“Ainda hoje me surpreende a facilidade, a rapidez com que tudo implodiu” no Leste
João Semedo continua a definir-se como “um militante de esquerda socialista e internacionalista”. Senhor de um percurso e de uma coerência peculiares na esquerda, olha com cepticismo para a actual União Europeia e não crê que “tenha conserto”.
Aos 65 anos e depois de passar pela experiência um cancro grave na laringe e cordas vocais, João Semedo relativiza melhor “a hierarquia dos problemas, das dificuldades, dos obstáculos, das contrariedades”. Nascido numa família em que todos eram “atentos e preocupados com a vida de cada um”, Semedo nasce para a política com as cheias de Lisboa de 1967. Em 1972, adere ao PCP, mergulha na clandestinidade e é preso pela PIDE. Inicia então um percurso em que se divide entre a política e medicina, carreira que abraçou como profissão e que o conduziu à direcção de um hospital (2000-2006). Permanece no PCP até 2000, apesar de ter entrado em ruptura e saído do Comité Central em 1991, a seguir ao golpe na União Soviética. Durante uma década lutou pela renovação do PCP e quase conseguiu, integrado no grupo que conduziu ao Novo Impulso, de Luís Sá, “uma realidade que conquistou a maioria do CC e que acabou por abortar às mãos do conservadorismo leninista que Cunhal ainda conseguiu mobilizar”. Não desistindo da política, abraça a causa do BE, sentando-se no Parlamento durante uma década e chegando a ser coordenador com Catarina Martins, intergrando a primeira direcção paritária de um partido português. Hoje assume, em entrevista por escrito ao PÚBLICO, a defesa como sempre do internacionalismo, até porque, garante, o capitalismo está “muito mais” avançado nesse domínio do que “as forças dos trabalhadores”. E continua a acreditar que “a história da Humanidade é um pouco a história da evolução dos direitos das pessoas e da valorização da sua dignidade”.
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Aos 65 anos e depois de passar pela experiência um cancro grave na laringe e cordas vocais, João Semedo relativiza melhor “a hierarquia dos problemas, das dificuldades, dos obstáculos, das contrariedades”. Nascido numa família em que todos eram “atentos e preocupados com a vida de cada um”, Semedo nasce para a política com as cheias de Lisboa de 1967. Em 1972, adere ao PCP, mergulha na clandestinidade e é preso pela PIDE. Inicia então um percurso em que se divide entre a política e medicina, carreira que abraçou como profissão e que o conduziu à direcção de um hospital (2000-2006). Permanece no PCP até 2000, apesar de ter entrado em ruptura e saído do Comité Central em 1991, a seguir ao golpe na União Soviética. Durante uma década lutou pela renovação do PCP e quase conseguiu, integrado no grupo que conduziu ao Novo Impulso, de Luís Sá, “uma realidade que conquistou a maioria do CC e que acabou por abortar às mãos do conservadorismo leninista que Cunhal ainda conseguiu mobilizar”. Não desistindo da política, abraça a causa do BE, sentando-se no Parlamento durante uma década e chegando a ser coordenador com Catarina Martins, intergrando a primeira direcção paritária de um partido português. Hoje assume, em entrevista por escrito ao PÚBLICO, a defesa como sempre do internacionalismo, até porque, garante, o capitalismo está “muito mais” avançado nesse domínio do que “as forças dos trabalhadores”. E continua a acreditar que “a história da Humanidade é um pouco a história da evolução dos direitos das pessoas e da valorização da sua dignidade”.
Como se define a si mesmo?
Um sujeito que não se cansa de ser intransigente contra as desigualdades e as injustiças.
É um médico que faz política ou um político que exerce medicina?
Sou médico de profissão e para mim a política nunca foi nem é uma profissão. Fiz medicina, dirigi um hospital, tive uma activa vida política. Quando olho para trás, acho que posso dizer que fiz tudo isso com a mesma intensidade e paixão.
Viveu recentemente um problema de saúde grave. O facto de ser médico ajudou-o na forma de encarar a doença?
