Sophia e Jorge de Sena vão a Locarno com Rita Azevedo Gomes
Festival suíço começa esta quarta-feira com duas longas e quatro curtas portuguesas nas competições oficiais. Correspondências tem honras de abertura.
“Estou morta por ver o que acontece,” diz Rita Azevedo Gomes com um sorriso matreiro quando evocamos a presença de Correspondências no concurso do Festival de Locarno. A sexta longa-metragem desta realizadora bissexta não é apenas (a par de O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues) uma das duas longas portuguesas na competição principal do festival suíço, centro gravitacional do cinema de autor mundial a partir desta quarta-feira e até ao próximo dia 13. É mesmo o primeiro dos 17 filmes escalados para o concurso internacional a ser exibido, na tarde de quinta-feira, dia 4 (repetindo sexta e sábado). E porque é que Rita Azevedo Gomes está “morta por ver o que acontece”? Porque Correspondências é um objecto fora de gavetas, um ensaio audiovisual sobre a correspondência que os poetas Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Jorge de Sena (1919-1978) trocaram ao longo de duas décadas.
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“Estou morta por ver o que acontece,” diz Rita Azevedo Gomes com um sorriso matreiro quando evocamos a presença de Correspondências no concurso do Festival de Locarno. A sexta longa-metragem desta realizadora bissexta não é apenas (a par de O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues) uma das duas longas portuguesas na competição principal do festival suíço, centro gravitacional do cinema de autor mundial a partir desta quarta-feira e até ao próximo dia 13. É mesmo o primeiro dos 17 filmes escalados para o concurso internacional a ser exibido, na tarde de quinta-feira, dia 4 (repetindo sexta e sábado). E porque é que Rita Azevedo Gomes está “morta por ver o que acontece”? Porque Correspondências é um objecto fora de gavetas, um ensaio audiovisual sobre a correspondência que os poetas Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Jorge de Sena (1919-1978) trocaram ao longo de duas décadas.
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“Como é que esta conversa portuguesa, de um período que nós conhecemos por dentro mas do qual lá fora não se tem bem a ideia, com dois poetas portugueses, fala aos outros?”, pergunta a cineasta, sentada numa das salas de leitura da Cinemateca Portuguesa para fugir ao calor estival. “Comecei a perceber que, se calhar, pode ser uma coisa entendida por qualquer pessoa. Não interessa muito de onde é que vêm as coisas: o que andamos a fazer desde a Grécia não varia muito. Andamos a repegar em tudo, a remexer tudo, a revolver tudo e a tentar dar as cartas de outra forma. Mas se o filme provocar curiosidade no Jorge de Sena e na Sophia, já estaremos a ganhar qualquer coisa.” <_o3a_p>
À presença de Correspondências no concurso de Locarno não será estranha a aclamação internacional obtida pelo filme anterior de Rita Azevedo Gomes (n. 1952), A Vingança de uma Mulher (2011), adaptação do conto de Barbey d’Aurevilly com Rita Durão no papel principal. Um filme que viajou por todo o mundo e que, para surpresa assumida da autora, continua a viajar (quase cinco anos depois da sua estreia, acaba de iniciar carreira comercial em Espanha) e levou até a retrospectivas internacionais da sua obra (como a de 2014 no BAFICI de Buenos Aires). Essa obra abertamente irregular nunca se “fixou” num lugar: ora esteve do lado da ficção assumida (O Som da Terra a Tremer, 1990; Frágil como o Mundo, 2001; A Vingança de uma Mulher), ora do documentário mais ou menos ensaístico (Altar, 2003; A 15ª Pedra, 2007). Quase sempre se fez em condições precárias e com orçamentos inexistentes, e foi muitas vezes difundida confidencialmente (nem O Som da Terra a Tremer nem A 15.ª Pedra tiveram estreia comercial). Sem que nenhum dos filmes pareça ser a sequência dos anteriores.<_o3a_p>
