Mariko Mori encontrou a cachoeira dos seus sonhos no Brasil. E deu-lhe um anel
O que acontece quando uma artista japonesa encontra uma comunidade pobre brasileira, à beira de uma estrada popularizada por Roberto Carlos?
A japonesa Mariko Mori tem mostrado o seu trabalho em alguns dos principais museus do mundo inteiro, mas hoje ela procura instalar a sua arte no meio da natureza, de preferência, em lugares remotos e intocados. A cachoeira Véu da Noiva pode não ser intocada - afinal, os caminhos que levam a ela passam por favelas encaixadas na floresta tropical da Tijuca - nem tão remota assim, ainda que seja preciso viajar uma hora e meia de carro do Rio de Janeiro para chegar. Mas durante mais de 40 anos, desde que as suas famílias se fixaram ali, os moradores de Cachoeira I e Cachoeira II nunca viram ninguém, muito menos uma artista internacional, lembrar-se de fazer alguma coisa naquele lugar. Habituaram-se a ser um ponto invisível na estrada de Santos - popularizada numa canção ié-ié de Roberto Carlos - a caminho de destinos como Angra dos Reis e Paraty, onde milionários possuem as suas próprias ilhas.
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A japonesa Mariko Mori tem mostrado o seu trabalho em alguns dos principais museus do mundo inteiro, mas hoje ela procura instalar a sua arte no meio da natureza, de preferência, em lugares remotos e intocados. A cachoeira Véu da Noiva pode não ser intocada - afinal, os caminhos que levam a ela passam por favelas encaixadas na floresta tropical da Tijuca - nem tão remota assim, ainda que seja preciso viajar uma hora e meia de carro do Rio de Janeiro para chegar. Mas durante mais de 40 anos, desde que as suas famílias se fixaram ali, os moradores de Cachoeira I e Cachoeira II nunca viram ninguém, muito menos uma artista internacional, lembrar-se de fazer alguma coisa naquele lugar. Habituaram-se a ser um ponto invisível na estrada de Santos - popularizada numa canção ié-ié de Roberto Carlos - a caminho de destinos como Angra dos Reis e Paraty, onde milionários possuem as suas próprias ilhas.
Mas isso pode mudar dentro de pouco tempo, quando Mariko Mori terminar o que veio fazer ali: pôr um anel no lugar - mais exactamente no alto da queda de água. A artista concebeu um anel imenso em acrílico, com três metros de diâmetro e duas toneladas de peso, que, uma vez instalado, parecerá flutuar sobre a cachoeira. A aparência da peça, intitulada Ring: One With Nature, dependerá da posição do sol: um tom azulado, quando a luz do sol bater de frente, dourado quando for iluminada por trás. Durante o solstício de Inverno, a 21 de Junho, o sol estará alinhado no centro do anel. De noite, o anel permanecerá escuro. Mas vai certamente avistar-se da estrada de Santos. “Isso aqui vai ser o vosso Corcovado”, promete um arquitecto paisagista ligado ao projecto numa apresentação aos moradores.
A inauguração será esta terça-feira, três dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Por causa da sua forma circular, semelhante aos anéis que formam o símbolo olímpico, Ring foi incluído na programação cultural dos Jogos e financiado por um dos patrocinadores oficiais do evento, a também japonesa Nissan. O envolvimento de Mariko Mori com as Olimpíadas não ficará por aí. Ela também irá carregar a tocha olímpica, quando esta chegar ao Rio de Janeiro, simbolizando um ritual de passagem: a próxima cidade a acolher os Jogos, em 2020, será Tóquio, onde Mori nasceu há 48 anos.
O anel é uma das seis esculturas que a artista pretende instalar no meio da natureza em cada continente, incluindo América do Norte. A primeira foi inaugurada em 2011 na ilha japonesa de Miyako, próxima da cidade de Okinawa. Usando o mesmo acrílico que serviu de matéria para Ring, Mori ergueu um pilar no meio do mar, evocativo dos pré-históricos menires. Até então, Mori era sobretudo conhecida por se fotografar a si mesma vestida como uma gueixa moderna ou uma boneca animé, desencadeando comparações com Cindy Sherman. Mas o seu trabalho artístico deu uma reviravolta depois de um projecto que a levou a visitar uma série de lugares ancestrais e sagrados, como Machu Picchu, no Peru, as pirâmides de Gizé, Stonehenge e Angkor Wat, no Cambodja. Em 2010, ela criou a Fundação Faou com a missão de promover a consciência ambiental através da arte e financiar as suas instalações site-specific em paisagens naturais. “Eu queria continuar a tradição dos nossos antepassados remotos de honrar a natureza e criar algo que simbolizasse a conexão entre a natureza e o ser humano”, diz a artista. “A nossa sociedade contemporânea está totalmente virada para a cidade e para a indústria. As pessoas vivem desconectadas da natureza”, prossegue Mori, que divide a sua vida entre Nova Iorque e Londres. Ela espera que, ao visitarem obras como Ring, as pessoas redescubram uma ligação forte com a natureza. “Gostava que isso inspirasse outros artistas a fazerem o mesmo para contribuir com o seu trabalho para proteger a natureza e promover uma consciência ecológica.”