Sim, é verdade. Tive um cancro na laringe, um cancro das cordas vocais. Fui operado várias vezes, sempre no IPO de Lisboa, por uma equipa fantástica, num serviço excepcional, o de otorrino. Hoje estou muito bem. Informação e conhecimento ajudam sempre em todos os domínios e em qualquer contexto. Mas durante uma doença grave, importa mais a personalidade do que o título ou a formação académica. O sofrimento, o ziguezague do optimismo/pessimismo, os primeiros pensamentos sobre a nossa morte ou a angústia pelas limitações que nos esperam, bem, tudo isso tem muito pouco a ver com ser ou não ser médico ou mesmo com qualquer outra licenciatura ou mesmo profissão. Somos todos feitos da mesma massa e isso percebe-se muito bem numa enfermaria, durante uma doença grave. A doença não esbate todas as diferenças, todas as desigualdades mas ficamos mais iguais em muitos aspectos.
E que consequências teve o seu problema de saúde na forma de encarar a vida?
Fiquei sem cordas vocais, falo através de uma prótese, uma pequena peça em silicone fixada ao esófago e à traqueia. Consigo falar, as pessoas entendem-me perfeitamente mas a minha capacidade de comunicação ficou limitada. Ainda assim, no último ano participei em dois comícios, no Forum das Políticas Públicas do ISCTE e em algumas sessões públicas sobre a morte assistida e outros temas. Fiz isto com imenso prazer como pode calcular. E vou continuar a fazer. Portanto, no meu caso não mudou apenas a forma de encarar a vida, mudou por completo a própria forma de viver a vida.
Respondendo à sua pergunta sobre a forma de encarar a vida, bem, mudou a hierarquia dos problemas, das dificuldades, dos obstáculos, das contrariedades, enfim, tudo hoje é para mim mais fácil de relativizar. Nestas situações ganha-se intuitivamente a noção de que a vida tem um prazo, em geral passamos uma vida inteira sem pensar nisso. Portanto, a nossa relação com o tempo também muda, como se ficássemos mais apressados, apesar de termos cada vez mais tempo livre e menos coisas para fazer... De resto acho que encaro a vida como sempre encarei, com prazer, entusiasmo, intensidade, vontade de participar, activismo, com objetivos.
Como foi a sua infância? Viveu numa família grande? Quem eram os pais? Teve irmãos? Que cumplicidade criou com os irmãos?
Tive uma infância e uma família como tantas outras, éramos próximos uns dos outros, atentos e preocupados com a vida de cada um. Uma família não muito numerosa, os meus tios e primos contavam-se pelos dedos de uma mão. Praticamente não conheci os meus avós nem paternos nem maternos, naquela altura morria-se mais cedo do que hoje. O meu pai era engenheiro, militante comunista, morreu antes dos 65 anos, podia ter vivido muito mais mas um tumor no fígado impediu que assim tivesse sido. A minha mãe era professora, uma mulher progressista, humanista, de cultura enciclopédica, viveu muitos mais anos que o meu pai, passou os 90 anos, morreu há três anos no dia de Natal. Durante os anos em que estive no Parlamento, a minha casa em Lisboa era a da minha mãe, a mesma casa em que vivi a minha adolescência e parte da juventude. Espero ter herdado da minha mãe esse gene da longevidade. Tenho apenas uma irmã, a Paula, um pouco mais velha que eu. Apesar de vivermos há quase 40 anos a 300 km um do outro – a minha irmã não saíu de Lisboa – mantivemos sempre a proximidade que construímos enquanto vivemos em casa dos nossos pais, o que aconteceu até chegarmos à idade adulta. Claro que durante os anos em que estive no Parlamento como vivia quase permanentemente em Lisboa, já mais maduros, ganhámos uma maior aproximação.
Foi criado no princípio de que é preciso dar liberdade às pessoas se queremos que elas sejam responsáveis?
Sempre senti que a vida me pertencia, os meus pais eram liberais no sentido de deixar os filhos decidirem. Eram exigentes sim, mas sempre contei com eles – e a minha irmã também - quando as escolhas não corriam bem. Ajudavam, não cobravam a liberdade que nos permitiam.
Usa a mesma receita com os seus?
