A arte dos loucos colocou São João da Madeira no roteiro mundial dos horrores

De Paris para São João da Madeira. Os coleccionadores de arte bruta e singular António Saint Silvestre e Richard Treger atracaram na Oliva Creative Factory com um acervo de mil peças, tornando-a um dos dez museus mundiais com este tipo de peças. Já por lá passaram 15 mil visitantes.

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Adriano Miranda

“Tudo isto é mórbido; gostamos de coisas macabras que mostramos com o coração. Não é, Richard (Treger)?”, pergunta, por entre risos, António Saint Silvestre ao sócio do “museu dos horrores”, a galeria que tiveram em Paris, assim rotulada pelos amigos boquiabertos com as obras, a maioria delas de “loucos” e esquizofrénicos. Por cá a reacção não anda muito longe desta desde que trouxeram as peças para o Núcleo de Arte da Oliva Creative Factory, em S. João da Madeira, “o único museu de arte bruta e singular da Península Ibérica” e um dos dez de todo o mundo.

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“Tudo isto é mórbido; gostamos de coisas macabras que mostramos com o coração. Não é, Richard (Treger)?”, pergunta, por entre risos, António Saint Silvestre ao sócio do “museu dos horrores”, a galeria que tiveram em Paris, assim rotulada pelos amigos boquiabertos com as obras, a maioria delas de “loucos” e esquizofrénicos. Por cá a reacção não anda muito longe desta desde que trouxeram as peças para o Núcleo de Arte da Oliva Creative Factory, em S. João da Madeira, “o único museu de arte bruta e singular da Península Ibérica” e um dos dez de todo o mundo.

Esta é uma colecção privada, avaliada em milhares de euros. É “a arte dos loucos, doentes mentais, médiuns e personalidades extraordinárias” ´- é desta forma que o escultor moçambicano António Saint Silvestre descreve a arte bruta. “Ou um diamante bruto por lapidar”, como é o caso da “incrível obra de Henry Darger, um doente esquizofrénico dos EUA, o mais emblemático de todos”. O coleccionador relembra a história de 15 mil páginas que o artista escreveu ou os dez mil desenhos que deixou debaixo da cama. “Mais surpreendente” é a venda por 800 mil euros do último desenho de Darger.

São tantas as histórias “chanfradas destes artistas” que António Saint Silvestre as desfia sem parar, enquanto olha para o amigo de infância do Zimbabué, o pianista Richard Treger, que com ele embarcou nesta aventura.

Mas a história que os levou até São João da Madeira “nada tem de louco” e começou a ser escrita há cinco anos. Por essa altura, os dois passavam o dia rodeados de esculturas, pinturas e desenhos de arte bruta e singular na galeria que, há um quarto de século, abriram no famoso bairro SaintGermain-des-Près. Ainda hoje se riem do “destino ou acaso” que os juntou certo dia, numa exposição em Paris, depois de 45 anos sem se verem - passavam férias juntos em Moçambique mas separaram-se quando a família de António Saint Silvestre, tinha ele 14 anos, emigrou para Portugal.

“Foram anos muito bons na galeria, mas há cinco estávamos cansados e queríamos reformar-nos”, continua o escultor. Ansiavam dividir o ano entre estadas em Paris e Lisboa, com mais umas quantas viagens pelo meio a outros países para engrossarem o acervo de arte. “Por norma, adquirimos em galerias, feiras e hospitais psiquiátricos. Já estivemos no Júlio de Matos, em Lisboa, à procura”, conta António Saint Silvestre. E encontraram? “Sim, de Artur Moreira que frequenta o atelier terapêutico de artes plásticas daquele hospital” e que consta desta exposição que inaugurou em Junho último.

Mas quando pensaram na reforma, não lhes passou pela cabeça desfazerem-se do acervo de mil peças,mas também não lhe conseguiam encontrar uma nova casa depois de terem batido a umas quantas portas. Nem se avizinhava nenhuma exposição depois de, em 2012, já terem exibido algumas obras no Museu Vieira da Silva, em Lisboa.

De Paris para São João da Madeira

“O impensável aconteceu” quando o então presidente da Câmara Municipal, Castro Almeida, lhes entrou porta dentro na galeria de Paris. “Disse que tinha espaço e queria uma coisa exclusiva.” Quis levar a colecção privada para a Oliva Creative Factory, a emblemática metalúrgica, na altura ainda em obras. Um império do ferro de onde saiu a famosa máquina de costura Oliva e que depois faliu, ficando os edifícios em ruínas, os quais a câmara tratou de revitalizar em 2013, como recorda o actual presidente Ricardo Oliveira Figueiredo. E transformar “num dos projectos mais inspiradores do país com um forte investimento nas indústrias criativas e iniciativas culturais”. Desde que o Núcleo de Arte abriu, já por lá passaram 15 mil visitantes, o que, segundo Ricardo Oliveira Figueiredo, é prova dada de que “a cultura é um dos pilares da cidade que promove a qualidade de vida dos sãojoanenses e até a economia local”.

