A audácia, as diabruras, a perversidade e a queda de Barry Lyndon

Com a história deste irlandês, que ferve no seu desejo de fazer frente a quem quer que o impeça de singrar, William Makepeace Thackeray procurou contrariar a demagogia idealizadora da ficção do seu tempo, que tendia a embelezar em vez de representar fielmente a figura do marginal e do fora-da-lei.

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Durante a época vitoriana, William Makepeace Thackeray e Charles Dickens representaram o papel principal no superpovoado palco da ficção narrativa. Ainda que ambos fossem filhos do seu tempo e escrevessem para entreter uma ascendente classe média, cada um fazia-o através de processos distintos e em obediência a diferentes modelos socioculturais. Ao sentimentalismo conciliador de Dickens contrapunha-se o cinismo, a frieza de Thackeray. Num passo que se tornou paradigmático – e que simboliza, de certo modo, a clivagem entre os dois gigantes das letras –, Harriet Marian (“Minnie”), filha mais nova de Thackeray, terá um dia erguido os olhos da história que lia para lhe perguntar: “Papá, porque não escreve livros como Nicholas Nickleby?” Se quiséssemos esquematizar genealogias literárias, é como se Dickens tivesse de ser entendido como um herdeiro, domesticado e suavizado, do romantismo, e Thackeray fosse um releitor do espírito racional e irónico, burlesco e anti-sentimental do século XVIII.

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Durante a época vitoriana, William Makepeace Thackeray e Charles Dickens representaram o papel principal no superpovoado palco da ficção narrativa. Ainda que ambos fossem filhos do seu tempo e escrevessem para entreter uma ascendente classe média, cada um fazia-o através de processos distintos e em obediência a diferentes modelos socioculturais. Ao sentimentalismo conciliador de Dickens contrapunha-se o cinismo, a frieza de Thackeray. Num passo que se tornou paradigmático – e que simboliza, de certo modo, a clivagem entre os dois gigantes das letras –, Harriet Marian (“Minnie”), filha mais nova de Thackeray, terá um dia erguido os olhos da história que lia para lhe perguntar: “Papá, porque não escreve livros como Nicholas Nickleby?” Se quiséssemos esquematizar genealogias literárias, é como se Dickens tivesse de ser entendido como um herdeiro, domesticado e suavizado, do romantismo, e Thackeray fosse um releitor do espírito racional e irónico, burlesco e anti-sentimental do século XVIII.

William Makepeace Thackeray era apenas um ano mais velho do que Charles Dickens, mas entre os dois escritores havia todo o abismo do muito inglês sistema de classes. Dickens provinha, quando muito, da mais ínfima burguesia; Thackeray pertencia à classe dominante. Por muito que toda a sua vida tivesse constituído um esforço para contrariar o espartilho classista, é difícil não ver no Livro dos Snobs (que teve edição portuguesa: Guerra & Paz, 2009) um resumo da sua biografia. Tanto mais que o subtítulo original daquele livro era “Escrito por um deles”. Na sua família, houvera um reitor do (exclusivíssimo) colégio de Harrow, o bisavô Thomas Thackeray; o avô paterno foi cirurgião em Cambridge, e houve um tio médico. Thackeray era ainda familiar do General John Richmond Webb, que o autor tornaria personagem do seu romance The History of Henry Esmond, onde é descrito como “galante guerreiro”.

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Barry entra em duelos por arrogância, não em defesa da honra; alista-se numa diversidade de exércitos contrários para vencer a sua própria guerra, não para honrar qualquer pátria

Thackeray havia mesmo de escolher para si o brasão de família dos Webbs, por considerá-lo “mais bonito e mais antigo”. Além disso, teriam sido os Webbs, segundo disse, a introduzir o “espírito… na família”, que, de resto, seria “simples, séria”. A família de Thackeray tinha ligações antigas à Índia. Tanto o seu pai como o avô materno haviam sido funcionários da Companhia das Índias. De resto, William nasceu em Calcutá, e apenas aos cinco anos, por morte do pai, foi enviado para Inglaterra, onde frequentou um colégio em Southampton (“governado por um horrível tiranete, que tornava as nossas vidas tão infelizes”) e outro em Chiswick, antes de ingressar na reputada Charterhouse School, onde a sua miopia o tornava imprestável para os jogos.

