O paradoxo multicultural
Em Outubro de 2010, perante um auditório de jovens, em Potsdam, Angela Merkel pronunciou um veredicto que foi ouvido e comentado em toda a Europa: “O multiculturalismo foi um absoluto falhanço”. Em boa verdade, uma parte do sentido das suas palavras perdeu-se na tradução, já que a chanceler alemã não usou o substantivo Multikulturalismus nem o adjectivo multikulturelle: o que ela disse foi Multikulti, a palavra que designa a versão exclusivamente alemã de um multiculturalismo que emergiu como ideia nos anos 70 do século passado, proveniente de sectores de uma Esquerda que defendia uma política do reconhecimento de culturas minoritárias no interior de uma cultura alemã dominante (a Alemanha só muito recentemente assumiu oficial e politicamente a condição de país de imigração). Mas ainda que se tente corrigir a tradução do veredicto de Angela Merkel estaremos sempre confrontados com o sentido muito elástico do conceito de multiculturalismo. Há diferentes tipos de sociedades multiculturais e diferentes multiculturalismos. O modelo francês de integração multicultural, baseado na ideia de uma cidadania universal que não tolera práticas culturais particularistas senão na esfera privada, não é o mesmo modelo do multiculturalismo nos países anglo-saxónicos. Recordemos que o filósofo canadiano Charles Taylor, autor de um dos textos fundadores da teoria do multiculturalismo, fez da questão do reconhecimento das identidades culturais e das particularidades dos membros de uma sociedade pluralista o operador fundamental da via americana do multiculturalismo, para a qual as especificidades culturais não são incompatíveis com o universalismo da vida política. A tese de Charles Taylor é a de que a falta de reconhecimento das minorias culturais leva-as a um ódio paralisante contra si mesmas e contra os outros. No que ao multiculturalismo diz respeito, todo o terreno conceptual e político é muito pouco seguro e quem pensa estas questões para além de todo o primarismo já sentiu certamente que não é fácil evitar a queda num paradoxo que levou Stanley Fish, um importante professor da Universidade de Illinois, em Chicago, autor de livros de teoria literária e muito presente nos media americanos, a formular a ideia de que o multiculturalismo é uma impossibilidade lógica. O texto onde desenvolveu essa tese foi publicado em 1997 na revista Critical Inquiry (e incluído depois num livro chamado The Trouble With Principle) e chama-se Boutique Multiculturalism. Segundo Stanley Fish, há dois tipos de multiculturalismo: o fraco (aquele a que ele chama “boutique”) e o forte. O multiculturalismo fraco, diz Fish, consiste numa fluida tolerância pela diversidade cultural, o seu principal argumento é o de que as diferenças são normais e que, acima delas, estão os valores que devem ter um alcance universal, tais como os do respeito incondicional pela dignidade do indivíduo e dos seus direitos. Assim, o multiculturalismo fraco, não admitindo práticas que ofendem os valores que ele considera que não podem ser relativizados, acaba por impor os seus valores, que são os valores liberais do Ocidente. Quanto ao multiculturalismo forte, se ele segue a sua lógica até ao fim acaba por apoiar práticas e princípios culturais que ofendem e anulam o que ele próprio defende. Stanley Fish mostra assim o tipo de dilema com que se debatem os dois multiculturalismos, concluindo que são ambos versões do uniculturalismo. É certo que Fish, com um intuito provocatório, roça a caricatura. Mas ele assinalou o sítio onde estamos constantemente a tropeçar.
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Em Outubro de 2010, perante um auditório de jovens, em Potsdam, Angela Merkel pronunciou um veredicto que foi ouvido e comentado em toda a Europa: “O multiculturalismo foi um absoluto falhanço”. Em boa verdade, uma parte do sentido das suas palavras perdeu-se na tradução, já que a chanceler alemã não usou o substantivo Multikulturalismus nem o adjectivo multikulturelle: o que ela disse foi Multikulti, a palavra que designa a versão exclusivamente alemã de um multiculturalismo que emergiu como ideia nos anos 70 do século passado, proveniente de sectores de uma Esquerda que defendia uma política do reconhecimento de culturas minoritárias no interior de uma cultura alemã dominante (a Alemanha só muito recentemente assumiu oficial e politicamente a condição de país de imigração). Mas ainda que se tente corrigir a tradução do veredicto de Angela Merkel estaremos sempre confrontados com o sentido muito elástico do conceito de multiculturalismo. Há diferentes tipos de sociedades multiculturais e diferentes multiculturalismos. O modelo francês de integração multicultural, baseado na ideia de uma cidadania universal que não tolera práticas culturais particularistas senão na esfera privada, não é o mesmo modelo do multiculturalismo nos países anglo-saxónicos. Recordemos que o filósofo canadiano Charles Taylor, autor de um dos textos fundadores da teoria do multiculturalismo, fez da questão do reconhecimento das identidades culturais e das particularidades dos membros de uma sociedade pluralista o operador fundamental da via americana do multiculturalismo, para a qual as especificidades culturais não são incompatíveis com o universalismo da vida política. A tese de Charles Taylor é a de que a falta de reconhecimento das minorias culturais leva-as a um ódio paralisante contra si mesmas e contra os outros. No que ao multiculturalismo diz respeito, todo o terreno conceptual e político é muito pouco seguro e quem pensa estas questões para além de todo o primarismo já sentiu certamente que não é fácil evitar a queda num paradoxo que levou Stanley Fish, um importante professor da Universidade de Illinois, em Chicago, autor de livros de teoria literária e muito presente nos media americanos, a formular a ideia de que o multiculturalismo é uma impossibilidade lógica. O texto onde desenvolveu essa tese foi publicado em 1997 na revista Critical Inquiry (e incluído depois num livro chamado The Trouble With Principle) e chama-se Boutique Multiculturalism. Segundo Stanley Fish, há dois tipos de multiculturalismo: o fraco (aquele a que ele chama “boutique”) e o forte. O multiculturalismo fraco, diz Fish, consiste numa fluida tolerância pela diversidade cultural, o seu principal argumento é o de que as diferenças são normais e que, acima delas, estão os valores que devem ter um alcance universal, tais como os do respeito incondicional pela dignidade do indivíduo e dos seus direitos. Assim, o multiculturalismo fraco, não admitindo práticas que ofendem os valores que ele considera que não podem ser relativizados, acaba por impor os seus valores, que são os valores liberais do Ocidente. Quanto ao multiculturalismo forte, se ele segue a sua lógica até ao fim acaba por apoiar práticas e princípios culturais que ofendem e anulam o que ele próprio defende. Stanley Fish mostra assim o tipo de dilema com que se debatem os dois multiculturalismos, concluindo que são ambos versões do uniculturalismo. É certo que Fish, com um intuito provocatório, roça a caricatura. Mas ele assinalou o sítio onde estamos constantemente a tropeçar.