O que acontece aos alunos com deficiência depois dos 18 anos?
As respostas sociais à população adulta com incapacidade têm vindo a aumentar, mas continuam insuficientes. Um número indeterminado de jovens acaba a escolaridade obrigatória e vai para casa.
Maria está impaciente. Pega na mão da irmã, Marta, e puxa-a para a porta do apartamento. “Ainda não”, diz-lhe a menina, de 11 anos. Ela está habituada a sair por volta das 9h para a escola. Acabou o prolongamento escolar. E não gosta de quebras na rotina. Qualquer alteração lhe faz impressão.
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Maria está impaciente. Pega na mão da irmã, Marta, e puxa-a para a porta do apartamento. “Ainda não”, diz-lhe a menina, de 11 anos. Ela está habituada a sair por volta das 9h para a escola. Acabou o prolongamento escolar. E não gosta de quebras na rotina. Qualquer alteração lhe faz impressão.
Durante 13 anos, a família nem tinha um nome para a doença dela. É raríssimo haver uma pessoa com uma mutação do gene CDKL5. Foi aprendendo a ampará-la nas convulsões. Foi percebendo a severidade do seu défice cognitivo. “Sabemos que quer sair porque nos pega na mão e nos leva para a porta”, diz o pai, Miguel Silva. “Percebemos que tem fome, porque chega à mesa, puxa a cadeira e senta-se.”
Completou 18 anos em Abril. No próximo ano lectivo, estará fora da escolaridade obrigatória. O Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos já não terá de a manter na Unidade de Apoio Especializado para a Educação a Alunos com Multideficiência. E a família não encontra, em Vila Nova de Gaia, vaga num centro de actividades ocupacionais com acordo de cooperação com o Estado.
Miguel trabalha como vendedor, numa multinacional. E a mulher, Cristina, gere o seu próprio negócio, um salão de cabeleireiro. Deixam as filhas na escola, ali perto, e seguem para o trabalho. Os avós paternos olham por elas desde que elas saem da escola até um deles voltar para casa. Em Agosto, expandem o tempo de apoio. Miguel e Cristina não se atrevem a pedir mais. Eles assustam-se tanto com as convulsões de Maria. “Têm medo que ela lhes morra nos braços”, diz o pai.
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Maria tem um Plano Individual de Transição, como manda a lei. Três anos antes do fim da escolaridade obrigatória, a escola começou a procurar identificar oportunidades para a sua vida pós-escolar, envolvendo a família e a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM). “Não é por ter feito esse plano que tem resposta”, lamenta o pai.
O Ministério de Casa
Pelas contas da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, há cada vez mais crianças com necessidades especiais nas escolas. Entre o ano lectivo 2014/2015 e o ano lectivo 2015/2016, o país passou de 75.193 para 78.175. No ano que agora terminou, 2081 frequentavam as unidades de apoio especializado para alunos com multideficiência e surdo-cegueira congénita, como ela.
Filinto Lima, o director do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, que é também presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, está indignado: “Estas crianças e jovens, com graves problemas, progridem até aos 18 anos e a partir daí vai tudo pela água abaixo. Passam do Ministério da Educação para o Ministério de Casa. Podem ficar em casa o resto da vida! Não são estimulados. Não evoluem. Os encarregados de educação ficam desesperados.”
Este ano, a grande preocupação de Filinto Lima é Maria e um colega. Há dois anos, a sua grande preocupação era um par de gémeos que completou 18 anos sem que houvesse uma resposta de continuidade para lhes dar. Prolongou-lhes a matrícula um ano, a ver se aparecia uma vaga na APPACDM ou na CERCI (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos com Incapacidades). Não o fez no ano seguinte. Volvido um ano, continuam num apartamento sem elevador, à espera.
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Fátima Jorge, a mãe dos gémeos, já não sabe o que há-de fazer. “Estar com eles o dia todo é complicado. Sentam-se aí a ver televisão. Quando se cansam de ver televisão, tenho de lhes pôr música. Eles gostam muito de música. Ó Miguel, que música é que gostas?”, pergunta, dirigindo-se ao filho, sentado no sofá. “Toy”, responde o rapaz, baixinho. “É o Toy. Ele adora o Toy.”
“Tanto os professores lutaram para estas crianças não ficarem em casa”, diz Fátima, sem perder os filhos de vista. “Muitas vezes, foram connosco, no carro deles, à APPACDM ou à CERCI.” Nota grande diferença no comportamento dos rapazes, agora com 20 anos. “Eles antes andavam mais calmos. Chegavam cansados, a gente dava-lhes banho, dava-lhes jantar. Eles estavam aí um bocado e iam dormir. Agora, às vezes, são duas da manhã e ainda andam aí, de um lado para o outro.”