Não lhe chamaria receita mas, sim, acho que a liberdade de decidir é uma boa escola para desenvolver a responsabilidade. Pessoalmente sou muito pouco impositivo na relação com os outros, julgo que o Miguel - o meu filho - pelo menos disso não se queixará do pai que tem. E presumo que a Ana Maria, com quem sou casado, também não.
Que características herdou dos seus pais?
Não sei se herdei, respondo sobre o que gostava de ter herdado: da minha mãe, a sua sensibilidade e simplicidade, e do meu pai, a sua determinação e energia.
Por que seguiu medicina?
Sempre tive muita curiosidade sobre a constituição e funcionamento do corpo, sobre a biologia dos seres vivos. Não encontro outra motivação, tinha 15 ou 16 anos quando fiz essa escolha no final do 5.º ano do liceu, não me recordo em concreto se houve mais alguma razão. Sei que mais tarde pensei muitas vezes que podia ter escolhido arquitectura.
Ainda sobre medicina, foi médico do SNS e director de um hospital (2000-2006), Como vê a evolução do SNS?
Vejo com muita preocupação, nos últimos anos é evidente que o SNS está a recuar em virtude da política agressiva e predadora dos grupos privados que está a asfixiar por completo o SNS. Privados e SNS são como vasos comunicantes. Quando dirigi o hospital de Joaquim Urbano – hospital do SNS no Porto -, especializado em doenças respiratórias e infecciosas, com uma equipa supercompetente e empenhada que foi capaz de renovar um hospital degradado e envelhecido, quer na modernização das instalações quer nos tratamentos inovadores para a SIDA e as hepatites, isso só foi possível porque houve o investimento suficiente e o hospital não foi empresarializado. O subfinanciamento e os hospitais empresa, mais a subversão das carreiras, facilitou o assalto dos privados e atirou o SNS para uma crise difícil de vencer.
Quando descobriu a política? Qual o primeiro momento em que se lembra de ter tido consciência política?
As trágicas cheias em Lisboa, 1967, nas quais morreram muitas centenas ou mesmo milhares de pessoas – o regime não permitiu saber isso com verdade – sem qualquer apoio que não fosse a ajuda de umas brigadas de estudantes dos liceus e das faculdades. Foi um acontecimento muito marcante para mim e para a minha geração, não sabia nem sequer imaginava, como se podia viver tão miseravelmente às portas de Lisboa. Fui mobilizado por um grupo de jovens que frequentava a casa do padre Vítor Feitor Pinto, que então dava aulas no liceu Camões onde eu estudava e animava uns círculos de conversa e reflexão entre malta nova.
No ano seguinte estava na faculdade e fui à minha primeira manifestação, contra a guerra do Vietname, que pretendia chegar à embaixada dos EUA, então na rua Duque de Loulé. Foi a minha primeira manifestação e, claro, também a primeira carga de polícia. Não fui além da praça do liceu Camões.
O PCP, as rupturas e a concórdia
Entrou logo no PCP em 1972, antes do 25 de Abril chegou a ter tarefas clandestinas?
Sim, era para isso que se entrava para o partido. Coisas simples, nada de especial: agitação, propaganda, reuniões, apoio a funcionários clandestinos. Foi pouco tempo e ainda por cima houve dois episódios que não aconselhavam muita militância clandestina: fui preso nesse ano e fui para a direcção da associação de estudantes de Medicina.
Fez o percurso de aparelho e chegou ao topo. Quando subiu ao Comité Central sentiu isso como um sucesso? Com orgulho? Com honra?
Ao longo da vida nunca me senti a subir escadas, fosse por que razão fosse. Não é o meu género de reacção. Quando fui para o CC senti o mesmo que senti quando o João Frois me levou para o Partido Comunista ou quando fui convidado para funcionário pelo Joaquim Pina Moura e pelo Jorge Araújo ou, ainda, mais tarde, quando o Miguel Portas e o Francisco Louçã me desafiaram para o Parlamento ou quando fui eleito para a direcção do Bloco. São passos que se dão com satisfação, claro, permitem ir mais longe no que fazemos e isso é naturalmente bom para quem está empenhado politicamente.