Depois da conversa com o então autarca Castro Almeida, uma coisa levou à outra e, em 2014, os dois coleccionadores já estavam a inaugurar a primeira exposição de arte bruta, com centenas de peças. Dois anos depois, ainda por lá andam com muitas mais depois de terem cedido mil obras ao depósito do município são-joanense, 800 das quais já estão inventariadas. E que vão dando origem a várias exposições. “Colocam a cidade nos roteiros internacionais com uma das maiores e mais importantes colecções do mundo”, destaca Ricardo Oliveira Figueiredo. “Principalmente quando só há dez museus de arte bruta em todo o mundo e um deles é cá”, realça Raquel Guerra, curadora deste pólo cultural, explicando que muitas das peças ainda estão a ser catalogadas antes de as expor, assim como o acervo bibliográfico especializado em arte bruta, que os coleccionadores cederam e “que é muito raro de encontrar”.

Artes marginais

Numa das salas do Núcleo de Arte está uma tela enorme, de August Walla, que causa espanto. Assim como a maioria das esculturas a adornar o chão ou pinturas e desenhos a preencher as paredes, com “artes marginais” que não estão nos circuitos comerciais. Os dois coleccionadores levam o público numa viagem pelo “imprevisível, macabro, desconcertante, algumas vezes indigesto, mal apreendido, que perturba e desperta a curiosidade e o espírito de cada um”.

Começam no primeiro andar pela “Arte Bruta: Uma História de Mitologias Individuais”, comissariada pelo curador francês Christian Berst, patente ao público até 26 de Fevereiro de 2017. Por aqui há obras de artistas médiuns e videntes que “falam com os espíritos”, como o francês Augustin Lesage que dizia que os seus desenhos eram “arte do além”. Antes da primeira guerra mundial, era ele mineiro, uma voz disse-lhe: “Um dia serás pintor”. E logo começou a desenhar. Ou muitos outros artistas internados em hospícios, como o suíço Adolf Wolfli que aos seis anos já trabalhava numa fazenda e se tornou pedófilo aos 18, acabando depois atrás das grades e mais tarde num hospital psiquiátrico.

E o público como reage? “Fica muito surpreendido e impressionado com a qualidade e singularidade” destas obras, diz a curadora Raquel Guerra. Ao que António Saint Silvestre acrescenta: “Os miúdos adoram! Querem ver?”, questiona, enquanto se aproxima de Diogo, nove anos, já numa segunda sala, com os olhos vidrados no pormenor das esculturas coloridas feitas de conchas, pintadas com verniz das unhas, como a rainha do mar ou a ópera de Paris, de Paul Amar, um judeu da Argélia, que tinha visões. “Gostas?” O pequeno anui com a cabeça para depois, na sala principal, paralisar diante da pintura do italiano Caro Zinell, “um dos mais reconhecidos artistas de arte bruta, esquizofrénico paranóico”. Ou quase congelar à frente da obra do lituano Friedrich Shoder ao ouvir que “começou a desenhar na cadeia, preso por ter morto um paciente e se ter feito passar por médico”. Assim como ficou intrigado com o quadro de Edmud Monsiel, doente psiquiátrico que, por altura da Segunda Guerra Mundial, se escondeu no sótão da casa do irmão, na Polónia, para não ser morto pelos nazis. E ali ficou por mais duas décadas até morrer enquanto desenhava, por exemplo, três mil caras minúsculas.

Os criadores autodidactas da arte singular

Um lanço de escadas conduz depois ao segundo andar, numa viagem pela arte singular “que é a prima da arte bruta, de criadores autodidactas que não estão bem integrados nos circuitos comerciais”, diz António Saint Silvestre, incluindo-se a si próprio neste círculo. Ainda não tem obras suas nesta exposição “Acordar, sair, caminhar, desacelerar… olhar, parar. Olhar de novo”, comissariada pela curadora italiana Antonia Gaeta, que por lá fica até 23 de Outubro deste ano. Por agora é possível apreciar as obras de outros artistas, como a nave dos piolhos, de François Monchâtre, escultura feita de madeira, metal, corda, lâmpadas, representativa da alienação do homem pelo trabalho.

Mas os dois coleccionadores vivem pela arte, dizem, graças a todo o espírito livre que viveram em Moçambique. E pela arte já viveram muitas aventuras. “Richard, lembras-te daquela vez em que andámos atrás de Dexter Nyamainasche, um sem-abrigo no Zimbabué e comprámos esta escultura, que funciona à manivela, por dez mil dólares?”. Richard sorri só de lembrar que “o sem-abrigo queria tanto uma casa, mas com o dinheiro acabou por comprar um carro e viver nele”. Ainda lhes deu trabalho: Richard escreveu para uma prima, no Zimbabué, que o acabou por encontrar. Esta não foi a última peripécia que viveram. Muitas mais se seguirão para juntar mais obras à colecção privada dos dois.