Vivem-se “tempos muito maus” na Turquia, em cima “de tempos já maus”
Estes dias são críticos para definir o futuro e todos os sinais “são negativos”, diz Andrew Gardner, da Amnistia Internacional. Não são só os detidos e a tortura, que o Governo pelo menos “aprova”. É o que não se sabe. “Há pessoas desaparecidas”.
Andrew Gardner não tem ar de quem ande a dormir muito. Entre os escritórios da Amnistia Internacional na Turquia, em Istambul, e Ancara, onde morreram mais pessoas e mais têm sido detidas, não tem parado. E ainda não sabe para onde vai a seguir – “os planos têm de se fazer dia a dia”.
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Andrew Gardner não tem ar de quem ande a dormir muito. Entre os escritórios da Amnistia Internacional na Turquia, em Istambul, e Ancara, onde morreram mais pessoas e mais têm sido detidas, não tem parado. E ainda não sabe para onde vai a seguir – “os planos têm de se fazer dia a dia”.
Entre a tentativa de golpe de Estado falhada da noite de 15 de Julho e o início desta semana, o investigador e um colega turco entrevistaram responsáveis dos centros de detenção e dez advogados que representam, em média, 18 detidos cada. Mais de 13 mil pessoas foram detidas por alegadas ligações aos conspiradores (destas, 1200 soldados já foram libertados).
Os testemunhos recolhidos chegam para começar a traçar um retrato possível da realidade pós-golpe e pós-estado de emergência, declarado cinco dias depois. Um retrato em que há detidos maltratados e torturados (pelo menos dois foram violados e dois já tentaram o suicídio), em que poucos podem escolher quem os representa ou conhecem sequer as acusações; em que muitos passam 48 horas sem comida, água ou autorização para usar uma casa de banho.
“Julgo que ainda não temos o retrato completo do que está a acontecer sob detenção. As nossas informações vêm dos advogados que só conseguem falar com os detidos quando são levados a tribunal. Agora, o período de detenção sem acusações foi alargado para 30 dias e isso é um grande problema”, diz Gardner.
“[Para além disso,] há muitas pessoas que simplesmente não sabemos onde estão”, declara Gardner. A AI falou com famílias que ainda não perceberam o que aconteceu com filhos, maridos de quem não sabem desde o golpe. “Ou seja, há pessoas desaparecidas.”
Os problemas são muitos. Alguns, como a tortura, invertem tendências positivas dos últimos anos na Turquia. Outros, como os mandados de captura contra jornalistas, só confirmam alguns dos piores aspectos dos governos dos últimos anos, todos do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002), o partido do actual Presidente e ex-primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan.
“Desde o início dos anos 2000 que o número de casos de tortura sob detenção estava a descer muito, era um dos maiores progressos de direitos humanos na Turquia”, recorda o investigador há anos a viver no país. “O número de casos já tinha subido de repente, o ano passado, depois do recomeço do conflito armado no Sudeste [com os curdos do PKK], e foi chocante, porque noutras alturas em que a guerra se tinha reacendido a tortura não tinha aumentado muito e, desta vez, começámos a ver casos quase de imediato. O que está a acontecer agora é completamente diferente.”
Ao contrário do que acontece nas terras curdas do Sudeste do país, desta vez há imagens de muitos detidos por suspeitas de envolvimento no golpe com sinais óbvios de maus tratos, espancamentos e tortura. “Os membros do Governo não fizeram qualquer condenação deste comportamento. O facto de eles não criticarem nem condenarem é comparável a aceitarem ou aprovarem este comportamento. Isso é um grande problema.”
Ambiente envenenado
O clima não ajuda: “Há um ambiente totalmente envenenado, com grupos de pessoas a atacarem os detidos à porta dos tribunais, gente a atacar famílias de pessoas que estão detidas, advogados a serem atacados por estarem a representar pessoas detidas por supostas ligações ao golpe, grupos de apoiantes do Governo ou do AKP a atacar pessoas vistas como laicas ou membros de minorias religiosas...”