Integrou a terceira via no início dos anos 90 e demitiu-se do Comité Central em 1991, mas acreditou até 2003 que o PCP podia mudar. Não levou tempo demais a romper?
Durante esses anos ouvi muitas vezes essa opinião, em muitos casos formulada como uma crítica. Eu não critico quem saíu mais cedo mas também não julgo que tenham tido razão antes do tempo certo. É verdade que sou um sujeito paciente e pouco dado a precipitações mas quem quer “mudar o mundo” tem de encher-se de paciência, digo eu. Isto não se faz de assobio nem de um dia para o outro, não chega uma vida, uma geração.
Vale a pena olhar para a forma como evoluíram os acontecimentos no PCP. Entre 1991, ano em que deixei o CC e assumi publicamente divergências claras com a direção do PCP, e o congresso de 2000, que foi decisivo para eu sair do PCP, portanto durante dez anos, mantinha-se no PCP e na sua direcção muita gente com vontade de mudar o que não estava bem no partido. Sempre achei que valia a pena contibuir para esse esforço e não me afastar definitivamente, mesmo que a minha militância fosse reduzida como de facto foi nesse período. O Novo Impulso, no final da década de noventa, não foi uma ficção, foi uma realidade que conquistou a maioria do CC e que acabou por abortar às mãos do conservadorismo leninista que Cunhal ainda conseguiu mobilizar. O Congresso de 2000, o XVI se não me engano, pôs um ponto final em qualquer possibilidade de renovação do PCP, quer pelo retrocesso da linha política aprovada quer pelo afastamento de muitas dezenas de quadros e dirigentes. Nesse ano, deixou de haver massa crítica no PCP para fazer a sua renovação. Não havia mais nada a esperar. Aliás, desde esse Congresso – e já lá vão mais de 15 anos – que reina a mais completa concórdia no PCP.
A morte de Luís Sá em 1999, a seguir às legislativas, foi uma perda irremediável para a mudança no PCP?
O Luís Sá deixou-nos muito cedo e de forma brusca e brutal, foi uma enorme perda para todos os que o conheciam, para os seus amigos e para os que trabalhavam e lidavam mais de perto com ele. Limitar a perda ao PCP ou especular sobre o papel que o Luís poderia ter tido neste ou naquele processo político ou partidário é diminuir o Luís naquilo que foi e na pessoa que era. Perdeu a democracia, perdeu a política, perdeu a esquerda.
O que pensa do papel de Álvaro Cunhal no processo de democratização?
Começo por destacar dois contributos de grande dificuldade e complexidade por muito que hoje nos pareçam banais: primeiro, a transformação de um partido clandestino e de quadros, num grande partido de massas e num país democrático, sem perda das suas principais características. Segundo, após o PREC, quando a perspectiva de uma revolução socialista desaparecia definitivamente do imaginário comunista, a definição da democracia avançada e do aprofundamento da democracia como estratégia do partido para o socialismo, respondendo assim à pergunta que naqueles tempos amargurava os comunistas e toda a esquerda “e, agora, que fazemos para chegar ao socialismo?”
Apesar da sua genialidade, sobre alguns problemas centrais da identidade comunista e do modelo de partido operário, o pensamento de Cunhal não evoluiu, cristalizou, na minha opinião. Dois exemplos: manteve uma concepção instrumental das liberdades e da própria democracia, embora eu esteja convencido de que ele, hoje, não daria a mesma cobertura à ditadura corrupta do MPLA que tem dado a direção do PCP; e também sobre o modelo leninista de partido, em relação ao qual Cunhal não admitia qualquer mudança no sentido de uma discussão mais plural e participada, condenando o partido a viver de variações sobre o pensamento único mas em banda muito estreita, o que contribui para a estagnação tanto das ideias como da própria militância.
O PCP de hoje tem algo a ver com o PCP do seu tempo?