“Gosto muito de desafios, de experimentar, de descobrir como é que se faz, de tentar novas coisas”, diz Rita, como modo de explicar que, mais uma vez, Correspondências nada tem a ver com o que fez antes. “À partida, ia ser um documentário sobre as cartas e a relação entre a Sophia e o Jorge de Sena. Mas não está dentro do meu mundo fazer um filme correcto, documental. Já sabia que o ia mudar para qualquer coisa diferente. Nunca pensei ter alguém a representar a Sophia e o Jorge de Sena, e quando comecei a tentar formalizar a maneira de filmar cartas achei que ia ser uma estopada. Apetecia-me uma diversidade de materiais, com imagens tecnicamente bem feitas, outras mais toscas, e tinha uma certa saudade das cores lindíssimas do Super 8, dos carvões do preto e branco. Quis misturar isso tudo.” <_o3a_p>
Recusando a simples ilustração visual, Correspondências coloca actores, amigos, artistas e figuras públicas (não apenas portuguesas) a lerem excertos de cartas ou de poemas de Sophia e Jorge de Sena, intercalados com planos de lugares ou com evocações das suas vidas. Está mais próximo do que se chamaria “filme-ensaio”, no limiar dos “cinemas do real” ou da “não-ficção”, recordando outros objectos portugueses recentes como E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto (que recebeu o Prémio Especial do Júri em Locarno), ou João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, de Manuel Mozos. Não será um acaso: João Bénard da Costa é uma das referências maiores de Rita Azevedo Gomes (que o dirigiu como actor e o filmou em conversa com Manoel de Oliveira em A 15.ª Pedra), o filme de Mozos retira o seu título a um poema de Sophia, Pinto é um velho cúmplice da realizadora. Mas também não foi procurado, como diz Rita, que gosta de definir o seu cinema como “aberto às circunstâncias”, mais do que ao acaso. “O Quim e eu andámos [a trabalhar] um bocado em paralelo”, explica. “Ele mostrava-me aquilo que estava a fazer e eu aquilo que eu estava a fazer, mas quando se está a fazer não se pensa! Não gosto nada do sentimento de estar a fazer como outra pessoa já fez, porque isso sai sempre uma bodega, nunca vou conseguir fazer igual. Gosto muito é de experimentar, porque acho que não sei fazer. E quando não sei fazer, tenho de experimentar.”<_o3a_p>
“Experimentar”, então, é a palavra-chave para Correspondências, que, mais do que filmado, foi “sendo feito”, numa rodagem prolongada, com uma equipa mínima e improvisada ao sabor das disponibilidades e dos encontros feitos durante o processo, alternando entre grãos e resoluções diferentes, criando uma correspondência não apenas entre as palavras ditas/ouvidas e as imagens, mas também entre períodos da história portuguesa e pessoas de origens muito díspares. “Se eu pudesse, filmava sempre assim,” diz a cineasta. “Bem-estar, prazer de estar a filmar, prazer de estar com as pessoas – o cinema cria umas tensões tão grandes com os horários, os dinheiros, isto e aquilo… Nem sequer fiz um guião rígido. Não é um filme feito à toa, porque obviamente há uma selecção das cartas e dos poemas, mas a matéria gerou um mosaico que se vai justapondo."
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Rita Azevedo Gomes ri-se: “Às duas por três, era o filme que me estava a fazer a mim, porque comecei a montar não tinha ainda metade filmado, e quando na montagem este ou aquele plano não estava bem voltava ao sítio não sei quantas vezes até acertar no que queria. Mas não era muito importante o destino, era a atmosfera que era mais importante. Senti que este filme fazia correspondência entre as pessoas, que todos falávamos do mesmo. Porque a Sophia e o Sena estão a falar de nós, apesar de tudo, e das coisas que se passam pelo mundo. Aquelas cartas, aquela conversa epistolar entre ambos é um diálogo, ao longo de 20 anos. E achei que podia ser um diálogo cinematográfico.”<_o3a_p>