Comício “da democracia e dos mártires” encerra mobilização pós-golpe na Turquia

Manifestação que junta líderes no poder à oposição não curda reúne mais de um milhão em Istambul. Os ecrãs gigantes para ver a festa não estiveram só espalhados pela Turquia, chegaram à Pensilvânia.

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Foi como se as últimas três semanas tivessem servido de ensaios sucessivos, com um ensaio geral no dia 24 de Julho, quando o maior partido da oposição, o CHP, se juntou aos apoiantes do AKP, no poder, e encheu a Praça Taksim de Istambul.

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Foi como se as últimas três semanas tivessem servido de ensaios sucessivos, com um ensaio geral no dia 24 de Julho, quando o maior partido da oposição, o CHP, se juntou aos apoiantes do AKP, no poder, e encheu a Praça Taksim de Istambul.

Como é que se põe fim a noites e noites de manifestações festivas que serviram em princípio para homenagear os mortos – 239 (fora revoltosos) – da noite de 15 de Julho e celebrar a República e o fracasso da tentativa de golpe de Estado militar, com distribuição de sanduíches e sumos, mais transportes públicos de graça? Para evitar ressacas, faz-se um comício apoteótico, líderes a chegarem de helicóptero, 3 milhões de garrafas de água, 2,5 milhões de bandeiras…

Não, não foram só os apoiantes do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, do Presidente, Recep Tayyip Erdogan) a responder ao apelo espalhado pelas auto-estradas, pontes e edifícios da Turquia. “O triunfo é a democracia, as praças são o povo”, lia-se nas faixas e cartazes, que substituíram a mensagem anterior – “A soberania pertence à nação” (cunhada por Mustafa Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, “pai” dos turcos e político mais popular da história do país).

Os jornais turcos falam em “milhões”, a Reuters diz que “mais de um milhão” esteve até ao início da noite em Yenikapi, bairro e porto a pouca distância do centro de Istambul.

Entre a multidão, havia eleitores do AKP, gente disposta a morrer por Erdogan (a mensagem podia ler-se em algumas T-shirts), o chefe de Estado autoritário que na noite do golpe apelou aos turcos para saírem à rua em defesa do regime democrático, mas também curdos ou apoiantes do CHP e do MHP (partido nacionalista de extrema-direita). Motards (ultranacionalistas ou conservadores religiosos, são os dois tipos que mais se têm mostrado nas ruas de Istambul), bandeiras de Atatürk e muitas fitas na cabeça onde se lê Tayyip ou Turquia.

As festividades foram abertas pelo chefe do Gabinete dos Assuntos Religiosos (espécie de ministério), Mehmet Görmez, que recitou o Corão, logo a seguir a ouvir-se o hino, enquanto Erdogan chegava na companhia da sua mulher, Emine. O principal rabi do país também não faltou e, além dos líderes da oposição não curda, falou no palco o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (numa rara intervenção pública), Hulusi Akar, raptado pelos golpistas durante algumas horas.

Houve espaço para gente que ficou ferida (foram mais de 2000), como Orçun Sekercioglu, que os tiros dos soldados na ponte do Bósforo onde enfrentou os tanques deixaram numa cadeira de rodas. “Nessa noite, percebi que faço parte de uma grande nação”, disse. “Istambul é fantástica”, afirmava, pouco depois, o primeiro-ministro, Binali Yildirim.

O consenso e a república

“15 de Julho abriu a porta para o consenso na Turquia”, disse o líder do CHP (Partido do Povo Republicano), o mais antigo do país. “Agora, há uma nova Turquia”, insistiu Kemal Kiliçdaroglu, afirmando que todos os políticos têm lições a retirar do golpe. “Isso inclui-me”, disse, antes de insistir na importância da democracia, estado de direito e secularismo, os princípios da fundadores Turquia de Atatürk. “Se não houvesse república, Erdogan não seria Presidente. Yildirim não seria primeiro-ministro, eu não seria líder da oposição”.

O chefe do MHP, quarto partido nas legislativas do ano passado bem atrás dos pró-curdos do HDP, que Erdogan continua a ignorar e a não incluir nesta sua aproximação aos opositores no pós-golpe, diz-se “feliz por estar a ver a Turquia a pôr-se de pé”. Numa referência aos civis que enfrentaram os golpistas, Devlet Bahçeli descreveu o 15 de Julho como “um marco” na história do país.

Erdogan, o líder que tanto polarizou a Turquia nos últimos anos e que anunciou este comício falando num encontro “da nação” e defendendo a importância “de acelerar o processo de normalização”, foi, como sempre, a estrela maior de uma manifestação onde se pediu aos participantes para deixarem em casa as bandeiras partidárias. Um comício transmitido em directo na televisão e nas redes sociais em sete línguas diferentes e, como sempre nas últimas semanas, seguido por milhões de turcos nos ecrãs gigantes montados nas grandes praças das principais cidades.

Não só na Turquia, desta vez. “Um enorme ecrã foi colocado em mais um lugar. Sabem onde?”, perguntou Erdogan à multidão, para não deixar esquecer o homem que o AKP e a oposição culpam pelo golpe, Fethullah Gülen, o pregador moderado exilado nos Estados Unidos que os turcos querem ver extraditado. “Na Pensilvânia. A mensagem será entregue.”