Moderno sensível

Viajar ao longo do trabalho de Belén Uriel: sensibilização e poetização do trabalho do espectador.

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As esculturas de Uriel são sensíveis, suaves, intuitivas FOTO: Teresa Santos

Belén Uriel (Madrid, 1974) é uma escultora com um trabalho onde se cruzam aspectos muito singulares da reflexão contemporânea acerca do espaço e dos objectos. A sua filiação é múltipla e expande-se desde uma interessante  — e intensa — reflexão acerca da estética do modernismo, até ao desenvolvimento de formas e situações especiais caracterizadas pela subtileza, leveza e aspecto diáfano. O contraste e jogo entre a forma moderna, herdada sobretudo do design e da arquitectura, com formas vernaculares indexadas a objectos vulgares do quotidiano, como uma toalha de mesa transformada em forma escultórica, é um dos elementos mais fortes e interessantes na exposição agora apresentada na Culturgest.

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Belén Uriel (Madrid, 1974) é uma escultora com um trabalho onde se cruzam aspectos muito singulares da reflexão contemporânea acerca do espaço e dos objectos. A sua filiação é múltipla e expande-se desde uma interessante  — e intensa — reflexão acerca da estética do modernismo, até ao desenvolvimento de formas e situações especiais caracterizadas pela subtileza, leveza e aspecto diáfano. O contraste e jogo entre a forma moderna, herdada sobretudo do design e da arquitectura, com formas vernaculares indexadas a objectos vulgares do quotidiano, como uma toalha de mesa transformada em forma escultórica, é um dos elementos mais fortes e interessantes na exposição agora apresentada na Culturgest.

A maneira como o modernismo está presente nesta exposição relaciona-se não só com a sua estética, materializada em preferências materiais e formais, mas também no modo como esse modernismo se relaciona com um programa cultural, político e filosófico que tem na arquitectura e na sua ambição dominadora e totalizante a sua melhor expressão. É importante referir esta dimensão mais profunda porque no caso de Uriel não se trata de citar formas ou deslocar uma determinada iconografia para o contexto da escultura contemporânea, mas integrar essas formas e tipologias numa reflexão acerca das dinâmicas construtivas e sensíveis da escultura.

Ou seja, nos seus trabalhos não encontramos um prolongamento da linguagem modernista adoptando o seu estilo ou ideologia, mas a partir dos seus objectos é estabelecido um diálogo crítico que transforma aqueles lugares comuns e clichés visuais: por exemplo, se a racionalidade, o funcionalismo, a artificialidade, o automatismo e o fascínio por novas materialidades (aço, vinil, vidro) são importantes características da estética modernista, as esculturas de Uriel são sensíveis, suaves, intuitivas e aos seus objectos está impossibilitada qualquer outra função que não seja escultórica (cestos virados ao contrário, perfis de cadeiras distorcidos, pneus tornados papel). Trata-se de um desvio da racionalidade e economia minimalista que a artista realiza contrapondo-lhes gestos poéticos que têm o seu locus de criação nos objectos banais e indiferenciados do quotidiano.

Estas tensões são muito claras quando se pensa na maneira como Segunda-feira, título da exposição, está organizada e no percurso proposto: na primeira sala um conjunto de cestos de roupa sobre os quais toalhas de mesa de linho compõem diversas figuras (pato, cisne, rosa, orelhas de burro, etc.), um conjunto escultórico cujo mote doméstico cria uma relação de estranheza com a parede vitral/biombo tão sofisticado que abre o espaço (virtual e físico) para um corredor onde a frieza e reflexos do alumínio são contrapostos a fotografias de interiores de casas e que intensifica o diálogo com as referências do estilo arquitectónico moderno. Depois surge uma notável série de esculturas que resgata o diálogo com uma referência tão actual e reenvia para um outro universo sensível e poético: Lama no Sapato (2004) é um conjunto de 15 esculturas em papel maché construídas a partir das marcas de diferentes pneus. Formas estas que convocam uma geometria (i.e., uma sensibilidade e um entendimento do espaço e do mundo) não racional, mas pedestre e ligada ao corpo e à sua presença, peso, expressão.

Viajar ao longo das esculturas de Belén Uriel (as mais antigas de 2012, as mais recentes de 2016) implica também uma viagem através de uma importante diversidade de materiais: linho, alumínio, ferro, vidro, papel. Esta sucessão material não é uma questão retórica, mas provoca uma alteração na percepção do espectador no sentido da sua sensibilização e poetização, ou seja, da sua intensificação. O trabalho desta artista não pode, com justiça, ser encerrado num simples diálogo com o moderno, mas é preciso reconhecer nos seus gestos uma energia dirigida à formação de experiências, linguagens e formas próprias, fortemente caracterizada por uma ideia de sensibilização das formas, da matéria e do gesto escultórico.