Há diferentes formas de influenciar o ambiente. Como as declarações dos principais responsáveis políticos, cuja linguagem Gardner descreve como “muito provocadora”. As redes sociais, que Erdogan tenta há anos controlar e já baniu mesmo, em diferentes períodos, as mesmas que agora usa ininterruptamente desde a noite do golpe para pedir aos turcos que defendem o país e o seu Governo, por exemplo. Mas também os media mainstream.
Em princípio, quem é detido, afastado ou suspenso terá ligações a Fethullah Gülen, o pregador exilado nos Estados Unidos acusado de estar por trás da tentativa fracassada de derrubar o Governo. “Mas se olharmos para os 42 jornalistas [contra os quais foram emitidos mandados de detenção na segunda-feira], muitos, é verdade, trabalham para media ligados a Gülen ou próximos de Gülen, mas alguns não. Há jornalistas nesta lista que eu sei que nem sequer têm simpatias por Gülen, quanto mais terem estado envolvidos no golpe”, afirma Gardner.
A Justiça emitiu entretanto mandados contra mais 47 antigos funcionários e jornalistas do diário Zaman, que em Março já tinha sido posto sob a alçada do Governo.
Críticos silenciados
“Vejamos o caso de Orhan Kemal Cengiz [detido dias depois do golpe e entretanto libertado, mas proibido de viajar]. Sim, ele trabalhou para um jornal de Gülen, sim, foi advogado em representação do jornal Zaman [propriedade de membros do movimento do imã], mas olhemos para o homem, para aquilo que defende, para aquilo de que fala”, pede Gardner. “É um advogado de direitos humanos, um jornalista, não tem nada que ver com o que se está a passar.”
O que é preciso ter em mente é que “estes já eram dias maus, já antes disto os ataques contra os media estavam a ser incrivelmente generalizados”, diz. E enumera: “Jornais e televisões ligados a Gülen fechados, jornais e televisões próximos da oposição com as administrações e as direcções afastadas e a linha editorial a mudar da noite para o dia, empresas de media destruídas, jornalistas curdos a enfrentarem assédio judicial e assédio físico nas ruas de cidades do Sudeste…”
“Enfim, são tempos muito maus, tempos maus em cima de tempos que já eram maus”, desabafa o investigador.
Para além dos mandados de captura, nos dias que se seguiram ao golpe, 20 sites de notícias foram bloqueados, 25 empresas de media perderam as suas licenças e dezenas de jornalistas viram as suas carteiras profissionais canceladas.
Com muitos jornalistas ou activistas críticos detidos ou silenciados, a versão oficial segue em canal aberto. O ciclo de 24 horas de notícias não ajuda e o tom dos noticiários (há vários canais só de informação) é de perigo constante.
Quando não estão a passar imagens da noite de golpe, de novas detenções ou de armamento encontrado, há entrevistas com turcos que enfrentaram os soldados e foram entretanto recebidos pelo primeiro-ministro (o homem que se deitou por duas vezes diante do tanque, a senhora filmada dentro de um blindado…). E não é preciso estar em casa ou num café, a programação do canal interno do metro, por exemplo, é idêntica, e os ecrãs espalhados nas praças das principais cidades mostram exactamente o mesmo.
Pescar acusações
Não são precisas, aparentemente, provas para deter ninguém. “O que os advogados nos dizem é que estão a fazer perguntas aos detidos do género ‘A que escola é que os teus filhos vão?’, ou ‘Em que banco é que tens conta?’, ‘Estudaste no estrangeiro?’… Ou seja, eles estão a tentar encontrar uma ligação a Gülen ou a uma instituição ou empresa ligada ao seu movimento”, descreve Gardner. “E isso não é o mesmo do que ter participado no golpe.”
Independentemente do que venha a acontecer mais – com o estado de emergência, o Governo e Erdogan podem aprovar legislação sem passar pelo Parlamento –, o investigador já não pode estar tranquilo. “Há uma espécie de carta branca para a acção do Governo. Por um lado, não estão a distinguir entre participação no golpe e pertença à oposição ou uma afiliação geral ao movimento de Fethullah Gülen; por outro, não estão a distinguir entre ameaças genuínas à segurança nacional e a oposição ao AKP.”
