Bactéria está a ser usada para “vacinar” mosquitos contra o Zika no Brasil
Estão a ser libertados em bairros do estado do Rio de Janeiro mosquitos Aedes aegypti que não transmitem doenças como a febre de dengue e o Zika. O segredo está numa bactéria benigna chamada Wolbachia.
Na casa de Rita Ramos, há um balde com ovos de mosquitos Aedes aegypti mesmo debaixo das escadas principais. Dentro do recipiente plástico branco, com tampa e furos de lado, há água e alimento para as larvas que vão nascer. É uma espécie de ninho que as protege até se transformarem em mosquitos e poderem voar para o exterior. Rita Ramos não tem medo: insectos como estes são muito bem-vindos ao bairro brasileiro de Jurujuba, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro.
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Na casa de Rita Ramos, há um balde com ovos de mosquitos Aedes aegypti mesmo debaixo das escadas principais. Dentro do recipiente plástico branco, com tampa e furos de lado, há água e alimento para as larvas que vão nascer. É uma espécie de ninho que as protege até se transformarem em mosquitos e poderem voar para o exterior. Rita Ramos não tem medo: insectos como estes são muito bem-vindos ao bairro brasileiro de Jurujuba, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro.
São bem-vindos porque são mosquitos especiais. As fêmeas picam, mas não transmitem doenças aos humanos. Estes Aedes aegypti foram artificialmente infectados com uma bactéria chamada Wolbachia, que os torna resistentes a infecções provocadas por vírus temíveis como o Zika e o da febre de dengue.
Os 128 baldes de plástico distribuídos pelo bairro de Niterói fazem parte de um estudo piloto do programa Eliminar a Dengue: Desafio Brasil, parte de uma iniciativa internacional sem fins lucrativos que, no Brasil, está a ser liderada pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). O objectivo é que os mosquitos com Wolbachia se cruzem com os Aedes selvagens, fazendo com que as gerações subsequentes já nasçam infectadas coma bactéria benigna.
Este método de controlo da população de Aedes foi considerado promissor pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que encorajou testes em grande escala para, no futuro, termos novas ferramentas para conter a propagação de vírus patogénicos como o Zika. Estimativas recentes indicam que há 93 milhões de pessoas em risco de infecção pelo vírus Zika nos próximos dois a três anos, sendo o Brasil o foco mais inquietante). Uma grande parte das pessoas com Zika não apresenta qualquer sintoma, ou apenas sintomas semelhantes aos de uma febre de dengue atenuada – febre súbita e dores nas articulações –, mas as grávidas infectadas podem dar à luz bebés com microcefalia e outros problemas neurológicos. Para já, não há cura ou vacina.
Depois do medo, confiança
“Estes mosquitos são do bem e a comunidade agora sabe disso”, diz Rita Ramos, que se tornou “anfitriã” do projecto no último mês de Junho. No início, houve receio e desconfiança em Jurujuba. “O pessoal não gostou muito da ideia de trazerem para aqui mais mosquitos”, explica ao PÚBLICO, numa conversa telefónica, a funcionária pública de 50 anos. Após vários encontros da Fiocruz com os moradores, prevaleceu o entendimento e a aceitação. “Aqui já não se mata um só mosquito”, conta Rita Ramos. E “ninguém tem medo” de ter em casa “um baldinho”, como é chamado no bairro o Dispositivo de Libertação de Ovos.
Além dos dispositivos com ovos, está a ser testado no Rio de Janeiro um outro método: a libertação de mosquitos já adultos (também infectados com a Wolbachia). Em Setembro de 2014, foram semanalmente libertados entre 12 a 15 mil mosquitos ao longo de 20 semanas no bairro de Tubiacanga, no Rio de Janeiro. O processo foi repetido no ano seguinte.
O morador Amilton de Sousa, reformado de 66 anos, repete o mesmo discurso de Rita Ramos: no início “houve tumulto”, as pessoas “ficaram cabreiras” (aborrecidas), mas depois abraçaram a iniciativa. “Aqui em Tubiacanga eu tenho a sensação de que a dengue é zero, há muito que não ouço falar de um só caso da doença”, contou Amilton ao PÚBLICO por telefone. A febre de dengue é conhecida como “quebra-ossos” precisamente porque provoca fortes dores no corpo e febre alta.
