Afinal, os autores também riem

Para provar que o cinema de autor não é uma coisa chata, duas comédias muito clássicas afastam a chuva de Locarno.

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Não há ironia que resista: veio competir a Locarno um filme chamado Wet Woman in the Wind  Mulher Molhada ao Vento  no exacto dia em que a chuva e o vento se abatem sobre a cidadezinha à beira do lago Maggiore, com direito a trovoada e tudo. Ainda por cima, o título do filme fica logo explicado nos primeiros cinco minutos: está um tipo a ler um livro num cais, aparece uma miúda a andar de bicicleta que não repara que a rampa vai dar à água e pimba, água com ela. Logo a seguir, a miúda  cuja t-shirt diz "you need tissues for your issues despe-se e fica ali a espremer a água da roupa. 

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Não há ironia que resista: veio competir a Locarno um filme chamado Wet Woman in the Wind  Mulher Molhada ao Vento  no exacto dia em que a chuva e o vento se abatem sobre a cidadezinha à beira do lago Maggiore, com direito a trovoada e tudo. Ainda por cima, o título do filme fica logo explicado nos primeiros cinco minutos: está um tipo a ler um livro num cais, aparece uma miúda a andar de bicicleta que não repara que a rampa vai dar à água e pimba, água com ela. Logo a seguir, a miúda  cuja t-shirt diz "you need tissues for your issues despe-se e fica ali a espremer a água da roupa. 

Claro que já percebemos o que vai acontecer em seguida: pelo fim do filme o tipo e a miúda vão acabar juntos (na cama ou na vida para o caso pouco interessa) e o que importa são as voltas que o filme dá até lá chegarmos. É uma regra de ouro da comédia romântica e vamos fazer o favor de mandar os lugares-comuns à fava: sim, os realizadores são gente como eu e você e também gostam de rir, os festivais não passam só coisas sérias e pesadonas, e o concurso de Locarno abriu-se esta sexta-feira à comédia com Wet Woman in the Wind, do japonês Akihiko Shiota, e La Prunelle de Mes Yeux, da francesa Axelle Ropert. Dois filmes onde reconhecemos todas as marcas da comédia romântica, versão enganos e desencontros, exploradas de maneira mais convencional na fita da realizadora francesa e de modo mais desvairado pelo japonês  e, sem meias medidas, Wet Woman in the Wind é já uma das descobertas de Locarno 2016. 

Espécie de comédia sexual screwball zen-erótico-shakespeariana no meio dos bosques, o filme de Shiota conta o que se passa quando a provocadora e maliciosa Shiori aparece de repente na vida de Kosuke, um dramaturgo recluso que construiu um eremitério improvisado perto da cidadezinha onde nasceu. Libertina, libertária, ninfomaníaca, completamente bem na sua pele, Shiori é o pauzinho na engrenagem que, qual Katharine Hepburn nas Duas Feras de Howard Hawks, vem abrir ao caos o refúgio pacato e silencioso de Kosuke. Esta tigresa sensual e determinada decidiu que vai conquistar o dramaturgo dê lá por onde der, e nesse processo acaba por despoletar um frenesi sexual que se transmite aos amigos e vizinhos. O efeito desopilante de Wet Woman in the Wind vem não apenas da performance desinibida de Yuki Maniya mas sobretudo do contraste entre a sisudez que identificamos com a cultura japonesa e a libertação deste recanto escondido nos bosques onde tudo, como no Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare, parece possível  só que aqui acaba tudo na cama e a gozar dos prazeres do corpo.

Perante a invenção constante e fervilhante visível nos compactos 78 minutos do filme de Shiota, a terceira longa de Axelle Ropert empalidece forçosamente. É verdade que em parte isso é culpa da própria realizadora, que parece estar mais interessada no que se passa à margem da trama principal  como o comprova o delicioso gague recorrente do elevador –, mas é também injusto para um filme que manifesta em cada momento o seu amor pela comédia clássica. Théo e Élise conhecem-se no elevador do predio onde ambos vivem, antipatizam imediatamente um com o outro e passam o tempo a picar-se. A diferença aqui é que Élise é cega e Axelle Ropert não está nada interessada no lugar-comum cinematográfico do "cego santo"  tal como os autores de cinema não são sempre uns chatos, as pessoas com deficiências visuais também são normais e tem direito ao seu mau feitio. Irritado com esse mesmo mau feitio, Théo acaba por se fazer passar por cego ele também, as defesas de Élise baixam e está a mecânica montada para ambos caírem nos braços um do outro sob a espada de Dâmocles da verdade. 

Mélanie Bernier é absolutamente extraordinária no papel de Élise, o seu charme com o seu quê de Demi Moore transporta com uma ligeireza extraordinária o filme, e La Prunelle de Mes Yeux é uma das melhores comédias clássicas que vemos em muito tempo. Mas de Axelle Ropert, cúmplice e co-argumentista regular do grande Serge Bozon (que tem aliás um pequeno mas hilariante papel no filme como vizinho roqueiro), era legítimo esperar algo mais do que uma comédia romântica que não arrisca muito nem inventa grandemente. Ainda por cima quando um dos temas subliminares do filme é a filiação: Théo e Élise moram, respectivamente, com o irmão e a irmã, e uma trama secundária do filme tem a ver com as tentativas de Théo, neto de uma lenda da música tradicional grega, de se impor face a tal linhagem. Ropert, claramente, quer que o seu filme seja visto como uma adenda a essa genealogia da comédia, mas não lhe traz muito mais para lá dessa consciência. Já não é nada mau.