Quanto a quem está detido, a Amnistia não pode fazer muito mais do que continuar a entrevistar advogados e a recolher testemunhos junto dos familiares. Neste momento, não há nenhuma organização com mandato para visitar centros de detenção na Turquia; é assim desde Abril, quando foi abolida a Instituição Nacional dos Direitos Humanos. Por isso, Gardner espera “com urgência” uma visita do Comité Europeu contra a Tortura, com quem tem estado em contacto. “O Comité pode fazer visitas não anunciadas em qualquer lado e em qualquer altura e isso é muito poderoso.”
Protestos e vigilantes
Admitindo que a declaração do estado de emergência fizesse sentido, depois de um golpe em que morreram 246 pessoas, o que Gardner critica é tudo o resto. Isso e o que ainda pode vir. “Estes dias e semanas são críticos na determinação do caminho da Turquia por muito tempo. E todos os sinais são negativos”, diz.
“O problema não é o estado de emergência, é a forma como este está a ser aplicado e o potencial para que venham a ser impostas restrições em massa”, defende. “Um estado de emergência de três meses chega para acontecer muita coisa, e o Presidente Erdogan já disse que pode durar mais.”
Gardner também considera normal que os turcos estejam na rua desde a noite de 15 de Julho. “É natural que as pessoas tenham saído à rua e continuem a fazê-lo, é um acontecimento histórico e as pessoas têm direito de protestar contra a tentativa de golpe. Mas há uma grande distinção entre isso e agir como vigilantes”, afirma.
Sem sequer querer pensar que a pena de morte possa vir a ser restabelecida – a Turquia aboliu a pena capital em 2004, como parte das obrigações no processo de adesão à UE –, como admitem os principais dirigentes do AKP, Gardner já tem bastante com que se preocupar com quem está nas cadeias, com as condições de detenção e com as instituições banidas ou suspensas.
“Se olharmos para as listas, no primeiro decreto pareciam estar pessoas suspeitas de serem próximas de Gülen, o que não significa que não sejam completamente inocentes. Mas mesmo nessa lista não é sempre assim – por exemplo, o Sindicato de Juízes e Procuradores foi banido. Eles dizem que os membros do sindicato são próximos de Gülen, mas obviamente muitos não são”, diz o investigador.
Estado sem funcionar
Para além dos detidos, mais de 45 mil pessoas foram suspensas ou demitidas. “Sabemos de pessoas que são conhecidas pelas suas posições políticas de esquerda, ou são alevitas [minoria religiosa, ramo do xiismo]. Os perfis destas pessoas fazem com que seja muito improvável que tenham quaisquer ligações a esta organização [Gülen]. Mas estão a ser suspensas, a perder os seus empregos. Algumas até estão a ser detidas”, diz.
O que estas suspensões em massa, muitas de juízes e procuradores (um quinto dos membros do poder judicial está suspenso), significam é que, mesmo sem as restrições actuais (advogados nomeados sem consultar os detidos, visitas inexistentes ou vigiadas, audiências em tribunal sem conhecimento prévio das acusações), seria impossível garantir processos normais e a salvaguarda do Estado de direito.
Gardner diz que é ainda mais grave: “São as próprias funções do Estado que estão em causa. Com todas as pessoas já afastadas de empregos no Governo, e com as informações que temos de que isso ainda vai acontecer a mais pessoas – são já 21 mil médicos, mais de 20 mil professores… O Estado não pode funcionar assim. Não são apenas dias maus hoje, isto vai ter consequências durante anos”, lamenta.
Questionado sobre como é que o Governo pensará substituir toda esta gente, o investigador da Amnistia encolhe os ombros e franze o sobrolho. “A minha preocupação é que eles não estão a pensar”, diz. “O Governo tem de recusar o caminho da vingança e não é isso que temos visto. As instituições do Estado só serão capazes de resistir a choques como este [o golpe] no futuro, se forem fortes e independentes.”