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Num sábado de manhã em Julho, Mariko Mori visitou a comunidade em torno da cachoeira Véu da Noiva para fazer uma apresentação pública de Ring. Cabia à autarquia local, de Mangaratiba, informar a população sobre o projecto e o encontro com a artista, mas à hora marcada não havia ninguém. Uma tenda de lona branca fora montada especialmente para o efeito num terreiro à entrada de Cachoeira II, próximo de uma pilha de entulho. Alguns moradores olhavam à distância, com curiosidade, mas sem se aproximar. Mori decidiu subir até ao topo da cachoeira, para ver o progresso dos trabalhos de engenharia. A peça pode ser um produto da tecnologia japonesa mais avançada, mas naquele momento a sua realização dependia de algo bem ancestral: uma fila de burros galgava o íngreme caminho de chão e pedras, carregando sacos de areia até ao pico da cachoeira. Os sacos estavam a ser usados para montar uma barragem provisória enquanto os trabalhos de instalação durassem. Mori perguntou quantas vezes os burros subiam a encosta com os sacos de areia. “Três antes de almoço e três depois”, responderam.
Uma câmara seguia todos os passos de Mori. A artista japonesa é uma das personagens do novo filme do realizador português Miguel Gonçalves Mendes, em rodagem há três anos e com estreia prevista para Junho de 2018. O Sentido da Vida não é menos que ambicioso: uma volta ao mundo que enlaça sete histórias paralelas (o realizador descreve-o como “uma espécie de Magnólia dos documentários”), com protagonistas reais, incluindo o astronauta dinamarquês Andreas Mogensen, o juiz espanhol Baltasar Garzón, o escritor português Valter Hugo Mãe e, claro, Mariko Mori. Inicialmente, o realizador tivera outra japonesa em mente para o filme, a figurinista de Ran, de Akira Kurosawa, Emi Wada, vencedora de um Óscar. Mas concluiu que devia ter alguém que representasse “um Japão mais contemporâneo, em contacto com o Ocidente, e não um Japão fechado sobre si mesmo”. “Interessava-me uma figura que tivesse uma mundividência. As personagens do filme estão em rede, estão permanentemente em trânsito”, explica Miguel Gonçalves Mendes, autor de documentários sobre Mário Cesariny e José Saramago (José e Pilar). “Como o trabalho da Mariko é altamente futurista e minimalista, ela fazia uma ponte perfeita com o astronauta. Isso permitia-nos ter um universo cósmico, não só lá em cima, no espaço, mas, no caso dela, numa coisa mais New Age, que é a tentativa de restaurar uma quase religiosidade da relação da arte com o ser humano. É isso que ela defende para o trabalho dela: uma espécie de regresso ao estado natural em que os seres humanos não estavam divididos nem por tribos, nem por países, nem por nada, e em que existia uma quase divinização da natureza.”
Mori veste-se exclusivamente de branco. Não só a roupa e os ténis são brancos, mas também a mala, o relógio e o iPhone. Ela diz que começou a vestir-se assim depois de ter produzido uma instalação intitulada Dream Temple, de 1998: uma cápsula de vidro inspirada num templo japonês de meditação budista com um interior puramente branco, onde os visitantes eram convidados a permanecer e ter uma experiência implicitamente espiritual. “Esse meu trabalho foi tão marcante para mim que comecei a vestir-me de branco”, conta. “E depois, tornou-se uma coisa muito prática, porque viajo bastante e é mais fácil escolher uma única cor. Não preciso de trazer tanta roupa na mala porque tudo combina com tudo. Só preciso de dois pares de sapatos, umas calças e um lenço”, ri-se. O cabelo preto está impecavelmente preso em dois coques, como a Princesa Leia. Quando Mariko surge para o encontro com os moradores de Cachoeira, uma adolescente mulata fixa os olhos verdes nela, como se visse uma aparição, e comenta: “Ela é bonita”. Uma mulher chega perto da artista e pede para tirar uma fotografia com ela num inglês lacónico. “One selfie, please.”
