Fumaça Preta: mapa musical da desordem

Aterra sexta-feira no FMM, em Sines, a banda de gloriosa demência musical de Alex Figueira. Os Fumaça Preta são uma viagem infernal à América do Sul, uma resposta à vida organizada e calculada em Amesterdão.

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Alex Figueira deixou a Venezuela há 17 anos. Alex Figueira deixou Portugal há 10 anos. Alex Figueira vive em Amesterdão desde que deixou Portugal. E há muito que se diagnosticou “uma crise de pertença e de identidade”. “Sinto-me integrado, mas sinto que não faço parte”, confessa ao Ípsilon. Neste lugar em que vive, “onde tudo é feito de maneira organizada, tudo é planeado, tudo é premeditado, preparado e calculado”, ao contrário das experiências que trazia das suas vidas anteriores (não falamos de reencarnação nem de espiritismo, mas das passagens por Venezuela e Portugal). A música de Fumaça Preta, grupo criado quando Alex decidiu transformar em estúdio uma garagem na rua atrás daquela em que vive, é uma resposta clara ao seu quotidiano: feita de uma desordem e de uma loucura que contrariam a forma regrada como passa os seus dias, assente numa ansiedade em que cada som, cada palavra e cada grito são impressos com absoluta urgência.

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Alex Figueira deixou a Venezuela há 17 anos. Alex Figueira deixou Portugal há 10 anos. Alex Figueira vive em Amesterdão desde que deixou Portugal. E há muito que se diagnosticou “uma crise de pertença e de identidade”. “Sinto-me integrado, mas sinto que não faço parte”, confessa ao Ípsilon. Neste lugar em que vive, “onde tudo é feito de maneira organizada, tudo é planeado, tudo é premeditado, preparado e calculado”, ao contrário das experiências que trazia das suas vidas anteriores (não falamos de reencarnação nem de espiritismo, mas das passagens por Venezuela e Portugal). A música de Fumaça Preta, grupo criado quando Alex decidiu transformar em estúdio uma garagem na rua atrás daquela em que vive, é uma resposta clara ao seu quotidiano: feita de uma desordem e de uma loucura que contrariam a forma regrada como passa os seus dias, assente numa ansiedade em que cada som, cada palavra e cada grito são impressos com absoluta urgência.

Saído tanto da Venezuela como de Portugal zangado com os países, Alex Figueira não precisa de terapia de casal para perceber na sua relação com a Holanda uma falha no “grau de reciprocidade”. Daí que a sua resposta, desde que fundou a sua editora Music with Soul e convidou os músicos ingleses Stuart Carter e James Porch (o duo The Grits) a gravar consigo, se tenha construído sobre um olhar para trás, para os seus tempos formativos como músico e melómano, num reforço da constatação de que é a língua aquilo de que sente mais falta de ambos os lugares de onde vem. Depois da saída do vocalista Joel Stones (residente em Nova Iorque), Alex tomou conta não apenas das percussões incendiárias mas também de vocalizações possuídas, como se estivesse sempre à margem da consciência, em espanhol ou português (de sotaque brasileiro). Dir-se-ia que esta música existe apenas numa visão do Inferno forjada durante uma alucinação.

Quase tudo se intui aqui: desde que se deixou da regra obsessiva de apenas ouvir música anterior a 1982 (ainda que a sombra das guitarras de Black Sabbath ou Deep Purple atiradas para uma selva zonza de mescalina não esteja exactamente mascarada e a sua preferência confessa acerte em cheio nas décadas de 60 e 70), a dieta musical do luso-venezuelano passa sobretudo por “muita música em espanhol e em português, muita coisa dos PALOP”. “Não sinto grande atracção por música cantada em inglês”, diz. “Os meus companheiros já me tentaram persuadir para cantar em inglês mas eu disse-lhes para esquecerem. Não vou dizer que nunca acontecerá, mas neste momento não tenho grande motivação. Acho a língua pobre, muito limitada e pouco atractiva poeticamente.”