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O que nunca foi compensado por brilhantes resultados académicos (apesar de progressos assinaláveis, com o decorrer dos anos). Como da sua personagem Arthur Pendennis, poderia dizer-se dele que, “em rapaz, não foi, de maneira nenhuma, notável, nem como ignorante, nem como sábio”. Thackeray havia de transformar aquela escola na terrível Greyfriars que ensombra livros como Pendennis ou The Adventures of Philip. Da passagem por Cambridge, cuja universidade abandonou muito antes de se licenciar, terá tirado apenas dois pontos a seu favor. Um foi o conhecimento de Tennyson (testemunha do episódio em que a filha de Thackeray lamenta que o pai não escrevesse como Dickens) e, sobretudo, de Edward FitzGerald (que ganharia fama como o primeiro tradutor inglês de Omar Khayyam); outro, a sua iniciação na escrita jornalística, que viria a tornar-se o seu principal meio de subsistência. Entretanto, em sucessivas estadias francesas, apura a técnica artística na pintura e no desenho (ilustrador de algumas das suas obras), que considerou, em mais de um momento, a sua verdadeira vocação. Anne Thackeray Ritchie escreveria, em Chapters from some Memoirs: “Creio que ficava sempre feliz quando podia trocar a tinta das canetas pela dos pincéis”.

Segundo a prática corrente de então, Barry Lyndon foi primeiramente serializado num periódico – Fraser’s Magazine –, ao longo do ano de 1844. É um romance escrito na tradição picaresca de Tobias Smollett (The Adventures of Peregrine Pickle foi um dos livros que Thackeray foi lendo, à media que escrevia Barry Lyndon) e Henry Fielding, especialmente do seu Jonathan Wild. “Que maravilhosa arte!”, escrevia Thackeray a propósito de Fielding, em The English Humourists. “Que admirável dom da natureza, aquele com que foi agraciado o autor destas histórias.”

Por uma referência do Barry-narrador à Guerra Peninsular – “Agora, os mancebos que estão ocupados a cortar o pescoço aos franceses em Espanha e França, a dormir no acampamento, a comer a vaca e as bolachas das rações de combate, não compreenderiam a vida que os seus antepassados levavam. ” (Memórias de Barry Lyndon do Reino da Irlanda, tradução de Isabel Braga, Perspectivas e Realidades, 1977) –, ficamos a saber que a ficcional redacção das memórias de Lyndon teria decorrido entre 1813 e 1814. Todavia, a maioria dos acontecimentos decorrem, naturalmente, no século XVIII. O recuo que Thackeray faz ao século anterior ao seu poderia parecer uma cedência à tentação escapista; mas romances como Barry Lyndon, ou The History of Henry Esmond, não procuram no passado o alívio da ausência de confronto, ou de desafios de outra ordem. Pelo contrário, os romances históricos de Thackeray centralizam nesse outro tempo a necessidade que o autor sentia de impor um espírito objectivo, produzir uma narração precisa e uma obedecer a uma abordagem intransigentemente realista; o afastamento temporal terá sido um modo de intensificar esses propósitos. É possível que responda a um impulso semelhante àquele que levou Stanley Kubrick a recusar a iluminação artificial na sua adaptação do romance de Thackeray.

