Um livro para “aprender a ver” os alfabetos escondidos na arquitectura
É um livro que é um jogo ou um jogo que se transformou em livro. É para crianças e adultos, “para ler e jogar em família”. A arquitecta Rute Nieto Ferreira juntou-se à designer Amandine Alessandra na caça às letras. “Big Letter Hunt Londres” é o resultado
Olhar à volta, para a esquerda e para a direita, para cima ou para baixo. Depois reparar: naquele edifício está desenhado um O, no do lado há um C, mais à frente um D. O jogo de “caça às letras” tornou-se uma espécie de vício (saudável) algures em 2012. Rute Nieto Ferreira passeava com as filhas, gémeas com pouco mais de dois anos, quando uma delas a surpreendeu com um comentário.
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Olhar à volta, para a esquerda e para a direita, para cima ou para baixo. Depois reparar: naquele edifício está desenhado um O, no do lado há um C, mais à frente um D. O jogo de “caça às letras” tornou-se uma espécie de vício (saudável) algures em 2012. Rute Nieto Ferreira passeava com as filhas, gémeas com pouco mais de dois anos, quando uma delas a surpreendeu com um comentário.
- Mummy it’s an M!
O dedo estava apontado para o topo de um prédio e as linhas do telhado serpenteavam para cima e para baixo. “Era mesmo um M.” No resto do caminho — e nos passeios seguintes — a observação transformou-se num jogo divertido nas ruas londrinas, onde a arquitecta portuguesa morava e onde as filhas tinham nascido. Aquela brincadeira servia para entreter as crianças, mas não era exclusiva para elas: enquanto os mais pequenos iam descobrindo o alfabeto de forma criativa, os adultos podiam “aprender a olhar novamente”.
Rute Ferreira imaginou quase imediatamente a passagem daquele jogo ao papel, em forma de livro. Mas o quotidiano não dava tempo para trabalho extra: havia o gabinete de arquitectura, as aulas para dar, as filhas pequenas. Durante dois anos, a ideia marinou sem ser levada demasiado a sério. Em Estocolmo, para onde viajou com a família durante seis meses com uma licença sabática, o clique aconteceu. “A distância dá-nos muita pica para fazer outros projectos”, contou ao P3 numa passagem pelo Porto, cidade natal que deixou aos 19 anos para estudar. Assim aconteceu: um dia depois de regressar a Londres, em Janeiro de 2014, estava a bater à porta da casa de uma colega para lhe apresentar a proposta. “Um livro que representasse letras na cidade e mostrasse um alfabeto.”
Amandine Alessandra, designer e fotógrafa apaixonada por tipografia, abraçou a ideia de imediato. No dia seguinte, sem um plano rígido, andavam a passear pela zona este da cidade de máquina fotográfica. A construir um alfabeto. O “The Big Letter Hunt in the East End of London” era publicado tempos depois pela Tower Block Books, uma editora erguida pela dupla para esse mesmo efeito. A edição de autor, com uns 400 exemplares impressos, vendida online e nas livrarias do “bairro” delas (em Portugal está disponível apenas na Circo de Ideias, no Porto) chamou a atenção da Batsford: queriam comprar-lhes os direitos do livro. Rute e Amandine fizeram uma contra-proposta — fazer outra obra.
“Big Letter Hunt London” é uma “caça ao tesouro arquitectónica” mais elaborada. Desta vez numa zona mais central da cidade, com inclusão de alguns edifícios icónicos de Londres, como o Big Ben, o museu Vitoria & Albert, o museu Britânico, o complexo Barbican. Mas também o arranha céus na City, estações de metro, pormenores de fachadas, janelas e portas. Umas letras mais óbvias, outras menos. A acompanhar as imagens, um texto “escrito de rajada” sobre “a história da viagem por este alfabeto nos edifícios”, uma narrativa cheia de ritmo e musicalidade.
No fim do livro, um glossário enche-se de curiosidades sobre os edifícios fotografados. Nas páginas anteriores, o A a Z mostra-se num mapa londrino. A envolver o livro, um poster com todo o alfabeto. “Há um gozo em encontrar as letras. Não é apenas ver, é apercebermo-nos, descodificar uma imagem”, explicou Rute Nieto Ferreira. O “Big Letter Hunt London” — à venda online, na Amazon e na editora — não é um guia da cidade. Apenas um dos muitos alfabetos possíveis: “É essencialmente um livro para aprender a ver. Se andarem pela cidade verão outras letras.”
A classificação da obra (de arquitectura, desing, infantil?) foi um “problema” desde o início. “As editoras gostam de ter uma caixa e isto sai fora da caixa”, sorri Rute. A Batsford optou por Design mas a arquitecta portuguesa tem uma definição mais elaborada: “É um livro para ler em família e um jogo para jogar em família.”
A cidade e o brincar foi “uma constante” no percurso de Rute. Depois de concluir o curso de arquitectura na University of Westminster, atirou-se a um mestrado na Royal College of Art, onde se debruçou sobre locais para brincar nas cidades, tendo estudado casos em Inglaterra, na Escandinávia e em Portugal. Edifícios e espaços para crianças têm sido projectos privilegiados no percurso da portuense, que se tornou assistente em faculdades do Reino Unido.
Há três meses, Rute mudou-se com a família para a Califórnia, de onde o marido, um arquitecto sueco, teve uma proposta de trabalho. A portuguesa está ainda sem emprego em arquitectura, mas já a trabalhar num novo livro. A ideia de transformar a “caça às letras” numa série não está posta de lado. “Já percebi que São Francisco tem imensas letras. Ainda não fotografei um alfabeto inteiro mas se lá ficar muito tempo talvez o faça”, graceja. Do Porto sim, tem vários fotografados e gostava de fazer, "pelo menos, um poster”. Seja como for, a colecção de alfabetos vai continuar a crescer. Afinal, o “bichinho de caçar letras” torna-se incontrolável.