No plano político e ideológico sim, bastante, há uma clara continuidade que julgo radicar na persistência da matriz de partido de vanguarda, que por vezes derrapa para a auto-suficiência. O vanguardismo traduz-se em dogmatismo no plano ideológico e em sectarismo no plano político. São tempos muito diferentes e o mapa político mudou muito com o Bloco. Hoje há mais sectarismo por parte da direcção do PCP, provavelmente porque o Bloco é muito mais do que foram os grupos esquerdistas nesse tempo. Como já disse uma vez, depois de uma reunião com Jerónimo de Sousa, podemos ir cada um na sua bicicleta, até podemos ir em faixas diferentes da estrada mas a estrada é a mesma, não é?
BE, Parlamento e Governo
Arrepende-se de algo na sua trajectória política?
Tenho 65 anos, tempo suficiente para ter cometido muitos erros. Mas não me arrependo se falarmos das decisões que contam, daquelas que marcam. As decisões tomam-se num determinado tempo, num certo contexto, é isso que as faz certas ou erradas. Fora do seu tempo e contexto, o arrependimento é tão fácil quanto inútil, já não muda nada, é um exercício que não tem qualquer sentido nem utilidade. Nem mesmo de decisões que geraram muita controvérsia me arrependo. Dou um exemplo: a liderança a dois do Bloco, comigo e Catarina Martins, em 2012. Não resultou, é evidente. Fomos super criticados, mesmo massacrados, era assim que me sentia muitas vezes. Não era difícil prever que assim iria ser, nunca tivemos qualquer ilusão sobre isso. O desgaste foi enorme para a direcção e para o Bloco, até porque a maneira mais fácil de atacar um partido é atacar a sua direcção. Portanto, hoje, dizemos sem qualquer dúvida, a coisa correu mal, a solução não se conseguiu afirmar. Mas, em 2012, naquelas condições, havia outra solução melhor, outra solução que reunisse mais apoio? Respondo com toda a convicção, não, não havia, aliás não apareceu outra melhor e mais apoiada. Então que sentido faz dizer que me arrependo se, de facto, não havia outra saída? Aliás, olhando para a actualidade do Bloco, acho que sobre essa solução e esse período, se pode dizer que não foram anos perdidos.
A reacção à direcção paritária deve-se ao machismo ou apenas ao conservadorismo em geral?
Julgo que se deve à combinação de muitas coisas, incluindo as que se refere. Mas, sobretudo, deve-se ao momento de fragilidade que o Bloco atravessava e que os nossos adversários políticos aproveitaram para tentar encostar o Bloco às cordas. Estavamos em 2012, a troika estava a instalar-se em pleno, a luta ia aquecer, para a direita, quanto menos Bloco houvesse melhor. Mas o combate político é mesmo assim, tem momentos bem duros. Repito, não foram anos perdidos, foram anos duros, o Bloco ganhou resistência, endurance, consistência.
Como vê o papel dos jornalistas nesse massacre que refere? Por exemplo a recusa em usar a expressão “direcção paritária” e recorrer à expressão “direcção bicéfala”?
É muito fácil elogiar a inovação e a novidade, mais difícil é aceitá-la e viver com ela. Os jornalistas não são excepção a esta regra. Salvo raríssimas excepções, colaram-lhe a etiqueta depreciativa da bicefalia. Tomaram partido nessa polémica. E acho que nunca se interrogaram o suficiente nem quiseram saber as razões daquela opção.
Foi deputado durante uma década (2005-2015). Valeu a pena?
Pessoalmente, sem dúvida que sim, aprendi muito e gostei imenso de ser deputado. Eu gosto da disputa, do despique, da controvérsia, guardo boas memórias dos debates sobre saúde com Correia de Campos e Paulo Macedo ou dos debates com o governo e mais recentemete com Pedro Passos Coelho. Senti-me sempre muito motivado nas comissões de inquérito, vencer a mentira e o silêncio dos culpados, sobretudo nos casos do BPN, da PT/TVI, dos submarinos, são experiências que não se esquecem facilmente.
Politicamente, bom, quem deve responder são os eleitores. Mas quando olho para o meu trabalho e do meu grupo parlamentar acho que posso dizer sem qualquer exagero que contribuímos para algumas mudanças que vieram para ficar, por exemplo, o testamento vital, a introdução dos tempos de espera no SNS ou a generalização dos genéricos.