A literatura de Setecentos precedera a idealização, a artificialidade e o fingimento contemporâneos de William Makepeace Thackeray, pelo que autores como Henry Fielding – um modelo decisivo para Barry – haviam escrito sem o embaraço desses entraves. A narração de Barry Lyndon tem a tonalidade ironicamente desafectada – “A narrativa pormenorizada duma história de amor aborrece sempre aqueles a quem ela não diz respeito, e deixo esse tema ao cuidado dos romancistas deslavados e das alunas internas de colégios para quem eles escrevem.” –, a intrepidez arrogante e a necessária frieza de uma aposta – “Não darei aos meus leitores mais sobre a minha vida de jogador além dos que forneci sobre a minha carreira de soldado”. Tudo são atitudes e gestos estudadamente polidos, que se levam a cabo contra o pano de fundo da sorte e do acaso – “Quem poderia adivinhar a terrível partida que a sorte se preparava para pregar à minha ilustre protectora, cuja desgraça acarretaria também a minha?” “Quando penso em todos os pequenos acasos”, reflecte Barry, pausando, por momentos, “que determinaram os grandes acontecimentos da minha vida, é-me difícil acreditar que tenha sido algo mais do que um fantoche nas mãos do destino, que me pregou as mais inacreditaveis partidas”.

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Com a história deste irlandês, que ferve no seu desejo de fazer frente a quem quer que o impeça de singrar, Thackeray procurou contrariar a demagogia idealizadora da ficção do seu tempo, que tendia a embelezar em vez de representar fielmente a figura do marginal e do fora-da-lei. Barry entra em duelos por arrogância, não em defesa da honra; alista-se numa diversidade de exércitos contrários para vencer a sua própria guerra, não para honrar qualquer pátria. A sua sede de poder é relatada sem desvanecimentos nem picos de emotividade, mas de forma calculada, calculista, mesmo. É essa ânsia que o leva ao jogo, à vertigem do ganho a todo o custo. É uma espécie de honestidade do trapaceiro, a forma como um andarilho menos do que honesto põe tudo em pratos limpos – “Para explicar as causas da famosa Guerra dos Sete Anos, em que a Europa se envolveu, precisaria de ser muito melhor filósofo e historiador do que o sou na realidade; na verdade, a origem dessa guerra sempre me pareceu bastante complicado”. É essa, a sedutora ambiguidade deste narrador protagonista.

Um narrador nada fiável, ao que tudo indica, ele constrói a sua própria verdade. A que é filtrada pelo crivo pessoalíssimo da experiência e temperada por uma espécie de superego que o compele à objectividade e à lisura. Mais que não seja no relato que faz. Este estatuto distingue-se daquele que é do narrador do original Barry, serializado. Aí, uma segunda figura encarregava-se de guiar as palavras escritas pelo irlandês. Essa entidade, George Savage Fitz-Boodle (figura com tradições na ficção e ensaio de Thackeray), claramente exterior à narrativa, formalizava o relato, podava as digressões de Barry Lyndon e interpolava a narração com os seus próprios comentários e achegas (eliminados por Thackeray, na edição em volume). Tal como viria a suceder na película de Kubrick, o verdadeiro narrador, nessa fase serializada do romance,  não era propriamente Barry, mas uma emanação dele, uma decorrência suplementar do irlandês criada pela própria ficção. Essa entidade omnisciente e profundamente irónica que era como a voz serena a comentar o gradual descalabro do anti-herói.

Na passagem para a versão final de Barry Lyndon, é como se Thackeray estivesse a pôr em prática o que escreveu nos Roundabout Papers: “Entre os pecados não raras vezes cometidos pelos romancistas, está a grandiloquência, ou falar do alto”. Nem um, nem outro, serão faltas que se possam apontar ao malandro de serviço, pecador noutros fóruns. Em todos. É um prodígio de retórica e de lábia a construção do Barry narrado pelo Barry narrador – “Se estas memórias não tivessem como característica a veracidade, e se eu me dignasse pronunciar uma só palavra que não estivesse revestida, dado o peso da minha própria experiência pessoal, da maior autoridade, poderia arvorar-me em protagonista de algumas estranhas e populares aventuras e, tal como outros autores de romances, introduzir os meus leitores junto das grandes personagens dessa época notável.” A frieza no relato, o modo implacável como se expõem os factos são altamente devedores do espírito da época recriada por Thackeray em Barry Lyndon. Uma sensibilidade anterior à especulação lírica do romantismo e à explosão analítica do eu – “Costumo fascinar assim as mulheres. Que o homem que precise de fazer fortuna tenha presente esta máxima: Atacar é o único segredo. Ousai, e o mundo cederá sempre”.