Espetadores flutuantes
Nos últimos anos, por força da cruzada malaquista, foram suprimidos muitos milhões de "c" da ortografia portuguesa sem que tenha havido grandes indignações, com as honrosas excepções do costume.
No dia 28 de Julho, o PÚBLICO cedeu cópia da sua capa (com o devido sinal de PUB) para uma acção médica destinada a alertar os portugueses para os perigos da hepatite C e as formas de a combater. Nessa cópia, que envolveu o jornal (escondendo a capa verdadeira), foram suprimidas todas as letras "c". Apesar da bondade do objectivo, houve reacções indignadas. "Suprimir letras assim, francamente!" Ora nos últimos anos, por força da cruzada malaquista, foram suprimidos muitos milhões de "c" da ortografia portuguesa sem que tenha havido grandes indignações, com as honrosas excepções do costume. Claro que há uns "c" flutuantes e isso talvez ajude. Por exemplo, os espectadores só perdem o "c" de vez em quando, transformando-se em espetadores intermitentes. Sector idem, surgindo às vezes num mesmo texto com ambas as grafias, sector e "setor". Carácter, ainda assim, é das palavras mais poupadas aos cortes (não confundir com multas ou sanções): mesmo os fanáticos da nova ortografia escrevem carácter (ou simplesmente o "corretor" não os emenda, porque este é um dos muitos casos em que se admite dupla grafia), não se importando de, à frente, escrever "caraterizado". Um exemplo deste tira-não-tira é a própria sobrecapa a que aludimos no início do texto. Na segunda página lê-se duas vezes (correctamente) infectados; na quarta página, porém, lemos "infeção", "ação" e "atue". Isto há-de explicar-se pelo caos reinante: não temos a "antiga ortografia" nem a pretensamente "nova", mas sim uma salada inominável em que cada vez menos gente sabe como escreve e porquê, a começar no catedrático e a acabar no vulgar cidadão. No meio desta triste trapalhada, vem o ministro da Cultura dizer que não escreve com o acordo ortográfico de 1990 mas não se importa com o que os seus editores decidam. A ortografia é uma convenção, diz ele, e esta está em vigor. É verdade: é uma convenção — péssima. E está em vigor… relativamente, pois foi imposta por resoluções do conselho de ministros, não por lei. Por lei, vigora a "antiga ortografia", onde um espetador espeta, não assiste.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No dia 28 de Julho, o PÚBLICO cedeu cópia da sua capa (com o devido sinal de PUB) para uma acção médica destinada a alertar os portugueses para os perigos da hepatite C e as formas de a combater. Nessa cópia, que envolveu o jornal (escondendo a capa verdadeira), foram suprimidas todas as letras "c". Apesar da bondade do objectivo, houve reacções indignadas. "Suprimir letras assim, francamente!" Ora nos últimos anos, por força da cruzada malaquista, foram suprimidos muitos milhões de "c" da ortografia portuguesa sem que tenha havido grandes indignações, com as honrosas excepções do costume. Claro que há uns "c" flutuantes e isso talvez ajude. Por exemplo, os espectadores só perdem o "c" de vez em quando, transformando-se em espetadores intermitentes. Sector idem, surgindo às vezes num mesmo texto com ambas as grafias, sector e "setor". Carácter, ainda assim, é das palavras mais poupadas aos cortes (não confundir com multas ou sanções): mesmo os fanáticos da nova ortografia escrevem carácter (ou simplesmente o "corretor" não os emenda, porque este é um dos muitos casos em que se admite dupla grafia), não se importando de, à frente, escrever "caraterizado". Um exemplo deste tira-não-tira é a própria sobrecapa a que aludimos no início do texto. Na segunda página lê-se duas vezes (correctamente) infectados; na quarta página, porém, lemos "infeção", "ação" e "atue". Isto há-de explicar-se pelo caos reinante: não temos a "antiga ortografia" nem a pretensamente "nova", mas sim uma salada inominável em que cada vez menos gente sabe como escreve e porquê, a começar no catedrático e a acabar no vulgar cidadão. No meio desta triste trapalhada, vem o ministro da Cultura dizer que não escreve com o acordo ortográfico de 1990 mas não se importa com o que os seus editores decidam. A ortografia é uma convenção, diz ele, e esta está em vigor. É verdade: é uma convenção — péssima. E está em vigor… relativamente, pois foi imposta por resoluções do conselho de ministros, não por lei. Por lei, vigora a "antiga ortografia", onde um espetador espeta, não assiste.