No BE assegurou a passagem de geração ao integrar a direcção paritária. Desde o início, assumiu esse papel como transitório, para um mandato. Se daí a dois anos a direcção paritária se mantivesse já não seria consigo?
Em política tudo é transitório, tudo é efémero. Com esta generalidade não quero fugir à pergunta: em 2012, eu já tinha passado os 60 anos e isso encurta o horizonte, sobretudo quando se trata de liderança e de um partido como o Bloco, um partido jovem, de gente jovem e que os jovens olham com atenção. Mas não havia qualquer roteiro definido e muito menos definitivo, não havia qualquer definição prévia sobre os mandatos que a Catarina e eu faríamos, se seria um, dois ou três. E muito menos que seria esse o modelo a instituir para sempre. E não sei se alguma vez mais o Bloco terá uma liderança paritária, tudo isso nunca foi definido de forma rígida. Veremos no futuro como será, o que será melhor. Mas há uma coisa que julgo poder dizer com toda a certeza: enquanto se mantivesse aquela coordenação paritária só seria com a Catarina e comigo. Ou seja, à data, aquele modelo era com aqueles dois protagonistas e apenas com eles.
O Francisco tinha deixado a liderança do Bloco – uma liderança forte de uma personalidade tão rica como vincada – era o tempo da geração fundadora do Bloco dar espaço e lugar a uma outra geração e, sim, é verdade contribuí para essa mudança, para essa renovação, como muitos outros também contribuíram. E foi bom que essa transição tivesse sido realizada e acompanhada por uma coordenação a dois. Acho que os dias de hoje mostram isso com grande clareza. O Bloco tem hoje uma direção para dar e durar, que não desarma nem desiste, com muita imaginação, política e capacidade de construir soluções, propostas, respostas.
Os acordos de esquerda que viabilizam o actual governo surpreenderam-no?
Não, não me surpreenderam, o que me surpreendeu foram os resultados eleitorais de Outubro e julgo que não fui o único. Estes acordos foram possíveis por duas razões: uma, muito objectiva, é que um governo do PS tornava-se viável na base de um acordo a três ou quatro (PS, BE, PCP, PEV), como quiser, e só assim, teria que ter todos esses partidos, uma relação de forças à esquerda como nunca tinha existido, com um crescimento muito grande do Bloco e não com o seu recuo; a segunda, muito subjectiva, é uma disponibilidade muito diferente por parte do PS e de António Costa que rejeitou governar com a direita ou deixá-la governar e admitiu uma saída com os partidos à sua esquerda. Uma e outra coisa são uma absoluta novidade na história da democracia portuguesa.
Europa, alternativa e internacionalismo
É viável a Europa separar-se? É viável os países viverem isolados, cada nação por si?
Se é viável? O Reino Unido vai deixar a UE, vários estados membros não cumprem resoluções do Conselho Europeu – veja o que se está a passar com os refugiados e migrantes - as eleições para o PE têm taxas de participação baixíssimas, sempre que alguma coisa relacionada com a UE vai a votos é derrota pela certa, o desemprego não pára de crescer e a economia europeia está numa crise arrastada, há pobreza na Europa como há décadas não se via, as desigualdades entre estados e entre regiões acentuam-se em vez de se esbaterem. É difícil não ver nisto uma União Europeia a desagregar-se, lenta mas inexoravelmente. A UE falhou e não vejo que tenha conserto.
Não me parece que a consequência seja obrigatoriamente o isolamento dos países. Há múltiplas possibilidades e regimes de cooperação em vários domínios. Está aí um novo problema para a esquerda na Europa, desenhar e construir uma resposta à lenta implosão da UE. Não é cedo para começar e não vale a pena ter ilusões: neste contexto, nesta relação de forças, não há alternativa ao confronto com as instituições europeias, esgotou-se o tempo e a possibilidade das reformas, das mudanças, das refundações democráticas da UE, a hora é de ruptura.
Qual a alternativa à União Europeia num país como Portugal?
Como disse, esse é o debate que temos de fazer. Não sozinhos, mas com as forças de esquerda e os movimentos sociais que conduzem na Europa a luta por uma alternativa. O Bloco está a preparar um grande encontro com estes protagonistas europeus para 2107 que incentive essa resposta.