Não vieram muitos moradores, são menos de 20. Mori trouxe dois vídeos para mostrar, mas o fornecedor da prefeitura de Mangaratiba não entregou a aparelhagem de som. “Tela para projectar até temos aí, fomos buscá-la longe, a três horas daqui…”, desculpa-se o assessor de comunicação da autarquia Jupy Junior. Sentada de frente para o grupo, debaixo da tenda branca, Mariko Mori pede para os moradores aproximarem-se mais porque está com problemas de voz. Fala em inglês e é traduzida por Jupy. Começa por explicar que Ring é fruto de um sonho que teve há sete anos, em que viu uma auréola dourada no topo de uma cascata. “Eu não conseguia perceber se era magia ou um fenómeno natural”, recorda a artista ao PÚBLICO. “Resolvi subir ao topo de cascata para tentar entender como aquilo tinha acontecido. E, claro, acordei precisamente nesse momento. Lembro-me como se fosse um filme.” Em 2011, quando montou uma exposição em Brasília, que depois seguiu para o Rio de Janeiro (onde atingiu meio milhão de visitantes) e São Paulo, Mariko Mori lembrou-se do sonho. “A montagem da exposição em Brasília acabou um dia mais cedo do que o previsto e o curador perguntou-me o que eu gostaria de fazer. Pedi para me levarem a uma cachoeira. Foi uma experiência incrível, mas não era nada parecida com a do meu sonho. Depois descobri que no Brasil existem belas cachoeiras em toda a parte”, ri-se.
"Choque cultural"
A primeira escolha foi Visconde de Mauá, a três horas do Rio de Janeiro, mas quando o projecto começou a ser discutido com a equipa de programação cultural dos Jogos Olímpicos, em 2014, pediram a Mori que escolhesse uma localização mais próxima e deram-lhe uma lista de cachoeiras. Em Dezembro do ano passado, a artista deu entrevistas à imprensa brasileira, anunciando que a instalação seria em Petrópolis. Mas em Março, já depois de fazer os estudos de engenharia e topográficos do local, descobriu-se que essa cachoeira fazia parte de uma propriedade privada. “Parece-me que no Brasil o que é público às vezes acaba por ser privado. É uma zona cinzenta. Eu não estava ciente dessa tradição”, ri-se. Miguel Gonçalves Mendes diz que uma das coisas que pretende explorar no seu filme é o “choque cultural” que se dá quando Mariko, “que vem de uma sociedade absolutamente organizada, rígida, metódica, em que nada falha, em que se marca um encontro e a regra não é chegar a horas, é chegar meia hora antes”, se confronta com “um Brasil mais relaxado, mais livre”, mais imprevisível. “Trabalhar no Brasil tem sido um desafio porque as regras e o sistema são muito diferentes do Japão, dos Estados Unidos ou da Europa”, diz Mariko. “Eu também não tinha nenhumas conexões políticas. Não sabia por onde começar. Acho que foi por isso que levou cinco anos”, ri-se.
Quando Petrópolis deixou de ser uma possibilidade, a artista, que não estava no Brasil, procurou outras cachoeiras no Google Earth. Até se decidir por Véu da Noiva, ela terá pesquisado cerca de meia centena de cachoeiras. No encontro com os moradores, Mori abriu um álbum no colo com fotografias do processo de fabrico e montagem do anel no Japão. A peça foi feita numa fábrica que produz acrílico que é usado em aquários. O anel foi cortado numa máquina especialmente concebida para o efeito. A peça demorou um mês a chegar ao Brasil, de barco. Mori anunciou que o anel era um presente seu para a comunidade. “Queremos que venham pessoas visitar e que se conectem com a natureza através da obra. Mas as pessoas que moram perto são as que vão ter de viver com ela. Na ilha de Miyako, as pessoas não sabiam o que esperar no início. Mas depois a minha peça começou a fazer parte da vida delas. Os pescadores vêem-na o tempo todo e vêem como a luz e as cores mudam…”
Alguns moradores lamentaram não terem sido consultados antes de o projecto ter sido iniciado. Mas a maioria expôs dúvidas concretas. Será que os moradores não deveriam receber algum tipo de preparação para receber os turistas? A prefeitura tinha algum plano para preservar o local? “Hoje o fluxo de turistas é pouco, mas vai triplicar”, disse uma moradora, Jovelina Marques. “A prefeitura não faz recolha de lixo no Véu da Noiva nem no mato à volta. Eu já tirei lixo de lá. Nós sabemos dos problemas com despachos de macumba, que são proibidos mas isso não é respeitado.” (O despacho de macumba é um ritual praticado em religiões como o candomblé e o umbanda que consiste numa oferenda a uma divindade envolvendo velas, pratos com comida, bebidas ou galinhas sacrificadas.)
“Todos os questionamentos que os moradores fizeram eram altamente articulados e assertivos”, nota Miguel Gonçalves Mendes. “Eles sabiam exactamente o que queriam, não queriam ser considerados bonecos nas mãos de outros, não queriam que se fizesse uma maquilhagem aldrabona da comunidade. O discurso deles obrigou a prefeitura a confrontar-se com a realidade. Há uma série de coisas que não foram pensadas. Mas, infelizmente, também foi tudo em cima da hora.”
Miguel está optimista. “Para mim, uma das funções da arte é o lado contributivo, o lado transformador. Aquilo vai trazer muita gente a visitar a região, que ainda por cima é deficitária em termos de bandeiras turísticas. Como é que esta obra será vista no futuro? Se calhar, é como o Cristo Redentor é visto agora. Se isto transformar aquela comunidade, venham mais mil obras de arte para transformar o Brasil inteiro.”