Ordem dos Psicólogos já tentou punir Quintino Aires, mas nunca conseguiu
Declarações de psicólogo sobre ciganos portugueses num programa da TVI geraram grande indignação.
A Ordem dos Psicólogos está a ser inundada por queixas contra Quintino Aires. A direcção considera “de extrema gravidade” as declarações que aquele psicólogo proferiu num programa da TVI sobre as comunidades ciganas e irá pedir ao seu conselho jurisdicional que as analise.
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A Ordem dos Psicólogos está a ser inundada por queixas contra Quintino Aires. A direcção considera “de extrema gravidade” as declarações que aquele psicólogo proferiu num programa da TVI sobre as comunidades ciganas e irá pedir ao seu conselho jurisdicional que as analise.
Quintino Aires é bem conhecido naquela estrutura, que já duas vezes decidiu aplicar-lhe uma pena de repreensão por declarações que violavam o código deontológico. Doutra, decidiu suspendê-lo três meses por má prática profissional. Em todas, Quintino Aires recorreu aos tribunais administrativos, não tendo os processos tido ainda um desfecho.
Na primeira vez, o psicólogo pronunciou-se sobre um concorrente de um programa da TVI que aos 26 anos ainda não iniciara a vida sexual. Aos microfones da Antena 3, aconselhou os ouvintes a recusarem “estas patologias sociais” e afirmou que a virgindade é um problema de "saúde pública".
Da segunda vez, numa entrevista que deu à revista Happy Woman, afirmou: “Fazer sexo com animais aumenta a ligação entre o ser humano e a natureza. Pelo que está claro que não devemos considerar a zoofilia uma perversão, mais sim uma celebração das nossas origens. No fundo somos todos animais.”
A terceira vez diz respeito a duas crianças acompanhadas em pedopsiquiatria. O médico receitara-lhes medicamentos e Quintino Aires aconselhou a mãe a deixar de lhos dar. Ora um psicólogo não pode prescrever nem suspender a toma de medicamentos. O sucedido pode vir a valer-lhe uma suspensão.
Agora, Quintino Aires fez generalizações sobre os cidadãos de etnia cigana. “A etnia cigana não respeita as normas do país onde vive”, disse quarta-feira no Você na TV, programa apresentado por Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira na TVI. “A maioria vive dos subsídios ou trafica droga e não trabalha”, acrescentou.
Na sexta-feira, 14 associações e três eleitos pelas associações ciganas para o Grupo Consultivo para a Integração das Comunidades Ciganas subscreveram um comunicado a dizer que as declarações de Quintino “são inadmissíveis, porquanto reproduzem preconceitos e estereótipos e promovem posições racistas”. Solicitaram à TVI que tomasse uma posição pública e à Ordem dos Psicólogos, à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial e à Entidade Reguladora para a Comunicação Social que actuassem. Este tipo de comentários podem dar origem a multa e até a pena de prisão.
A direcção da Ordem dos Psicólogos “repudia os comentários” de Quintino Aires e prepara-se para os encaminhar para o órgão estatutário com competência disciplinar. “Os psicólogos procuram no seu dia-a-dia, e através dos seus contributos específicos, criar condições para que caminhemos para uma sociedade mais inclusiva e menos preconceituosa”, adiantou o responsável pelo gabinete de comunicação, Duarte Zoio. A petição pública que reclama o afastamento do comentador juntava quase 1900 assinaturas no final desta segunda-feira. Três outras, lançadas para o defender, juntavam nove, oito e seis pessoas.
Há ciganos que omitem a sua etnia
Não há dados estatísticos que permitam fazer uma caracterização rigorosa das condições de vida dos ciganos portugueses. A Constituição não permite que a etnia figure na estatística oficial. Sabe-se que têm origem diversa (ascendência rom, sinti, manouche e calé) e diferentes tradições e estima-se que sejam entre 40 mil e 60 mil.
Há um punhado de estudos qualitativos e microlocalizados. Só um tem carácter nacional. E “grande parte do trabalho de campo desse estudo [divulgado no ano passado] foi feito em comunidades desfavorecidas”, adverte uma das autoras, Manuela Mendes. Os inquéritos foram aplicados, sobretudo, em acampamentos e bairros sociais.Também há ciganos de classe média, média alta e alta, só que esses “são mais difíceis de localizar”, não só pela sua dispersão, mas também por muitos deles preferirem omitir a etnia. “Receiam represálias” nas escolas que frequentam ou nos empregos que têm, explica. Os ciganos são um dos principais alvos de racismo e discriminação.
O abandono escolar precoce persiste, embora esteja a diminuir. E a baixa escolaridade e a falta de formação profissional têm fortes implicações no acesso ao mercado de trabalho. Na referida investigação – realizada pelo Centro de Estudos para as Migrações e Relações Interculturais da Universidade Aberta, em parceria com o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa – é pequeno o número dos que dizem ter como principal fonte de receita o trabalho (9,5%). Parte considerável da amostra (34,8%) afirma ter como principal fonte de receita o Rendimento Social de Inserção (RSI). “Uma grande percentagem trabalha, só que de forma precária”, sublinha a investigadora. Andam na apanha de marisco, na recolha de sucata ou na venda ambulante. “Muitas vezes, os lucros são pequenos e a família grande”, prossegue. Não declaram actividade para não perderem o RSI, que ajuda a compor o orçamento familiar. Só que isso não é uma particularidade dos ciganos. O subsídio é demasiado baixo, indica.
A investigação de Manuela Ivone Cunha, da Universidade do Minho, mostra uma ligação entre os bairros e as prisões. Não há, porém, associação directa entre qualquer crime e qualquer grupo, nota Sílvia Gomes, que fez uma tese de doutoramento sobre a criminalidade praticada por portugueses de etnia cigana e estrangeiros oriundos dos países do Leste europeu e dos países africanos de língua oficial portuguesa. O tráfico de drogas era o crime mais comum naqueles grupos, mas também na população em geral.
Os ciganos representam cerca de 5% da população prisional em Portugal, esclarece ainda Sílvia Gomes, que faz parte do Observatório das Comunidades Ciganas. Muitos moram nas zonas mais acossadas pelas autoridades. Funcionam dentro de uma lógica de família alargada. Há uma rusga e vão "20 ou 30" para a prisão. E poucos podem contratar um advogado. Ficam dependentes de defensores oficiosos.