O objectivo principal destes estudos de campo é avaliar a permanência da Wolbachia nas populações de Aedes aegypti. Será que, uma vez libertados, os mosquitos com a bactéria benigna são capazes de se reproduzir com os demais? E as suas crias nascem todas com a Wolbachia e transmitem-na às gerações seguintes? Os resultados preliminares, obtidos a partir da análise dos dados recolhidos durante os últimos dois anos, sugerem que sim.
“Os nossos resultados são muito promissores. Verificámos que a Wolbachia se mantém presente em cerca de 80% da população de mosquitos”, explica Luciano Moreira, cientista da Fiocruz e coordenador do projecto Eliminar a Dengue: Desafio Brasil.
Para o investigador brasileiro, que falou ao PÚBLICO por videochamada, a actual epidemia de Zika está a fazer com que “as pessoas estejam dando mais atenção a estratégias alternativas de controlo do vector”. O vector neste caso é o mosquito Aedes aegypti, responsável não só pela transmissão do Zika e da febre de dengue mas também do chikungunya (ou chicungunha) e da febre-amarela.
A forma actual de combater epidemias provocadas pelo Aedes aegypti é controlar as populações de mosquitos. Contudo, faltam estudos mais complexos – os chamados “estudos clínicos randomizados controlados”– que avaliem a eficácia dos métodos mais utilizados: insecticidas e larvicidas, por exemplo, assim como a eliminação (ou vedação) de contentores de água estagnada. Este tipo de estudo é considerado pelos cientistas uma das ferramentas mais poderosas para avaliar o efeito de uma intervenção. Se soubermos com rigor quais os métodos que têm impacto epidemiológico quando combinados, e por que razão, será mais fácil traçar estratégias que resultem.
Os métodos usados hoje têm-se revelado de eficácia limitada, seja porque a resistência dos insectos a pesticidas aumentou, seja porque as políticas de controlo do vector não são adoptadas de forma sistemática nos países afectados. É comum que as campanhas ganhem força quando há uma epidemia e que esmoreçam quando o número de casos da doença cai.
“O controlo do mosquito Aedes tem de ser feito de forma continuada. É um programa intensivo e que precisa de mais recursos para que se consiga pôr em prática medidas de vigilância e controlo ao longo de todo o ano. O impacto desse controlo acaba por contribuir para a sua própria sustentabilidade”, sublinha o especialista Raman Velayudhan, do Departamento de Doenças Tropicais Negligenciadas da OMS.
Devido ao aumento do número de casos de microcefalia e outros distúrbios neurológicos em países afectados pelo Zika, sobretudo na América Latina, a OMS declarou a epidemia, em Fevereiro deste ano, uma “emergência de saúde pública de importância internacional”. Em Março, houve uma reunião de emergência do grupo responsável pela avaliação de novos métodos de controlo do vector na OMS, em Genebra, na Suíça. Nesse encontro, no qual Raman Velayudhan esteve presente, apenas duas novas ferramentas foram recomendadas: os mosquitos infectados com Wolbachia e os mosquitos geneticamente modificados produzidos pela Oxitec (empresa britânica detida pela gigante biotecnológica Intrexon).
O método proposto pela Oxitec consiste em libertar mosquitos machos munidos de um gene letal que será transmitido à prole. Quando se cruzam com fêmeas selvagens – e esse é o objectivo –, os ovos dão origem a larvas que nunca chegam à fase adulta. Esta tecnologia permite uma redução “drástica” da população de Aedes, segundo os resultados dos estudos de campo conduzidos em países como o Brasil e o Panamá. São apenas libertados machos porque estes não picam e, por isso, não transmitem doenças. A 19 de Julho, a empresa britânica expandiu o projecto em curso na cidade de Piracicaba, no estado de São Paulo, iniciando a libertação de mosquitos geneticamente modificados para cobrir uma área onde vivem cerca de 60 mil pessoas, segundo um comunicado de imprensa.
A “fascinante biologia” da Wolbachia
A Wolbachia é uma bactéria que vive dentro das células da maioria dos insectos (e de alguns vermes redondos também). Muitas das libélulas que vemos em jardins estão naturalmente infectadas com Wolbachia. O mesmo vale para as mosquinhas que adoram sobrevoar as bananas maduras. Mas ao contrário das libélulas e das moscas da fruta, os mosquitos do género Aedes não são normalmente infectados por esta bactéria.
Em 2008, um grupo de cientistas na Universidade de Monash, em Melbourne (na Austrália), e outro da equipa de Luís Teixeira, no Instituto Gulbenkian de Ciência (em Oeiras), confirmaram – em trabalhos distintos e de forma independente – que insectos contendo a Wolbachia são mais resistentes a infecções virais.Por outras palavras, a Wolbachia parece funcionar como uma “vacina” em determinados insectos.
