Quatro vozes da Geórgia encantam Sines com canções de guerra e ruralidade
Antes da entrada em ritmo de longo fôlego, o Festival Músicas do Mundo teve um início de semana marcado pela temperança musical de sons georgianos, arménios, turcos e noruegueses.
Teve ares de providencial manifestação de justiça. No tema de despedida dos georgianos Alaverdi, quatro homens cujo canto a vozes se espalhava pelo auditório do Centro de Artes de Sines como algo de verdadeiramente celestial, entre o canto sacro e a mais empoeirada tradição cantada do país do Cáucaso, havia de ser um cordofone (seria um panduri?, seria um chonguri?) a trair o idílio com uma muito tradicional desafinação.
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Teve ares de providencial manifestação de justiça. No tema de despedida dos georgianos Alaverdi, quatro homens cujo canto a vozes se espalhava pelo auditório do Centro de Artes de Sines como algo de verdadeiramente celestial, entre o canto sacro e a mais empoeirada tradição cantada do país do Cáucaso, havia de ser um cordofone (seria um panduri?, seria um chonguri?) a trair o idílio com uma muito tradicional desafinação.
E fala-se de justiça porque o encanto maior dos Alaverdi, guias de uma criteriosa visita às músicas das várias regiões georgianas, provém não tanto dos temas instrumentais, que trazem à tona espasmos de festividade, mas daqueles em que os instrumentos são largados por terra e as vozes perfeitas se mostram em polifonias tão profundamente belas que o difícil é não desatar num pranto diante de algo tão imaculado que se diria de criação sobrenatural.
Quando se escreve acima “empoeirada tradição”, pensa-se em temas cantados por camponeses no fim de uma jornada de trabalho, com o cansaço a abater-se sobre o corpo e um canto partilhado apenas com os touros que puxam a carroça (a descrição é dos Alaverdi), ou canções que desejam comovedoramente uma longa vida, atravessadas sempre por uma melancolia carregada de solidão – e o encontro das vozes fosse, afinal, uma fuga a esse mesmo cenário. Vestidos com trajes locais, cujo cinto tanto pode albergar uma ameaçadora adaga quanto um muito útil diapasão, aplicariam a mesma divina delicadeza a temas versando a guerra e mortes violentas e sacrificiais. Como se a toda a História de um povo, das batalhas sangrentas às celebrações da vida rural, pudesse ser contada através de uma mesma beleza serena.
Na noite de terça-feira, após a passagem dos Alaverdi pelo palco, pular-se-ia a fronteira da Geórgia para dois países vizinhos: Arménia e Turquia. Em vez de guerra, a paz. Vardan Hovanissian (duduk, instrumento de sopro) e Emre Gültekin (saz, cordofone) não fogem à coexistência menos pacífica entre os dois territórios, tendo baptizado o seu primeiro álbum, Adana, com o nome da cidade turca onde em 1915 os otomanos levaram a cabo um genocídio da minoria arménia. Numa sessão musical de efeito hipnotizante, de uma música sempre a tomar o caminho de uma transcendência muito condizente com o calor da sala, Hovanissian e Gültekin souberam fazer dos seus virtuosismos isolados uma música de comunhão – entre si e com o público –, baseando-se em reportórios tradicionais das duas culturas, sem que resultasse claro – não fossem as explicações do duo – o local de nascimento de cada um dos temas.
Dias calmos
Menos consensual terá sido a actuação na véspera dos norugueses 1982. Após uma exultante demonstração técnica de Germán López, intérprete de timple (um primo do cavaquinho) e acompanhado pela guitarra de Antonio Toledo, numa montra da música das Canárias em contacto com o flamenco e ecos da América do Sul, o trio de música improvisada da Noruega seria recebido por muitos como um anti-clímax. Uma pena, porque se o gérmen jazzístico do grupo, a partir de uma combinação de bateria, harmónio e hardingfele (espécie de violino próprio do folclore local), pode, por vezes, dificultar a entrada sem reservas no seu caldo instrumental, a instabilidade de uma música sem estruturada pré-definida resvala quase sempre para uma harmonia embalada pelo hardingfele, tocado com uma doçura melódica que, sobretudo na resposta oferecida pelo harmónio, remete amiúde para a música antiga. Ou seja, a improvisação não serve aqui de desculpa para uma exploração desabrida e aleatória dos instrumentos, mas antes para a busca constante por uma mansidão tocante.
Estes são dias calmos em Sines, altura propícia para a eclosão de concertos espontâneos ao virar da esquina (não é preciso grande logística para uma guitarra e uma bateria, como aconteceu noutros anos, proporcionarem um concorrido espectáculo à margem da programação) e para o Largo Bocage (à entrada do castelo) encher sem atropelos para ouvir o DJ Mo Laudi ou o duo colombiano Alibombo. No caso destes últimos, a música de dança feita do recurso a bidões ou rodas de bicicleta (e que pode passar pela inspiração de Knight Rider, o Justiceiro de David Hasselhoff) é tão caseira quanto os licores de gengibre ou limão que uma rapariga anuncia no meio da multidão, erguendo a oferta alcoólica num pau com um Egas e um Becas pendentes para chamar a atenção. Nos próximos dias, desta quarta-feira até sábado, a programação avança para o seu imparável fôlego, arrancando ao final da tarde e só se calando com o raiar da manhã.