João Pedro Rodrigues e a atracção do abismo
Um novo filme há muito aguardado, O Ornitólogo, esta semana em concurso em Locarno. Uma instalação em Vila do Conde com o cúmplice de sempre João Rui Guerra da Mata. Uma retrospectiva parisiense no final do ano. O balanço de um ano em cheio por um cineasta discreto mas dado a desafios.
Não são muitos os cineastas - portugueses ou de outras nacionalidades - que possam gabar-se de terem estado em todos os principais festivais de cinema de “classe A”. João Pedro Rodrigues, logo à primeira longa, O Fantasma (2000), entrou no concurso oficial de Veneza. Odete (2005) e Morrer como um Homem (2009) estiveram em Cannes – o primeiro na Quinzena dos Realizadores, o segundo em Un Certain Regard (e a curta Manhã de Santo António fechou a Semana da Crítica em 2012). Agora, o seu novo filme, O Ornitólogo (2016), está no concurso oficial de Locarno, como “ponta de lança” de uma “embaixada” de uma dúzia de produções ou co-produções portuguesas – é a sua segunda presença na competição suíça, depois da sua longa a meias com o companheiro e cúmplice João Rui Guerra da Mata, A Última Vez que Vi Macau (2012).
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Não são muitos os cineastas - portugueses ou de outras nacionalidades - que possam gabar-se de terem estado em todos os principais festivais de cinema de “classe A”. João Pedro Rodrigues, logo à primeira longa, O Fantasma (2000), entrou no concurso oficial de Veneza. Odete (2005) e Morrer como um Homem (2009) estiveram em Cannes – o primeiro na Quinzena dos Realizadores, o segundo em Un Certain Regard (e a curta Manhã de Santo António fechou a Semana da Crítica em 2012). Agora, o seu novo filme, O Ornitólogo (2016), está no concurso oficial de Locarno, como “ponta de lança” de uma “embaixada” de uma dúzia de produções ou co-produções portuguesas – é a sua segunda presença na competição suíça, depois da sua longa a meias com o companheiro e cúmplice João Rui Guerra da Mata, A Última Vez que Vi Macau (2012).
Some-se a isto o percurso internacional que João Pedro Rodrigues (n. 1966) tem tido ao longo da última década, com retrospectivas regulares, viagens constantes e residências artísticas (no francês Le Fresnoy ou em Harvard), para percebermos como é um dos realizadores portugueses mais respeitados no espaço cinéfilo global. Some-se também a isto a retrospectiva integral que decorrerá em Paris no final do ano a convite do Centro Pompidou, coincidindo com a estreia francesa de O Ornitólogo; isto enquanto a galeria Solar, em Vila do Conde, recebe até finais de Setembro a exposição Do Rio das Pérolas ao Ave, que, 20 anos depois da primeira curta “oficial”, Parabéns!, revê de modo lúdico toda a sua carreira.
Mas gabar-se é coisa que João Pedro Rodrigues não faz, sentado na esplanada frente ao Teatro Municipal de Vila do Conde, onde veio acompanhar a inauguração de Do Rio das Pérolas ao Ave e apresentar o programa paralelo de filmes que, com Guerra da Mata, pensou para o Curtas Vila do Conde. “Tudo isto é exterior a mim,” começa por dizer, enquanto bebe um café. “Locarno, o Pompidou, Vila do Conde – são coisas circunstanciais, calhou acontecerem com esta proximidade. Mas acho que os filmes se ligam misteriosamente uns aos outros. E também acredito que as coisas, apesar de serem completamente racionais e pensadas, ultrapassam a racionalidade. Encontro nelas uma certa lógica, por razões que não são puramente racionais. Há um lado de instinto em que estou a aprender a ter confiança. Não quero encontrar nenhuma receita para fazer os meus filmes, mas também não tento racionalizar demasiado as coisas. Esse não é o meu papel.”