Há um plano imediato: a contestação e o confronto com as autoridades europeias contra as imposições e o abuso, recuperando soberania democrática, que se proponha acabar com os PECs, o tratado orçamental, as sanções, os vistos prévios, enfim, com o colete de forças que a UE impõe aos povos europeus, condenando-os ao empobrecimento sem fim e à desigualdade.
E há certamente a necessidade de, neste combate contra a Europa autoritária, construir novos espaços e modelos de cooperação entre estados no plano económico e social, que promovam o desenvolvimento e o emprego e que tragam de volta a coesão social e a coesão territorial para o centro das políticas europeias.
Viu a queda do Muro de Berlin e, agora, assiste a factos que podem ser sinais da derrocada da União Europeia. A história repete-se?
O muro de Berlim, a URSS e os então chamados países do socialismo real no leste europeu caíram como um baralho de cartas, ainda hoje me surpreende a facilidade, a rapidez com que tudo implodiu, estados que conduziram décadas a fio a vida de centenas de milhões de pessoas não tiveram ninguém que os defendesse. Bastou um sopro e tudo desabou.
Não creio que assim venha a acontecer na União Europeia. A alta finança, os mercados, os grandes trusts internacionais, a administração norte-americana, o FMI, a NATO, os próprios governos europeus não vão abrir mão com facilidade do seu poder e dos seus interesses vitais. A UE é uma construção para proteger, consolidar e expandir o sistema capitalista. Em grande medida tem conseguido os seus objetivos estratégicos, a união hoje é um enormíssimo mercado e é isso que interessa aos seus mentores, é isso que protegem. Não creio que tanto poder se esfarele como se esfarelou a União Soviética e os países do pacto de Varsóvia. Vai ser um duro e prolongado confronto.
Continua a acreditar que o internacionalismo pode ter sucesso?
O capitalismo precisou de apagar fronteiras, impôs a livre circulação de capitais, de bens, de serviços e de pessoas, alargar mercados é condição de sobrevivência. Estão muito mais avançados na internacionalização que as forças dos trabalhadores, as forças socialistas. Continuo a pensar que as grandes transformações sociais e políticas também se disputam numa escala europeia, numa dimensão internacional. Num mundo tão globalizado, também se globalizaram os problemas com que se confrontam os trabalhadores nos diferentes países e até continentes. A precariedade não está espalhada pelo mundo? O ataque ao salário não é universal? Não há desemprego por todo o lado? Fazem falta mais respostas internacionalistas, mais solidariedade internacionalista. Sem ela, como vamos conseguir travar o tratado transatlântico, por exemplo? O internacionalismo é condição do sucesso.
O tempo histórico acelerou, a prova é que viveu várias revoluções: 25 de Abril, queda do Muro, defesa de direitos de identidade. Essa aceleração é positiva para a dignidade do ser humano. Ou considera que na essência os problemas da defesa da dignidade das pessoas se mantêm?
Nem todos os problemas em torno da dignidade do ser humano estão resolvidos. Mas a história da Humanidade é um pouco a história da evolução dos direitos das pessoas e da valorização da sua dignidade: primeiro, os direitos políticos e, depois, os direitos sociais muito relacionados com o trabalho, a protecção social, a reforma, o estado social. E agora, uma nova geração de direitos, que aprofunda os direitos humanos, os direitos de cidadania e de identidade. Julgo que, na actualidade, a conquista e consagração desses novos direitos é e será muito mais rápida, claramente em consequência da aceleração do tempo histórico de que falou. Repare na curta existência que é a vida de cada um de nós e, no entanto, já participámos na luta por uma série de novos direitos e, mais do que isso, assistimos mesmo à sua conquista. Neste momento estou empenhadíssimo na defesa de um novo direito, o direito à morte com dignidade. Não me passa pela cabeça que vamos ficar anos ou décadas à espera. O tempo acelerou e consolidou o meu optimismo. Deve ser isso o chamado optimismo histórico...
Como se define politicamente hoje?
Sou um militante da esquerda socialista e internacionalista.