Atingidos os 18 anos ou concluído o nível de ensino obrigatório, quem sai do ensino especial com um currículo específico individual não pode ingressar no ensino superior, mas pode ser encaminhado para emprego, formação profissional ou centro de actividades ocupacionais (CAO), uma resposta que funciona um pouco por todo o país com uma comparticipação da Segurança Social.
“Actualmente, com o aumento da esperança média de vida e do número de crianças e jovens com deficiência, todas as entidades com competência nesta área estão a trabalhar no sentido de se diversificarem as respostas e os serviços a prestar à população adulta com deficiência”, assegura a assessora de imprensa do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Têm vindo a subir o número de pessoas com incapacidade abrangidas por acordos de cooperação celebrados entre o Estado e instituições particulares de solidariedade, misericórdias e mutualidades. Em Dezembro de 2015, somavam 13.180. No final de 2011, 10.695. E o “Instituto da Segurança Social, ao nível do Orçamento Programa 2016, tem prevista a celebração/revisão de novos acordos de cooperação, o que garantirá a abrangência de mais 558 utentes”.
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Lição de vida
Presume-se que a lista de espera seja grande, mas não se sabe dizer o quanto. “As instituições são responsáveis pela inscrição dos utentes em lista de espera, pelo que o Instituto de Segurança Social não dispõe de dados”, menciona a mesma fonte. “Futuramente está previsto, no âmbito da comissão de acompanhamento, um trabalho com as IPSS no sentido de se efectuar um cruzamento dos utentes em lista de espera para as respostas sociais da área da deficiência, uma vez que haverá um número significativo de utentes inscritos em mais do que uma instituição.”
Cada um tem de ter um plano ajustado. Há quem esteja num centro a fazer actividades socialmente úteis, que poderão vir a facilitar a transição para algum programa de integração socioprofissional, e quem esteja a fazer actividades estritamente ocupacionais, que “visam manter a pessoa activa e interessada, favorecer o seu equilíbrio e bem-estar físico, emocional e social”.
“A Maria não tem capacidade para fazer qualquer actividade”, reconhece o pai. “Ela não tem noção de perigo. É capaz de pegar numa faca e de a levar à boca. O tipo de resposta que procuramos é mais de estar, de cuidar. Ela precisa de terapias que a possam ajudar a desenvolver a autonomia — a controlar a urina, a ir à casa de banho, a comer sozinha. Ela pega num copo e leva-o à boca mas tanto o pousa direito como de lado. Ela precisa de trabalhar a psicomotricidade. Também podia trabalhar algumas áreas sensoriais, de relaxamento, de postura.”
Já procurou uma solução fora da chamada rede solidária. “É muito caro”, resume. Agrada-lhe uma que custa 25 euros por cada hora de terapia. Maria experimentou. “Fazia uma terapia de manhã e outra à tarde e durante o resto do tempo tomavam conta dela. Davam-lhe um lanche. Tinha uma hora de trabalho. Davam-lhe almoço. Mais uma hora de trabalho. Davam-lhe lanche. Ia buscá-la. Ficava 50 euros por dia. A trabalhar uma hora de manhã e outra à tarde, mil euros por mês.”
Já pediu à escola para prolongar a matrícula da filha mais um ano. “Tudo depende de uma série de factores. Tudo depende das características de cada criança. Se tem mais capacidades, se não tem, em que grupo vai encaixar…” É ver. De uma coisa tem a certeza: não a vai manter fechada dentro de casa.
Nota que “há pessoas que têm vergonha de ter um filho com défice cognitivo”. Diz-lhe a experiência que muitos homens desaparecem sem olhar para trás, como fez o pai dos gémeos, há 18 anos. “Eu não tenho vergonha. Se vou jantar fora, levo a Maria. Já sei que vou ser o centro das atenções. Ela é capaz de fazer barulho. A Maria, muitas vezes, quando vamos na rua, aborda as pessoas. Se der um bocadinho de espaço, agarra a chupeta do menino que vai ao lado, puxa a carteira da senhora que vai a passar.” E, apesar de tudo, parece-lhe que Maria vai conseguindo ter alguma qualidade de vida. “Ela vive numa situação de excepção. Tem os pais unidos. Tem a família próxima. Ela é o elo. Tem sido uma lição de vida.”