Então, e se nós “vacinássemos” em laboratório mosquitos responsáveis por transmitir tantas doenças? Não poderíamos infectar o Aedes aegypti com a Wolbachia originária das mosquinhas da fruta? A resposta é sim, como provou o grupo de cientistas liderado por Scott O'Neill, da Universidade de Monash.
Dito assim até parece simples, mas na verdade “vacinar” o Aedes aegypti foi “difícil” e “exigiu milhares de tentativas”, explica Scott O'Neill por email ao PÚBLICO. A equipa de O'Neill utilizou agulhas microscópicas para retirar a Wolbachia das células das moscas da fruta e, depois, injectá-la nos ovos dos mosquitos. “Costumo dizer que foi como espetar um balão e, em seguida, retirar a agulha sem o estourar”, compara O'Neill.
Num artigo de 2009 – do qual, aliás, o cientista brasileiro Luciano Moreira é o primeiro autor –, na revista científica Cell, a equipa mostrava como a infecção por Wolbachia limita a infecção provocada pelos vírus da dengue e chikungunya.
Com a confirmação dos poderes especiais da Wolbachia, nasceu a ideia-chave do programa internacional Eliminate Dengue: Our Challenge, liderado por Scott O'Neill a partir da Austrália. Como o próprio nome indica, o alvo principal da iniciativa é a febre de dengue, doença que infecta cerca de 390 milhões de pessoas por ano no mundo. Mas como o vector é o mesmo do Zika, do chikungunya e da febre-amarela, o método passou a ser visto como uma ferramenta polivalente. O programa sem fins lucrativos é financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, assim como por outras fundações ou governos dos cinco países onde estão decorrer estudos de campo (Austrália, Brasil, Colômbia, Indonésia e Vietname).
O'Neill apaixonou-se pela “fascinante biologia” da Wolbachia quando ainda era estudante universitário. Uma vez formado, dedicou-se à investigação de como as características especiais desta bactéria poderiam ajudar no controlo transmissão de doenças por insectos. “Queria perceber como aproveitar este poder da ‘Wolbachia’ para tornar os mosquitos inofensivos sem termos de os matar – algo que não fomos capazes de fazer de modo sustentável durante o último século”, explica, referindo-se ao uso indiscriminado de pesticidas.
Oferecer um método sustentável e de baixo custo é, aliás, o principal objectivo do Eliminate Dengue. “Pode-se ficar com a ideia de que injectamos os mosquitos um a um com Wolbachia antes de os soltarmos. Não é o caso. Só temos de infectar os mosquitos uma vez e depois a bactéria é espontaneamente passada de geração em geração”, recorda O'Neill. Por outras palavras: uma vez introduzida a Wolbachia numa população de mosquitos, não é necessário qualquer outro tipo de investimento.
Os primeiros Aedes aegypti com Wolbachia foram libertados pela primeira vez há cinco anos, numa cidade costeira de Queensland, na Austrália. Os estudos mostram que a população de mosquitos na área continua, até hoje, infectada com a bactéria. O que falta ser demonstrado cientificamente é se o método tem eficácia epidemiológica, ou seja, se de facto diminuiu o número de casos de doenças transmitidas pelo mosquito. Para obter esta resposta, já está planeada a realização, em 2017, de um estudo randomizado controlado na cidade de Jogjakarta, na Indonésia.
Uma outra estirpe da Wolbachia tem sido utilizada na China, por grupo de investigadores na Universidade de SunYat-sen, fazendo com que os mosquitos machos infectados dêem origem a ovos estéreis quando se cruzam com fêmeas selvagens. O resultado pretendido é o declínio da população de Aedes albopictus e, como consequência, da transmissão de doenças. Este projecto conta com uma “fábrica de mosquitos” em Guangzhou, no Sul da China, onde são semanalmente produzidos e libertados cerca de três milhões de mosquitos infectados com Wolbachia.
O programa Eliminar a Dengue: Desafio Brasil também está pronto para construir a sua “fábrica” de Aedes aegypti e testar o método em larga escala. “Estamos preparados para expandir o projecto, só precisamos de sinal verde das instituições que nos apoiam e financiam”, diz Luciano Moreira, que espera ter novidades “nos próximos meses”. Se começassem hoje, dentro de três anos teriam condições de cobrir com mosquitos suficientes uma cidade como o Rio de Janeiro, cuja área metropolitana tem cerca de seis milhões de habitantes.