O papel de João Pedro Rodrigues, então, é fazer filmes; o nosso será tentar decifrar porque é que ele os faz, e porque é que os faz assim, e porque é que eles falam deste modo a uma plateia global que o aclama repetidamente, mais do que a um público português (que, assim como assim, continua preso a uma ideia de “cinema português” que pouco ou nada tem a ver com a realidade da produção).
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Contra os sistemas
A expressão que vem à cabeça, ao longo de hora e meia de conversa, é “desafio”. Ele explica: “Sou sempre o primeiro espectador dos meus filmes, e sou um espectador que gosta de estar desconfortável. Gosto de coisas que me questionem e me provoquem, procuro uma reacção visceral, quase orgânica. Gosto muito de sentir os filmes, mas não faço filmes com uma agenda relativamente ao espectador. Não gosto de filmes que te dizem 'esta é a emoção que deves sentir, esta é a emoção que as personagens sentem', de uma forma demasiado sublinhada.”
Pensar o que os espectadores vão sentir perante os filmes de João Pedro Rodrigues é complicado, em parte porque a sua carreira se tem desmultiplicado, em parte porque nos últimos anos têm sido os seus filmes a meias com Guerra da Mata, mais lúdicos e irónicos, a terem maior visibilidade. O realizador fala das reacções a O Fantasma e à curta de 2012 O Corpo de Afonso, encomenda de Guimarães Capital da Cultura onde o realizador procura junto de culturistas galegos uma presença física para dar corpo à ideia mítica de Afonso Henriques. “Surpreende-me, por exemplo, que as pessoas achassem O Fantasma um filme provocador, quando quis fazer um filme quase inocente, à volta de uma personagem inocente, com um lado cândido. Por outro lado, O Corpo de Afonso tem algo de provocatório. Fui fazer um casting a não sei quantos galegos, porque Portugal não existia antes de Afonso Henriques, e porque o galego é uma espécie de mistura entre o português e o espanhol. E quando o filme passou pela primeira vez, não houve grande reacção...”
A ideia de “provocação”, mais do que dirigida para fora, vem no entanto da sua necessidade de se questionar a si próprio enquanto cineasta. “Tento fazer coisas em que me sinto confortável, mas questiono-me dentro desse próprio conforto,” defende Rodrigues. “Não quero encontrar um método, um sistema de fazer as coisas. Não quero fazer sempre o mesmo filme. Mas também não sei o que vem a seguir. Não tenho 30 projectos na gaveta. Tenho sempre uma coisa que me angustia muitíssimo, que é uma espécie de vazio de ideias. Mas é dessa angústia que nascem os filmes. Hesito sempre: será que vou ser capaz de fazer isto? Se calhar não vou ser capaz de fazer nada, se calhar vai ser uma porcaria…”
Vasos comunicantes
É irónico que fale de questionamento, de angústia, de dúvida, pois desde Morrer como um Homem que tem estado num período de produção constante e quase imparável, assinando ora a solo ora com o companheiro de sempre e cúmplice criativo João Rui Guerra da Mata (n. 1966). Três filmes inspirados por Macau, assinados em duo: as curtas Alvorada Vermelha (2011) e IEC Long (2015) e a longa A Última Vez que Vi Macau. Uma curta a solo, Manhã de Santo António. Três encomendas: O Corpo de Afonso; para o Curtas Vila do Conde, Mahjong (2013), assinada a meias; um fragmento a solo para o 70º aniversário do festival de Veneza em 2013. Mais a primeira curta a solo de Guerra da Mata, O Que Arde Cura (2012), onde Rodrigues era o único actor e co-argumentista. Mais uma instalação criada em 2013 para o museu sul-coreano Mimesis à volta de Manhã de Santo António, e depois adaptada para Harvard. Tudo isto durante o “momento negro” do cinema português, em que não houve quase dinheiro para filmar...
