal, entrei numa crise existencial brutal, tinha ataques de pânico diários. Decidi ir seis meses para a Índia resolver comigo mesmo a dor da morte do meu pai. Vou para a cidade mais sagrada da Índia, onde os Beatles foram procurar a iluminação – Rishikesh. Acabo por alugar um quarto na casa do carteiro e um belo dia decido preparar uma massa com tomate e manjericão como tinha aprendido em Itália. Era a época das monções, começa uma chuvada imensa, uma chuva pesada que parece não ser só água. De repente, uma trovoada incrível. Estou descalço a preparar a massa numa placa no terraço. O chão está totalmente alagado. Um trovão cai a 300 metros. Uma luz… Dei um salto, comecei aos gritos, pensei que morria ali mesmo. O hospital mais perto ficava a 100km. O carteiro e a mulher deitaram-me numa cama e massajaram-me com óleos e unguentos. Adormeci. No dia seguinte estava bem. Foi o meu momento de iluminação, porque apanhei um choque do cacete. Antes dessa viagem estava obcecado com a morte, com a minha mortalidade, mas deixei de ter medo. Não voltei a ter um ataque de pânico. Tenho medo que morram as pessoas que me são queridas, mas nunca mais tive medo de nada. 

O meu pai sempre me disse: "Até aos 30 anos não tens de te preocupar, tudo aquilo que fizeres é para aprender." Aos 27, decido fazer um mestrado na London Film School durante três anos. Batia mesmo certo. Acima de tudo utilizei esse tempo para ganhar disciplina. Tenho amigos que são artistas incríveis, mas que acabam por não fazer nada porque lhes falta a disciplina. E há gestores a quem lhes falta criatividade. Sou apaixonado por cinema e vivo dividido entre o amor ao Rosselini, ao cinema realista – à compreensão de que o indivíduo é condicionado pelo mundo – e o fascínio por Hollywood, o mito do self-made man que faz acontecer. Nunca me lembro dos meus sonhos, porque sonho acordado, tenho o lado criativo muito desenvolvido, mas faltava-me a disciplina para tornar os meus sonhos realidade. Percebi que aquela era a minha última chamada – estava na altura de começar a fazer coisas. Foi aí que acabou a brincadeira. Na London Film School caiu-me novamente a ficha. O director da escola na altura, Ben Gibson, dava-nos aulas para nos ajudar a perceber como planear a vida nos próximos dois anos. Percebi então que é preciso planear para fazer acontecer. Agora, todos os verões, traço planos quinquenais e vou adaptando à realidade. Decidi entretanto que vou chegar aos 120 anos, o que significa que tenho de planear a minha vida a 78 anos. Quando lá chegar, decido se fico por aí, ou se continuo. 

No regresso a Portugal crio a minha primeira empresa, a editora Cavalo de Ferro. Os livros que publicámos foram sempre os melhores do ano, mas a editora não parava de perder dinheiro. Tive a ideia de fazer audio books infantis que eram vendidos com a TV Guia. Era um grande sucesso e permitia equilibrar as contas da empresa, mas os meus sócios queriam dedicar-se apenas aos livros. Foi a primeira vez que vendi a minha participação numa empresa. Em 2007, uns espanhóis com quem tinha vivido propuseram-me um projecto de live streaming de concertos na Internet. A Impresa comprometeu-se a investir cinco milhões para o projecto arrancar em Portugal, mas nessa altura o Lehman Brothers declarou falência, o mundo começou a ir por aí abaixo e a Impresa já não quis meter um cêntimo. Fiz uma jogada a que, percebi mais tarde, os empreendedores chamam "pivoting" e adaptei o modelo de negócio para continuar vivo. Criei a primeira agência portuguesa de publicidade para redes sociais, a Live Content. Eu não fazia ideia de que era um empreendedor. Apenas fazia acontecer. Mas nessa altura quis formar-me em Gestão. Fiz um mini MBA em Nova Iorque e durante dois ou três anos li tudo o que dizia respeito a essa área. Decidi que ia ser o intelectual da gestão. 

Nos EUA começo a perceber que a solução para a crise é o empreendedorismo. Quando chego a Portugal, olho à minha volta e noto que a Startup Lisboa está a começar, que há uma onda a levantar-se. Tal como quando fui ter com o Jorge Silva Melo, fui à procura das pessoas por detrás desse movimento – o João Vasconcelos, a Graça Fonseca, o Miguel Santo Amaro, o Diogo Telles e ofereço-me para ser mentor de quem precisasse de ajuda para montar um negócio. Se eu olhar para trás, percebo que há exemplos destes na família. A história do meu avô, que recebi como uma espécie de lenda, quase um mito, é uma história de empreendedorismo. Ele pegou numa empresa falida e transformou-a na maior conserveira europeia. Mas foi só quando encontrei aquele grupo, quando percebi que não estava sozinho, que havia mais pessoas a pensar como eu, que me caiu a ficha. "Ah! Então eu sou empreendedor." De repente, essa onda transforma-se num tsunami e o empreendedorismo passa a ser a solução para todos os problemas em Portugal. Eu já lá estava, foi só surfar a onda. Em 2013 fui nomeado mentor do ano na Startup Lisboa.

Nos últimos anos vi outra vaga a levantar-se e ajustei os meus planos quinquenais. Sei o que quero fazer na minha vida nos próximos dez ou 20 anos. Quero dedicar-me ao empreendedorismo social, lançar empresas que ajudem a transformar a sociedade. A Academia de Código é o meu primeiro projecto a sério nesta área. A ideia é simples – há centenas de milhares de licenciados desempregados e dezenas de milhares de vagas para programadores. A minha missão é ensinar programação a pessoas desempregadas e criar emprego. Outro sonho passa por montar um fundo de investimento de 20 a 30 milhões que se dedique a investir em pessoas que queiram montar empresas com impacto social. Eu não procuro protagonismo, não quero ser a estrela. Eu não queria ser o actor, mas o encenador, o realizador. Eu já fui iluminado e agora quero iluminar os outros. Quero agarrar em talentos e ajudá-los a fazer acontecer. 

A minha vida é um processo de autoconhecimento e de desenvolvimento de confiança. Sou ateu e não tenho crença, mas ando sempre a namorar com o misticismo oriental, com a ideia da iluminação. Estabeleço um objectivo e cada vez que o atinjo cai-me a ficha, ganho um crachá novo e subo de nível. No mundo das empresas chama-se a isso "level up". Tenho uma péssima memória porque vivo focado em criar. Aprendo com o passado, vivo intensamente o presente. Por vezes perguntam-me: "Lembras-te?" Nunca me lembro de nada. Só me lembro do futuro. 

Oito portugueses conhecidos nas áreas da música, literatura, publicidade, política, empresas, solidariedade e ciência contam, nesta série, a sua história na primeira pessoa