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A música de Fumaça Preta é uma resposta clara ao seu quotidiano: desordem e loucura

Com uma declarada aversão a tudo quanto soe moderno, digital e limpo, a selvajaria sonora dos Fumaça Preta localiza-se em dificuldade na América Latina actual de bandas como Meridian Brothers ou Sonido Gallo Negro. “Os Meridian Brothers”, confirma Alex, “são uma das minhas bandas preferidas de todos os tempos, uma malta genial. Também sinto a necessidade de me identificar com música da minha geração. Acho infinitamente frustrante as minhas bandas favoritas já não existirem ou serem de gajos que andam a tocar agora com 70 anos e que não conseguem sequer interpretar aquilo à velocidade que é suposto.”

Só que o GPS musical fica atarantado com a heterogeneidade que nunca se deixa caçar pela armadilha do pastiche. “Acho que isso acontece porque isto não é um gajo que saiu da América do Sul e caiu aqui de pára-quedas a gravar com dois ingleses que nunca estiveram lá. Há aqui um ponto de encontro que não é muito específico. Claro que entrámos no estúdio sabendo que todos gostamos muito de rock psicadélico, metal antigo, electrónica antiga… Agora, a componente mais percussiva, africana e sul-americana, vem mais pela minha influência. Mas nunca nos juntámos com o pretexto de tocar rock psicadélico, samba ou cumbia. Isto aconteceu espontaneamente.” E continua a acontecer. Impuros Fanáticos, segundo álbum do grupo gravado para a Sondway Records, não tem como não soar a tudo isto atirado para dentro de um caldeirão fervente de magia negra. Comprovem-no esta sexta-feira, no FMM Sines.

Psicadélicos são os índios

Apesar da clara identificação com aquilo que fazem os Meridian Brothers – mais as milhentas bandas com que Eblis Álvarez ocupa os seus dias, dos Chupame el Dedo aos Los Piranãs, que actuam também no FMM este sábado –, Alex Figueira diz-se frustrado por não encontrar muitos exemplos de música actual nos quais se reveja, não apenas em termos estritamente estilísticos, mas também na abordagem à música. E desabafa a sua inveja perante a forma como os anos 60 e 70 foram vividos no Brasil. “Já li bastantes livros e vi filmes sobre a questão tropicalista e é algo que sempre me despertou muita curiosidade, admiração e até uma certa inveja pela característica de movimento. Aquela música foi o que foi porque não eram só quatro gajos a tocar – eram muitos gajos a fazer música, um maestro de orquestra, tipos que faziam capas, poetas, fotógrafos, realizadores de cinema e sei lá mais o quê. E quando se ouve os discos, ouve-se a sensação de grupo, de criação em conjunto. Sinto que poderia ser mais interessante ou prolífico se houvesse uma espécie de movimento.”

Desde que o movimento não passasse por juntar os Fumaça Preta a toda a sorte de bandas de rock psicadélico em transumância pelo mundo. Alex, espantado pela forma como os seus discos são encontráveis nas lojas em secções tão díspares quanto metal, música brasileira, world music ou até electrónica – “Não sei se hei-de ficar lisonjeado, confuso ou indignado”, comenta, acrescentando que não consegue imaginar algo mais deprimente para a sua música do que “ser encaixada num segmento e por aí ficar para o resto da vida” –, não entende a ideia predominante na Europa de que o psicadelismo corresponde a “quatro gajos com duas guitarras, baixo e bateria a olhar para o chão, a meter um delay que nunca mais acaba e a tocar no mesmo 4/4 que andamos há 50 anos a ouvir”.

Não é que os Fumaça Preta não cedam aqui e ali ao compasso quadrado do rock, tão estafado que mal se tem em pé, mas entende que o psicadelismo vai muito além disso. E que, na verdade, preferiria mil vezes tocar ao lado de uns “índios brasileiros, com roupa autóctone, flautas nunca antes vistas e a fazer barulhos completamente estranhos” do que partilhar a mesma noite com a matilha das guitarras e dos pedais de delay. O seu transe, acredita, está mais perto dos índios. Ou, como acontecerá no FMM, dos chaabi eléctrico do egípcio Islam Chipsy.