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João Rui Guerra da Mata, que assiste à conversa, ri-se: “Não parávamos de fazer coisas, quase como reacção contra [esse momento]”. João Pedro é mais prosaico. “Foram, mais uma vez, as circunstâncias. Foram filmes que fui fazendo porque tinha de fazer alguma coisa, e também porque mos encomendaram. E sempre penso que as curtas são tão difíceis como as longas, mas é uma ilusão pensar que as pessoas olham da mesma forma para elas. São sempre uma espécie de objecto menor. Dito isto, acho que estes filmes mais curtos me deram mais liberdade, até para poder experimentar. São todos bastante diferentes uns dos outros; sinto que são uma espécie de caminho feito de outros caminhos, de muitos passos, de desvios.” Sorri. “Os meus filmes são todos bastante diferentes, mas agrada-me a ideia de serem espelhos, de comunicarem de alguma forma, de haver coisas que passam uns para os outros e que voltam. Por exemplo: O Ornitólogo é um filme que volta a muitas coisas dos meus outros filmes, mas talvez seja aquele onde me senti mais livre, apesar das imensas dificuldades de produção.”
O Ornitólogo, que terá estreia mundial em Locarno na próxima semana, é um projecto de que João Pedro Rodrigues fala há muito em entrevistas. Não é por acaso. “Eu queria ser ornitólogo quando era miúdo,” explica o realizador, que tem formação em biologia, “e como as coisas em mim surgem sempre de uma forma obsessiva, a única coisa que eu fazia [nessa altura] era observar pássaros. Passávamos todos os fins de semana fora de Lisboa, na aldeia de onde o meu pai é originário, e eu queria fazer uma espécie de inventário de todas as espécies, porque há um lado qualquer científico que me interessa nas coisas, queria conhecer a fauna daquele lugar. Quando comecei a ir ao cinema, quando tinha 15 anos, comecei a ir muito obsessivamente. E uma coisa substituiu a outra. Se calhar é por isso que ele agora reaparece...”
A distância justa
Rodrigues não levantará demasiado o véu sobre o novo filme, “uma espécie de história do Santo António” como diz, co-produzida entre Portugal, França (onde já tem estreia marcada para o final do ano) e Brasil e que, pela primeira vez na sua carreira, se passa inteiramente na natureza. Mas a sua gestação e produção prolongada iluminam de algum modo o seu processo criativo. “Sei que não sou muito rápido a fazer filmes,” admite. “Muitas vezes são as circunstâncias que mo impedem. O Ornitólogo foi escrito muito depressa; tivemos o dinheiro para o fazer no último concurso antes do 'período negro', e isso foi uma das razões pelas quais demorou tanto tempo. Depois, foi complicado, como sempre, arranjar dinheiro lá fora. E teve no fundo dois momentos de rodagem: uma primeira em 2014 em que só filmei animais selvagens, e a rodagem com os actores, no Verão de 2015. Não demoro muito tempo na montagem; gosto é de ter tempo para filmar, e luto por ter tempo para filmar, e luto cada vez mais porque é cada vez mais difícil ter tempo.”
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Se a rodagem é “o momento decisivo, onde se joga tudo”, como diz, é que é na escrita do guião que as coisas se decidem. “As coisas já estão muito escritas, os meus filmes quase não mudam. No Ornitólogo, só houve uma cena que mudou de sítio – o resto ficou exactamente na sequência do guião. Mas sempre foi assim. No fundo é como se fizesse várias vezes o meu filme, e cada vez traz uma coisa diferente, entre a escrita, a filmagem e a montagem. E nas contingências do espaço físico as coisas mudam. As últimas versões do argumento, por exemplo, foram escritas a pensar em sítios específicos.”
É essa dimensão espacial que acaba por explicar os convites regulares para criar instalações artísticas. “Sempre pensei que os filmes que faço são para cinemas, não para galerias,” surpreende-se. “E quando tivemos o convite em 2012 para a Coreia, eu não sabia o que havia de fazer. Como é que podia apresentar um filme num museu, e que sentido é que podia fazer?” João Rui Guerra da Mata, responsável desde sempre pela cenografia e produção visual dos filmes e co-autor da exposição de Vila do Conde, fala da geografia do espaço - “que, a par da arquitectura, representa um factor muito importante no cinema do João Pedro. Temos primeiro de conhecer o espaço, e depois pensar o que é que podemos fazer ali, e não conseguimos desenvolver ideias até ir lá e olharmos para aquilo.”
O espaço é algo que o cinema de Rodrigues sempre procurou e explorou, como confessa o cineasta. “Há uma espécie de tique do cinema contemporâneo que é a obsessão pelo plano geral, estar tudo à distância. a câmara fixa, a distância e as personagens ao fundo. Ou então andar atrás delas com a câmara aos pulos,” diz enquanto se ri. “Isso não é no geral cinema de que eu goste. Tenho interesse em olhar o corpo que está ali à minha frente. Esse corpo é o corpo do actor, que vai interpretar uma personagem que eu criei para ele. Como é que ele se desloca no espaço? Como é que interage com os outros? A tensão de um plano também vem do modo como pões os actores a interagir num determinado espaço. O que me interessa é encontrar a distância justa. E o cinema também é feito desse contraponto entre o perto e o longe.”
A atracção do abismo
É o espaço físico e o espaço entre os filmes, então, que Do Rio das Pérolas ao Ave percorre em simultâneo, redesenhando a própria estrutura das salas do Solar de São Roque, onde a galeria está instalada, para criar pontes conceptuais entre filmes que, imprevisivelmente, “desaguam uns nos outros, como se fossem uma espécie de rio ou de delta”. “O que nos interessava,” diz Rodrigues, “era ver como apresentar estes filmes de outra forma, que ligações podíamos criar entre eles. Não me interessa só ter uma sala onde está o Corpo de Afonso a ser projectado. Era tentar pensar o que vamos fazer para transformar os filmes, para deixarem de ser só os filmes e tornarem-se uma coisa que faz parte de um ambiente onde há adereços e tudo junto faça um outro sentido”.
A resposta surgiu de modo “meio teatral”, exemplificando com uma das salas criadas na Solar, a que chamaram Identidade Nacional. “Pensámos numa espécie de revisão lúdica da masculinidade,” segundo Rodrigues, “em que confrontamos uma espécie de hiper-masculinidade com estereótipos do que é a representação da feminilidade. De um lado projectamos O Corpo de Afonso, depois temos em frente uma à outra duas fotografias que já estavam no Morrer como um Homem, da Maria Bakker [criação em travesti do actor Gonçalo Ferreira de Almeida] e outra da [transsexual] Jenny LaRue, e a réplica da espada de Afonso Henriques, como que a sair do écrã e ao mesmo tempo a dividi-lo em dois com a sombra que projecta. São imagens que passam umas através das outras ou umas sobre as outras, que criam novas imagens, novos sentidos, para nós e esperamos que também para os outros.” É também por isso que esta exposição só terá existência em Vila do Conde, onde está patente até 25 de Setembro; tudo foi pensado especificamente para o espaço da Solar, e transpô-la para outra galeria implica reconfigurá-la, torná-la noutra exposição diferente.
Guerra da Mata falava de criar na Solar “um percurso lúdico que não fosse chato, que pudesse ser playful. Nós sabemos onde queremos chegar, mas não é importante explicar, dizer «é isto porque não sei o quê». Se o público quiser tirar ilações sobre o que lá está, que o faça.” De certo modo, é essa questão de não impôr uma leitura, antes de propor desafios, que se jogou sempre no cinema de João Pedro Rodrigues. Ele já o disse, mas define-o de outro modo: “O cinema não é como a vida, é uma depuração. É uma construção. Não são só momentos a seguir a momentos, mas coisas que se articulam numa estrutura mais longa. Os meus filmes estão sempre à beira de cair no grotesco, que é a coisa que eu mais detesto, no cinema e na vida também. Mas é como se me sentisse atraído por isso, como se estivesse a olhar para o abismo. É qualquer coisa de querer arriscar, de cinema que arrisca...”